Domingo IV do Tempo Comum – ano B – 31 de janeiro de 2021

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Domingo IV do Tempo Comum – ano B – 31 de janeiro de 2021

1 – A coerência de vida está no fiel da balança. É um desafio nem sempre fácil de ser traduzido no dia a dia. É um compromisso que, nem sempre alcançável, deve estar como propósito e como esforço, procurando que as palavras tenham correspondência na vida e que aquilo que exigimos aos outros seja por nós assumido e realizado. Podemos falhar, mas se tal acontecer que não seja por comodismo ou por cinismo.

O Papa Francisco faz a distinção entre um pecador e um corrupto. A condição de pecador está ligada à condição humana, finita e limitada. É um caminho de aperfeiçoamento e aprendizagem, sujeitos à queda, a contradições, a avanços e recuos. A consciência das nossas fragilidades abre-nos para os outros e sobretudo para Deus, de Quem nos vem a verdade e o auxílio. O corrupto é aquele que persiste no erro, fecha-se em si mesmo, é autorreferencial e egoísta, os outros só contam na medida em que facilitam a sua vida e o servem nos seus projetos. Corrupto é o que sabe que faz mal e, ainda assim, é indiferente às consequências dos seus atos nas outras pessoas. O sofrimento alheio não o comove. Pecadores sim, diz o Papa, corruptos não.

No evangelho deste Domingo sobressai a autoridade de Jesus. Diga-se, desde logo, que autoridade, neste contexto, não tem a ver com poder, com sobranceria, com estatuto social ou funcional, mas tem a ver com proximidade, com serviço e compaixão. A pregação de Jesus faz-se de palavras, de vida, de gestos; faz-se de amor concretizado no cuidado aos outros, na atenção às suas dificuldades e sofrimentos, à ajuda real e concreta, fazendo o que está ao Seu alcance para curar, para incluir, para levantar e chamar à vida.

2 – A fama de Jesus espalha-se com alguma rapidez e atrai multidões. Há pessoas ávidas de palavras, de conforto, de esperança. Jesus corresponde à sede que as pessoas trazem. Mestres há muitos, neste como naquele tempo. Pessoas que falam bem e conseguem meter os outros no coração. Há empatias que soam a vida; há empatias que não passam de marketing barato. Por vezes não é fácil distinguir o verdadeiro do falso, o coerente do cínico. Em todas as dimensões da vida, pessoal, familiar, eclesial, política, económica, desportiva ou culturalmente. Há quem nos diga o que queremos ouvir. Há quem opte por dizer o que precisamos de escutar.

Jesus não é um convidado que vem, alegrando com a Sua presença os anfitriães e os outros convidados, diz umas charadas e todos se divertem com momentos descontraídos, anódicos, e depois cada um vai à sua vida. Também não é uma figura principesca, uma “autoridade” que vem e que suscita atenções, delicadezas e adulações, fazendo com que todos se curvem à Sua passagem, oferecendo-Lhe palavras adocicadas e ramos de flores. Não convence porque tem um belo discurso, o dom da palavra, ou porque fala com a voz embargada, na imitação rasca da comoção, ou na altivez sonora, com a voz bem treinada e bem colocada para convencer, elevando-a acima das demais, para que só a Sua pudesse ser audível e convencedora, pela retórica e eloquência.

Jesus não é convidado. Não. Ele é um de nós. Assim o quis. Encarnou. Assumiu a nossa condição humana, fez-Se um de nós, carne da nossa carne, osso dos nossos ossos, sangue do nosso sangue. É verdadeiro Filho de Deus, desde sempre, é verdadeiro homem, no tempo, nascido da Virgem Maria. Ele está aí de pleno direito. Não vem de cima. Não vem de passagem, como visita ilustre, Ele está no meio de nós, como Quem serve. Não veio para ser servido, mas para servir a dar a vida por todos, veio para os seus, que somos nós, e a humanidade inteira, para que tenhamos vida e vida em abundância. Um dia havemos de perceber que somos nós os convidados, porque Ele Se faz pão e vida e mesa, faz-Se banquete, porque nos ama, reconhecendo-nos e assumindo-nos como irmãos. É o Senhor que serve e que ama, que veste a túnica do serviço e nos lava os pés. Ele não quer convencer-nos, Ele quer que encontremos a vida e, n’Ele, sejamos salvos.

3 – Tanto quanto possível, onde vai, Jesus não está de passagem, procura inteirar-se da vida da comunidade, acompanhar os seus sonhos e os seus projetos, as suas dificuldades e os seus problemas. Vai a Cafarnaum, permanece, e no sábado seguinte, como bom judeu, entra na Sinagoga para rezar, escutar a Palavra de Deus e refletir com os presentes. Diz-nos o evangelista que “todos se maravilhavam com a sua doutrina, porque os ensinava com autoridade e não como os escribas”. E porquê? Porque não vende banha de cobra.

As pessoas que ouvem Jesus levam a notícia com elas, falando d’Ele onde quer que vão. Porém, perceba-se que o texto de Marcos é escrito um pouco antes do ano 70 (d.C), quase quarenta anos depois da morte de Jesus, pelo que os dados recolhidos por este primeiro evangelista, e depois pelos outros, faz com que alguns acontecimentos relacionados com Jesus não tenham como prioridade a cronologia, mas sejam um testemunho sobre a Sua vida, a Sua mensagem e a Sua paixão redentora. Em nada se altera a veracidade do testemunho, mas dispensa-nos de um confronto cronológico e jornalístico – ainda que alguns dados nos permitam situá-l’O no tempo e no espaço –, para nos envolver no mistério de Deus.

Ele ensina com autoridade. Não como os escribas. Estes, como facilmente se percebe, sem generalizar, enchem os lábios de palavras e exigências, são bem-falantes, mas vazios, pregam para os outros, exigem, cobram, julgam, impõem-se, mantendo-se à margem das dificuldades e sofrimentos do povo, sem viverem o que apregoam, sem traduzirem em obras o que lhes sai do coração, melhor, o que lhes sai pelos lábios fora sem chegar e sem vir do coração. Jesus é do povo, está no meio das pessoas, junta-se a pecadores e publicanos, ajuda, anima, cura, levanta. Ele confunde-Se com qualquer mortal, não Se distingue nem pelas roupas, nem pelos trejeitos de poder e distanciamento.

4 – Em Jesus, as curas fazem parte do seu ministério de amor. Como Seus seguidores, a cura deverá fazer parte do nosso quotidiano. Não talvez da mesma forma, ainda que possa acontecer, mas no compromisso dinâmico de sermos, com as palavras e com os gestos, curadores/cuidadores, inspirando-nos uns aos outros, fortalecendo a esperança, fomentando a fé, vivendo em lógica de caridade. Diria Santa Teresa de Calcutá que cada pessoa que nos encontre (ou que encontramos), ao sair de ao pé de nós, deveria partir mais feliz. Perguntemo-nos, uma vez mais: as nossas palavras e gestos são curativos? As pessoas encontram em nós razões de fé e de esperança? Saem mais animadas, depois de nos encontrarem, mais tranquilas?

Não vira a cara para o lado, Jesus escuta, observa, procura colocar-Se no lugar dos que sofrem, não volta as costas como se não fosse nada conSigo. Vem para restituir a vida. Um homem, com um espírito impuro, no meio da Sinagoga, começa a gritar: «Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno? Vieste para nos perder? Sei quem Tu és: o Santo de Deus». Uma censura, um grito, que é, antes de mais, uma confissão de fé. O mal sente-se ameaçado com Alguém como Jesus. Eu e tu, somos ameaça para o mal?

A autoridade de Jesus também se baliza pela regressão do mal: «Cala-te e sai desse homem».

Não há espíritos impuros que possam aprisionar aqueles que se apoiam em Cristo e na Sua Graça santificante. Os espíritos impuros têm poder sobre nós quando nos deixamos conduzir pelo nosso egoísmo.

Enquanto há vida, há sempre possibilidade de Deus voltar a habitar em nós.

5 – Moisés é um líder extraordinário, instrumento de Deus para libertar o Povo da escravidão do Egito. As palavras de Deus confirmam-no como Profeta entre os seus irmãos: “Farei surgir para eles, do meio dos seus irmãos, um profeta como tu. Porei as minhas palavras na sua boca e ele lhes dirá tudo o que Eu lhe ordenar”.

Moisés tinha dificuldades de dicção, gaguejava, mas foi chamado por Deus para levar ao meio do povo as Suas palavras. Deus não chama os capacitados, mas capacita aqueles que chama. Moisés tornar-se-á um dos líderes mais emblemáticos do Povo de Israel. Ele traz a autoridade de Deus, nas palavras e nos gestos, e em nome de Deus liberta o povo e condu-lo pelo deserto até às proximidades da Terra Prometida. Quem se anuncia a si, perde-se, mais tarde ou mais, por mais sedutor que seja, não passarão de palha as suas palavras. Exorta-nos São Judas sobre os falsos profetas: “São nuvens sem água arrastadas pelo vento; árvores de Outono sem fruto… astros errantes para os quais está reservada para sempre a mais tenebrosa escuridão… são murmuradores, queixosos da sua sorte; da sua boca saem palavras pomposas, para adularem as pessoas, em vista do próprio interesse”.

6 – Como cristãos não estamos isentos desse risco, de nos colocarmos como referência que ofusca a Luz, a Mensagem, a Vida que vem de Jesus. A nossa opacidade precisa de ser depurada constantemente pela graça do Seu Espírito Santo que nos habita. Vigiar e converter-se de todo o coração ao Senhor, nosso Deus.

A oração faz-nos humildes, reconhecendo que estamos a caminhar e que o caminho é seguro se Ele vai connosco. A cada instante importa pôr-se à escuta e deixar que Ele nos fale ao coração. “Concedei, Senhor nosso Deus, que Vos adoremos de todo o coração e amemos todos os homens com sincera caridade”.

A intimidade, proximidade, cumplicidade ao Senhor, pela oração, fortalece e clarifica as nossas escolhas e comprometimentos com os outros, dispondo-nos a acolhê-l’O, acolhendo, amando e servindo os nossos semelhantes. “Vinde, exultemos de alegria no Senhor, aclamemos a Deus, nosso Salvador. Vamos à Sua presença e dêmos graças… adoremos o Senhor que nos criou; pois Ele é o nosso Deus e nós o seu povo”.

A oração implica-nos com o que pedimos e com o que escutamos da parte de Deus.

7 – A nossa autoridade, não vem de nós, vem de Jesus Cristo. Importa segui-l’O no serviço e no perdão, na ternura, na bondade e na misericórdia. Quando nos deixamos plasmar pelo Espírito de Deus, a nossa vida adquire segurança, na fidelidade à Sua Palavra. É a única autoridade que não nos cristaliza na sobranceria, no egoísmo e na inveja. Imitando Cristo, não somos senhores, mas servos. Passa por aí, consequentemente, a tal coerência de vida. Não que não estejamos sujeitos a falhar, mas o reconhecimento que estamos a caminho e que dependemos da Sua misericórdia, abre o nosso coração à conversão.

O Apóstolo Paulo recorda-nos, sempre, o motivo da nossa alegria, os cuidados a termos, e as certezas em que se baseia a nossa fé, que nos conduz à missão e à caridade, à oração e à comunidade fraterna.

Jesus é o fundamento, a inspiração e o sustentáculo na nossa fé, esperança e caridade.

Pe. Manuel Gonçalves


Leituras para a Eucaristia (ano B): Deut 18, 15-20; Sl 94 (95); 1 Cor 7, 32-35; Mc 1, 21-28.