Domingo III da Páscoa – ano A – 26 de abril de 2020

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    Domingo III da Páscoa – ano A – 26 de abril de 2020

    1Caminho. O meu e o teu. É no nosso caminho, na nossa vida, que Deus Se manifesta, Se dá a conhecer, que vem ao nosso encontro. De mansinho. Suavemente. Sem ondas nem violência. Sem revolução nem destruição. Faz-Se caminho connosco, faz-Se caminho por nós. Jesus, Deus connosco, é o Caminho, a Verdade e a Vida. O caminho faz-se caminhando. E assim a vida. Quando paramos, diz o povo, morremos. É como a água estagnada! Ainda que seja salubre, parada, tornar-se-á inquinada. Já água corrente não mata a gente!

    “Dois dos discípulos de Jesus iam a caminho duma povoação chamada Emaús, que ficava a duas léguas de Jerusalém. Conversavam entre si sobre tudo o que tinha sucedido. Enquanto falavam e discutiam, Jesus aproximou-Se deles e pôs-Se com eles a caminho. Mas os seus olhos estavam impedidos de O reconhecerem”.

    Soa, ainda mais nestes dias, a palavra do profeta sobre o grande sábado, a noite que se prolonga para lá de todas as expectativas, sendo que até até os mais otimistas podem soçobrar perante as evidências e as tormentas da realidade. E, contudo, Ele segue connosco. No mesmo barco, partilhando o nosso sofrimento. Assim há dois mil anos. Assim também na atualidade. Os nossos olhos são inundados de imagens e de sons, de notícias e ruído, estamos assoberbados de informações e de números que ficamos impossibilitados de O ver, sobretudo, nos que sofrem e nos que morrem, nos que cuidam e se gastam a favor dos outros! Felizes aqueles que acreditam sem O ter visto! Ou, melhor, que O veem em cada pessoa a quem tratam as chagas, as feridas, a vida.

    2Palavra. Gestos e palavras e um ombro amigo. A presença conforta e, por vezes, é quanto basta, pois dá-nos ânimo e faz-nos saber que não estamos sozinhos. Ele caminha ao nosso lado, na nossa história. Como há dois mil, também hoje, na minha e na tua vida, o Senhor percorre connosco também as intempéries, as adversidades e fala-nos ao coração.

     «Que palavras são essas que trocais entre vós pelo caminho?». Jesus intromete-Se (não fica ao longe e ao largo, indiferente, como se a nossa vida não Lhe dissesse respeito!), bate à porta e, se O deixarmos entrar, Ele acompanha-nos. No poço de Jacob, Jesus interpela a Samaritana, “dá-me de beber”, pedido banal, mas ponto de apoio para iniciar um diálogo que gerará conversão.

    Os dois discípulos deixam vir ao de cima o que sentem, o desencanto perante os acontecimentos da perseguição e da condenação de Jesus de Nazaré. E falam sobre as esperanças que foram desfeitas com a crucifixão do Mestre dos Mestres. “Nós esperávamos que fosse Ele quem havia de libertar Israel. Mas, afinal, é já o terceiro dia depois que isto aconteceu”. É certo que as mulheres e alguns discípulos foram ao sepulcro, não encontraram o corpo de Jesus e disseram que lhes apareceu um Anjo… mas a Ele não O viram!

    A resposta de Jesus não é invasiva, não tenta convencer com argumentos infalíveis, procura que eles, e nós também, encontrem as palavras e descubram como a Sagrada Escritura tem indícios e promessas e anúncios que antecipam o que estava para acontecer. Jesus mostra como o sofrimento não é a última palavra. O sofrimento tem as marcas da paixão, é lembrança da entrega, é desafio a dar-lhe um sentido! Entenda-se, o sofrimento em si mesmo não tem sentido, mas expressa o sentido do amor, da luta e da esperança, e da vida que, em Jesus, nos chega em abundância.

    3Pão. Mesa. Casa. Refeição e partilha. E vida a acontecer!

    Jesus insinua-Se e deixa que os sinais O mostrem, mas sem imposição. Ele bate à nossa porta, à porta do nosso coração, bate à porta da minha e da tua vida. Não Se impõe! Se Lhe abrirmos a porta e a casa e a vida, então Ele entrará e sentar-se-á connosco à mesa. «Ficai connosco, porque o dia está a terminar e vem caindo a noite». Jesus, ontem como hoje, há dois mil anos como agora, não Se faz rogado, nem esquisito, nem renitente! Entra e senta-Se à mesa connosco.

    Mesa e aconchego e o conforto da casa. Casa, diga-se, é onde nos sentimos bem, onde se encontram os que nos querem bem, a nossa casa são os nossos amigos, a nossa família e, em Jesus, a humanidade inteira.

    Quando deixamos, a vida acontece e o milagre floresce. Jesus “tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e entregou-lho”. As palavras e os gestos da Última Ceia, então como antecipação do mistério pascal, da entrega à morte e morte de Cruz, agora como reencontro do Ressuscitado com os Seus discípulos e da vida nova que Ele, por ação do Espírito Santo, nos dá.

    “Nesse momento abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-n’O. Mas Ele desapareceu da sua presença”. Quando, fisicamente, Jesus era visível, não O reconheceram, quando desapareceu e Lhes deixou o pão, percebem-n’O, veem com os olhos do coração. «Não ardia cá dentro o nosso coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?».

    A partilha faz-nos irmãos. O pão une-nos em família. A Eucaristia faz com que Jesus esteja no hoje da nossa história e participar da nossa vida, dar-Se-nos para nos aproximar, para O partilharmos, para comungarmos a vida uns dos outros e caminharmos conjuntamente.

    4Alegria. Anúncio. Missão e comunidade.

    Que sentido teria a nossa vida se não tivéssemos ninguém para partilhar os momentos maus e os momentos bons? Não somos, de todo, uma ilha isolada. O que somos devemo-lo aos outros, direta ou indiretamente. Sabemos o que somos porque, positiva ou negativamente, podemos comparar-nos com os outros. Estamos aqui porque outros nos trouxeram (do passado para o presente e, quem sabe, de um continente longínquo para este espaço em que nos encontramos). Morremos, não quando damos o último suspiro, quando o nosso cérebro estaciona, mas no momento em que a esperança nos abandona, no momento em que não há mais ninguém a esperar por nós, quando deixamos de ter por quem esperar.

    Vale a pena trazer à colação Viktor Frankl, n’ “O Homem em busca de um sentido”: “Cada pessoa era controlada por um único pensamento: manter-se viva para a família… O meu espírito mantinha-se preso à imagem da minha mulher. Ouvi-a a responder-me, via o seu sorriso, o seu olhar franco e encorajador. Real ou não, esse olhar era naquele momento mais luminoso que o Sol que começava a nascer… ela estava ali”. Num sentido mais amplo, em dinâmica de fé, esta espera ou esta presença pode situar-nos além da história e do tempo, a esperança que não se perde com a morte biológica. É, de algum modo, a perspetiva de Frankl, mesmo que não seja real, pois não sabe se está viva ou se morreu, a mulher, diz ele, esperará por mim e, por isso, mantenho-me vivo para a reencontrar.

    A noite tinha caído sobre Emaús, mas nem a noite os impede de regressar a Jerusalém, à comunidade, onde se encontram os Onze. «Na verdade, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão». E também eles contam o encontro com o Ressuscitado no caminho e como O reconheceram ao partir o pão. A alegria do encontro com Jesus torna-nos destemidos e comprometidos em contagiar outros com o motivo e conteúdo da nossa alegria.

    5Encontro com o Ressuscitado. Conversão. Anúncio que interpela e faz comunidade.

    Quem te viu e quem te vê! Pedro está diferente, ainda que se note a mesma espontaneidade. Antes, o medo e a negação, os interesses mais pessoais. Agora, o anúncio firme do Evangelho: «Homens da Judeia e vós todos que habitais em Jerusalém, compreendei… Deus ressuscitou-O, livrando-O dos laços da morte, porque não era possível que Ele ficasse sob o seu domínio. Diz David a seu respeito: ‘O Senhor está sempre na minha presença, com Ele a meu lado não vacilarei. Por isso o meu coração se alegra e a minha alma exulta e até o meu corpo descansa tranquilo… Foi este Jesus que Deus ressuscitou e disso todos nós somos testemunhas. Tendo sido exaltado pelo poder de Deus, recebeu do Pai a promessa do Espírito Santo, que Ele derramou, como vedes e ouvis».

    A palavra interpela e convoca, faz comunidade, sob a liderança do Espírito Santo que faz “arder” o coração e nos faz reconhecer Jesus ao partir do pão e no partilhar da vida.

    6No meio está Cristo. O centro é Cristo. É o chão e a referência. O ponto de partida e de chegada, e, sobretudo, o ponto de encontro. Onde dois ou três estiverem reunidos em Meu nome, Eu estarei no meio deles. A comunidade cristã, a Igreja, é Corpo de Cristo. Os cristãos, que integram o mesmo Corpo, o de Cristo, terão de se identificar com Ele…, pois não é possível fazer parte do mesmo corpo e puxar noutra direção! Teremos que igualar-nos (fazer iguais, afeiçoar-se a Jesus, tornarem-se parecidos, siameses) com Ele, para não sermos órgãos/membros estranhos ao Corpo!

    São Pedro recorda-no-lo: “Se invocais como Pai Aquele que, sem aceção de pessoas, julga cada um segundo as suas obras, vivei com temor, durante o tempo de exílio neste mundo… Por Ele acreditais em Deus, que O ressuscitou dos mortos e Lhe deu a glória, para que a vossa fé e a vossa esperança estejam em Deus”.

    Assim, em todos os momentos não cessemos de O invocar, de todo o coração, para que nos abençoe e ilumine, nos proteja e nos resgate do pessimismo e da indiferença, nos salve dos egoísmos e do desespero. “Defendei-me, Senhor; Vós sois o meu refúgio. Sois o meu Deus. Senhor, porção da minha herança e do meu cálice, está nas vossas mãos o meu destino. O Senhor está sempre na minha presença, com Ele a meu lado não vacilarei. Por isso o meu coração se alegra e a minha alma exulta e até o meu corpo descansa tranquilo”.

    Se há alegria em mim, se a minha casa é a esperança, se o meu refúgio é a fé, se Cristo está no meu agir, terei necessidade e urgência em O partilhar com outros, comunicando-O em toda a parte, sendo instrumento da Sua ressurreição em todos os ambientes e situações.

    Pe. Manuel Gonçalves


    Textos para a Eucaristia (ano A): Atos 2, 14. 22-33; Sl 15 (16); 1 Pedro 1, 17-21; Lc 24, 13-35.