Domingo VI do Tempo Comum – ano A – 16 de fevereiro de 2020 –

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Domingo VI do Tempo Comum – ano A – 16 de fevereiro de 2020 –

1 – «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogar, mas completar. Em verdade vos digo: Antes que passem o céu e a terra, não passará da Lei a mais pequena letra ou o mais pequeno sinal, sem que tudo se cumpra… Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos Céus».

As palavras de Jesus aos discípulos são clarividentes e inequívocas. Não há margem para discussões, dúvidas ou ponderações. Jesus tem consciência que completa, aperfeiçoa e leva à plenitude a Lei, que é anunciada, vivida e traduzida na Sua mensagem e sobretudo com a Sua vida, na entrega até à morte e na ressurreição que mostra que o amor sobrevive a tudo, até à própria finitude. Sermos Seus discípulos implica-nos, compromete-nos com o Seu mandamento: Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei! E Jesus amou-nos até ao Infinito, gastando-Se inteiramente. Dir-nos-á Santo Agostinho: ama e faz o quiseres! A Lei do Amor faz-nos cuidar dos outros, amar e servir os nossos semelhantes, colocando-os em primeiro lugar, onde Deus, assim nos mostra Jesus, os colocou. Amor com amor se paga, segundo São João da Cruz. O amor de Deus por nós, que nos dá o Seu Filho muito amado, cujo amor O revela desprendido, dando-Se por inteiro, levar-nos-á a uma resposta, a sermos responsáveis, não tanto por Deus, mas por aqueles que Deus coloca na nossa vida.

Um amor que não desiste. Não desiste diante das primeiras dificuldades nem às seguintes, mas persiste até onde é humanamente possível. Vivemos um tempo paradoxal. Nunca como hoje a medicina evoluiu tanto e, parece, que nunca como hoje as pessoas estão tão prontas para desistir umas das outras, basta um arrufo ou uma lei que me diga que não posso ser preso por tal desfaçatez e, então, até posso matar em nome da lei.

2 – O amor é exigente! Sem dúvida! Exige fidelidade, constância, paciência, cuidado, trabalho e esforço, às vezes sacrifício, envolve sofrimento, exige preocupação, traduz-se em carinho, atenção, em serviço. Uma mãe levanta-se de noite umas quatro ou cinco vezes porque ouve o filho chorar, não o faz por prazer, nem com alegria, sobretudo depois de muitas noites inquietas e mal dormidas, fá-lo por amor e, se a linguagem nos for permitida, fá-lo por obrigação, mas esta não é exterior, é interior, é expressão e consequência do amor.

Um pai, um educador, uma pessoa mais velha tem de ter muita delicadeza para com um filho, um educando, uma criança, quase não se pode dizer nada porque a criança pode ficar traumatizada! Mas a delicadeza, o amor e a compreensão exigem resposta, traçam linhas firmes e limites claros. Assim se educam as pessoas. Não é o desculpabilizar tudo e mais alguma coisa, relativizar os erros e colocá-los lado a lado com a verdade e o bem. Colocar paninhos quentes ou fazer de conta que não aconteceu nada, em situações mais ou menos graves, não educa, não faz crescer, porque não ensina os limites, as fronteiras. Estas são essenciais para sabermos quem somos e como valorizar e respeitar os outros. É possível conjugar e equilibrar o carinho com a verdade, a delicadeza com a firmeza, ainda que seja uma tarefa que exige uma atenção permanente.

Quando os pais exigem e colocam regras não o fazem para dizer quem manda, mas a pensar no bem dos filhos, para que eles aprendam a viver, a enfrentar as dificuldades, a aceitar as imperfeições e a não desistir diante dos fracassos. O amor não é e não pode ser frouxo, indeciso, incolor, insosso! Os mandamentos são expressão do amor e do cuidado, pistas, desafios, caminhos seguros. Também Deus não exige por capricho, mas como Pai/Mãe que nos ama, nos quer bem e nos desafia a dar o melhor. E, por outro lado, a não desistirmos de ninguém, nem de nós nem dos outros. Os outros são a oportunidade da nossa redenção. As separações, os divórcios são, em todo o caso, uma falência do amor, do compromisso, da fidelidade. Claro que, no concreto, há dificuldades e alguns acabam por se tornar intransponíveis, pelos feitios, pela persistência no mal, pelo desrespeito… noutras foram as pequenas coisas, silêncios e gestos… distrações e desatenções!

3 – Jesus não vacila, leva mais longe a lei, a melhor das leis: o amor.

«Ouviste o que foi dito: Não matarás… Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que se irar contra o seu irmão será submetido a julgamento… se fores apresentar a tua oferta ao altar e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão e vem depois apresentar a tua oferta».

O primeiro contraponto: não basta não fazer mal, é preciso amar, cuidar, tomar a iniciativa para restabelecer as ligações. O louvor a Deus exige a comunhão com os outros. Eu não mato, não roubo, logo não tenho pecados! Não faço mal a ninguém e se há alguém chateado comigo não tenho culpa, não fui eu que provoquei! Certo, mas o cristão, o seguidor de Jesus, tem a missão de dar a outra face, de procurar compor, unir, restaurar, remendar os relacionamentos. Nem sempre é fácil, algumas relações são tão desumanas e destrutivas que precisam da distância suficiente para que a vida, a dignidade e a saúde sejam possíveis.

E Jesus prossegue: «Ouviste o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que olhar para uma mulher com maus desejos já cometeu adultério com ela no seu coração… Todo aquele que repudiar sua mulher, salvo em caso de união ilegítima, expõe-na ao adultério. E quem se casar com uma repudiada comete adultério».

O amor autêntico procura que o outro seja, viva e se sinta feliz e, por outro lado, repudia a instrumentalização do outro, que não é e não pode ser um objeto, um capricho, não o posso dispensar nas primeiras dificuldades. O outro é um “eu” que não se reduz a mim, é lugar tenente do próprio Deus.

A vida também se realiza nas palavras e por uma linguagem que aproxima, que engrandece o outro, que transpareça amor e lealdade. Diz-nos Jesus: «Ouvistes ainda que foi dito aos antigos: ‘Não faltarás ao que tiveres jurado, mas cumprirás diante do Senhor o que juraste’. Eu, porém, digo-vos que não jureis em caso algum: nem pelo Céu, que é o trono de Deus; nem pela terra… A vossa linguagem deve ser: ‘Sim, sim; não, não’. O que passa disto vem do Maligno». Somos mais que as palavras que proferimos, mas o que dizemos também nos diz, também nos traduz. Há palavras que matam, há juramentos que destroem a humanidade que há em nós.

4 – Há muitos anos, li um livro (perdi-lhe o rasto) do Pe. Zezinho. Numa das reflexões propostas, o Pe. Zezinho dizia que para ajudar alguém mais lento, alguém coxo, é preferível caminhar um pouco à frente para incentivar o outro a caminhar e não fazer de conta que se é coxo, atrasando o passo. Com a preocupação de ajudarmos, talvez estejamos a dar a ideia ao outro que o passo certo é aquele. Os mandamentos desafiam-nos, interpelam-nos, apontam o ideal. Cabe-nos procurar acertar o passo. Jesus ajusta-Se, num primeiro momento, ao nosso caminhar, à nossa vida, mostrando como ajustar-nos a Ele, ao Seu amor, ao modo como Se gasta a favor de todos, especialmente dos mais frágeis.

Deus não Se impõe, propõe-Se e os mandamentos fazem parte desta proposta que nos humaniza e irmana. “Se quiseres, guardarás os mandamentos… Deus pôs diante de ti o fogo e a água: estenderás a mão para o que desejares. Diante do homem estão a vida e a morte: o que ele escolher, isso lhe será dado… Não mandou a ninguém fazer o mal, nem deu licença a ninguém de cometer o pecado”.

A civilização do amor, a cultura da vida, parece uma miragem. Facilita-se a morte, a desistência, o comodismo, a autonomia radical. Há uma publicidade que ilustra este tempo em que vamos: ouves a água a pingar na banca, tomas um comprimido e adormeces tranquilamente! Remédio santo! E porque não ir fechar a torneia? E porque não colocar uma toalha na torneira de forma a pingar deslizando e sem barulho? E porque não compor ou mandar a torneia?

Os mandamentos expressam o cuidado de Deus para connosco. Não são uma guilhotina que nos é colocada sobre a cabeça, são sinais, indicações que garantem que vamos por um bom caminho. «Felizes os que seguem o caminho perfeito e andam na lei do Senhor. Felizes os que observam as suas ordens e O procuram de todo o coração».

5 – O Salmo coloca os nossos lábios e o nosso coração, em sintonia, a responder a Deus com as Suas palavras. Por outro lado, interpela-nos e compromete-nos com a resposta que Lhe damos: «Abri, Senhor, os meus olhos para ver as maravilhas da vossa lei. Ensinai-me, Senhor, o caminho dos vossos decretos, para ser fiel até ao fim. Dai-me entendimento para guardar a vossa lei e para a cumprir de todo o coração».

Sabemos que a Lei do Senhor nos guia para a verdade, nos envolve na alegria, nos enxerta na esperança, nos desafia à caridade. A Lei tem rosto, a Lei faz-Se carne em Jesus Cristo Para nós, que distamos vinte séculos da existência histórica de Jesus, é o Espírito Santo que nos revela a lei, a sabedoria de Deus. Como refere o Apóstolo São Paulo, a sabedoria que vem do Deus, para glória de Deus, não está sujeita à usurpação, é dada aos simples e puros de coração.

 

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Sir 15, 16-21 (15-20); Sl 118 (119); 1 Cor 2, 6-10; Mt 5, 17-37.