Domingo da Divina Misericórdia – ano A – 16 de abril de 2023

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Domingo da Divina Misericórdia – ano A – 16 de abril de 2023

1 – “Eu cá tenho a minha fé”. Não é nada que não tenhamos ouvido uma dúzia de vezes. Alguém que não frequenta assiduamente ou simplesmente não participa na vida da comunidade, clarificando que tem fé mas a Missa ou as atividades pastorais não lhe dizem respeito, pois resolve a sua vida com ligação direta e exclusiva a Deus. Claro que a não participação pode ter muitos fatores: “falta de tempo” e sobretudo disponibilidade interior, preguiça, desabituação, algum diferendo com outra pessoa que participa habitualmente, embate da vida com a fé, pois os problemas não foram resolvidos apesar da fervorosa oração, não utilidade prática da fé, falta de ligação à comunidade atual onde reside, com a qual não se identifica; não gosta do pároco; dúvidas e incertezas da fé; ainda à procura…

Na ambiência da Páscoa vemos como a comunidade é essencial para acolher e reconhecer o Crucificado-Ressuscitado, para perceber que Ele está vivo e está no MEIO, no centro da comunidade. A fé fortalece-se e clarifica-se com os que caminham connosco. Uma pessoa sozinha nem para comer serve. Na vida, quem se encontra só acabará por duvidar de si mesmo, desaprendendo a interagir, a viver, a humanizar as palavras e ações. Quando estamos um tempo sem falar, depois parece que as palavras não saem, não articulamos os sons com os movimentos. Por isso, se recomenda que antes de falar e sobretudo cantar se beba água e, eventualmente, se façam alguns exercícios com as cordas vocais.

Mesmo quando temos certezas sobre alguma matéria necessitamos que os outros o confirmem para nos sentirmos mais seguros e mais tranquilos na hora de dizermos ou de fazermos.

2 – O definitivo, aquilo que leva à conversão, à adesão a Cristo, à fé na Ressurreição não é o túmulo vazio nem a inspiração pessoal (quando esta acontece visa a comunidade), mas o encontro com o Ressuscitado em dinâmica comunitária. Maria Madalena vai ao sepulcro e, não vendo o corpo de Jesus, vai ter com os discípulos para lhes dizer o que viu (São João); Pedro e o discípulo amado recebem a notícia e dirigem-se ao sepulcro, o discípulo amado não entra sem Pedro; a Maria Madalena e outra Mulher Jesus recomenda que vão ter com os discípulos e lhes digam que os encontrará na Galileia (São Mateus). Os discípulos de Emaús reconhecem Jesus ao partir do pão, isto é, no momento mais comunitário dos cristãos, à volta da mesa, unidos a Deus, em comunhão com os irmãos (São Lucas), e logo regressam à comunidade, para junto dos outros discípulos testemunharem o que viram e ouviram, o que viveram.

Na tarde daquele primeiro dia, Jesus apresenta-Se no MEIO deles. É Jesus que toma a iniciativa. Vem ao nosso encontro e assume o lugar que Lhe pertence. É assim que Ele Se coloca, é assim que devemos colocá-l’O se verdadeiramente queremos ser Seus discípulos. E, obviamente, se estamos voltados para Jesus, se Ele sustenta o nosso olhar, o nosso coração, a nossa vida, começa então a comunhão com todos aqueles e aquelas que se voltam para Jesus e O colocam como centro de suas vidas, porque é Ele que nos une, nos congrega, como vide que sustém os ramos!

Sublinhe-se também a dinâmica do Domingo, o Dia do Senhor. A Ressurreição marca o início de um tempo novo, é o primeiro dia da nova criação, é o Dia por excelência em que nasce a Igreja, Corpo de Cristo. É nesse mesmo dia que Jesus aparece aos discípulos, congregados em comunidade.

Oito dias depois, Jesus volta a encontrar-Se com os Seus discípulos, coloca-Se novamente no meio deles. E se na semana anterior, no primeiro domingo, Tomé não estava, desta feita, no segundo domingo, já está em comunidade, reunido a aguardar a vinda do Senhor. E é em comunidade que faz a experiência de encontro com Jesus. Os outros fizeram a sua missão, contaram-lhe o que havia sucedido, mas Tomé precisa de tempo e de se deixar encontrar por Jesus. Nem todos temos o mesmo ritmo. Cada pessoa faz o seu caminho, mas se cada um se encaminhar para Cristo, formaremos a comunidade dos cristãos.

3 – Não, não é a Cruz que mata Jesus. Não, não é a Cruz que nos mata. Matam Jesus os nossos pecados, o nosso egoísmo; o que nos mata é a solidão, o colocar-nos como centro ou deixando que nos endeusem. O que nos mata é a preguiça em amar e fazer o bem. Mata Jesus a prepotência, a corrupção, a idolatria, a intolerância. Morremos, não quando o coração falha ou o cérebro se desliga, mas quando deixamos de amar, quando deixamos de sentir a vida e o apelo dos outros.

É na Cruz que Jesus é morto, mas nem a Cruz O impede de nos encontrar. Jesus não dá as costas à Cruz, enfrenta-a, carrega-a, mas não foge. Ressuscitado, traz na Sua carne, na Sua vida, as marcas da crucifixão. Vede as minhas mãos e o meu lado, Sou Eu, não temais. E de forma ainda mais incisiva a Tomé: vê, toca, as minhas chagas, Sou Eu, não é um fantasma ou um espírito.

A continuidade não é apenas no Corpo é também na mensagem e no envio.

A descontinuidade é absoluta, é divina. A ressurreição é algo de novo, nunca visto, não faz parte da biologia humana. As aparições de Jesus geram alegria, mas também surpresa e temor. Aquele que vimos esmagado pelo sofrimento, agredido violentamente, obrigado a carregar o travessão da cruz, exausto pelas vergastadas e pela perda de sangue, pela desidratação, voltou à vida. Deus Pai, a Quem Se confiou, não O desapontou, ressuscitou-O. Ele vive e está no meio de nós.

Num primeiro momento, as mulheres ficam atónitas. Na tarde desse primeiro dia também os discípulos ficam boquiabertos. Como (depois) a Tomé, também (antes) aos outros discípulos Jesus mostra as mãos e o lado e lhes comunica a paz, enviando-os.

4 – «Meu Senhor e Meu Deus». Confissão de fé tão breve e tão intensa e clarificadora. Não é preciso muito mais. Quando algo de bom nos acontece precisamos de o partilhar, mas há momentos que não encontramos palavras. É o que acontece com Tomé. Já tinha ouvido dizer… mas agora depara-se com Jesus e com as marcas da Paixão, com as marcas do amor. Quem se sujeita a amar, sujeita-se a padecer. O amor imenso e intenso de Jesus fazem-n’O assumir as nossas dores e levar ao Calvário os nossos sofrimentos, para nos redimir, para nos livrar da morte eterna.

Agora é a nossa vez. Â«Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos». Dou-vos a paz, deixo-vos a paz. Levai a paz a toda a criatura. Eu estarei convosco até ao fim dos tempos. Se passardes por momentos de dúvida e hesitação tocai as minhas feridas, as minhas chagas, então sabereis que Eu vivo, que Eu preciso de vós, do vosso olhar, das vossas mãos, do vosso coração. Felizes sereis se acreditardes e saboreardes a minha presença nos irmãos, nos seus dramas e nas suas necessidades. Vivei a alegria, espalhai a esperança, sarai os doentes, expulsai os demónios que destroem e desumanizam, que excluem e segregam, acolhei a vida, em todos os momentos, protegei os mais frágeis, amai e servi, construí comunidade, inclui os que chegam, animai os abatidos, confortai os cansados e desiludidos. Recebeste de graça, dai de graça. O que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos, a Mim o fareis.

Com Cristo, como nos recorda São Pedro, fomos ressuscitados, para vivermos numa esperança viva, porém, enquanto estamos no tempo, caminhamos como peregrinos, sujeitos a provações. Como o ouro se prova pelo fogo, a nossa fé prova-se no tempo presente, vivendo, fazendo com que a fé seja vida, compromisso, transformação (positiva) do mundo em que vivemos. Não há outro mundo nem outra vida. É neste mundo e nesta vida que nos tornamos verdadeiramente filhos amados de Deus, acolhendo a Sua misericórdia, irradiando a Sua Paz e o Seu amor a todos os que encontramos, prosseguindo com os outros até à eternidade. A vida eterna já começou, está em ebulição. E como fez Jesus façamos nós também. As suas palavras e os seus gestos levaram-n’O à Cruz e da Cruz à ressurreição. O mesmo será connosco se vivermos para amar e para servir. Podemos ter que carregar a Cruz, mas se for o amor que nos conduz permaneceremos para sempre.

5 – Uma das provações da fé passa pela inserção na comunidade crente e pelo compromisso com os outros, sobretudo os mais fragilizados pela doença, pela solidão ou pelas condições de vida. Uma fé autêntica liga-nos aos que professam a mesma fé em Jesus morto e ressuscitado. Não faz sentido, por mais justificações que tenhamos, ainda que honestas, que a fé nos isole. Não é possível rezar ao mesmo Pai se estamos em rutura com a comunidade, de costas voltadas ou indiferentes às necessidades dos irmãos.

A primeira comunidade continua a ser referência e desafio: «Os irmãos eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações». Estão cá os elementos necessários para que a fé não seja superstição, ilusão, medo, idolatria. Tudo parte do encontro celebrativo, o ensino, a oração, a Eucaristia, com continuidade na vida: «Todos os que haviam abraçado a fé viviam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam propriedades e bens e distribuíam o dinheiro por todos, conforme as necessidades de cada um».

Não há uma separação estanque entre a Eucaristia e a vida quotidiana. À Eucaristia levamos a nossa vida, com as suas inquietações e desafios, com as suas alegrias e tristezas. A Eucaristia envia-nos para o mundo, cheios de luz para irradiarmos a claridade de Jesus; alimentados de esperança e confiantes no amor de Deus, para alimentarmos os outros nas suas necessidades corporais e espirituais. Os membros da primeira comunidade viviam como se tivessem um só coração e uma só alma, louvando a Deus e atentos uns aos outros. É essa autenticidade (a continuidade entre a celebração da fé e a transformação do mundo)  que move outros a querer entrar para a comunidade dos crentes, seguindo Jesus Cristo, para como Ele e com Ele ressuscitarmos no tempo até à eternidade.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Atos 2, 42-47; Sl 117 (118); 1 Pedro 1, 3-9; Jo 20, 19-31.