Domingo XVIII do Tempo Comum – ano A – 2 de agosto de 2020

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Domingo XVIII do Tempo Comum – ano A – 2 de agosto de 2020

1 – “Se eu tenho fome, é um problema biológico, se o meu irmão ou irmã tem fome, é um problema espiritual” (Nicholas Berdyaev). Jesus é taxativo: somos responsáveis uns pelos outros, somos irmãos, se alguém passa necessidade, cabe-nos, a mim e a ti, prover a que essa necessidade seja satisfeita.

Dai-lhes vós de comer! Um copo de água dado em Meu nome não ficará sem recompensa! Tive fome e deste-Me de comer; tive sede e deste-Me de beber! Estive doente e na prisão e foste ver-Me; estava nu e Me vestiste, era peregrino e Me acolhestes! O que fizerdes ao mais pequeno dos Meus irmãos é a Mim o fazeis. O que deixardes de fazer ao mais pequenos dos irmãos, a Mim o deixais de fazer (cf. Mt 25, 31-46).

A pobreza, a miséria extrema e tudo o que vem atrás, corrupção, violência, conflito, tráfico de pessoas e de órgãos, narcotráfico e toxicodependência, está a multiplicar-se, agudizando-se, neste tempo de pandemia.

Antes, como agora, o problema não é a escassez, o problema é a injusta distribuição da riqueza. O mundo produz alimentos mais que suficientes para a população mundial. Todos os anos são deitadas ao lixo ou destruídas toneladas de alimentos. Houve anos em que a UE pagava aos agricultores portugueses, e de outros países, para destruir determinado tipo de alimentos para fomentar o aumento de preços no mercado. E quando falamos em alimentação, falamos noutras necessidades básicas. Há recursos e discursos, mas nem sempre a vontade de executar o que se discute. A economia preocupa-se mais com percentagens do que com pessoas.

2 – A Igreja, desde o início, levou a sério a mensagem de Jesus. Nem poderia ser de outra maneira. Como em tudo, houve épocas em que a dimensão social foi descuidada e/ou esquecida. É sempre um risco, acentuar uma dimensão em prejuízo da outra. A Igreja é simultaneamente Maria e Marta. Quanto mais nos pusermos perto de Jesus e à escuta da Sua Palavra, mais comprometidos ficamos com o nosso semelhante.

São Tiago é contundente: “De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: «Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome», mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está morta” (2, 14-17).

São João afina pelo mesmo diapasão: “Quem diz que permanece em Deus também deve caminhar como Ele caminhou… Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele? Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1 Jo 2, 6; 3, 16-18).

O maior evangelizador de todos os tempos, São Paulo, não descura a atenção aos mais necessitados. É bem conhecida a coleta que Paulo promove junto das comunidades da Macedónia e de Corinto a favor de Jerusalém: “Mas, dado que tendes tudo em abundância – fé, dom da palavra, ciência, toda a espécie de zelo e amor que em vós despertámos – cuidai também de sobressair nesta obra de caridade… conforme as vossas possibilidades… Não se trata de, ao aliviar os outros, vos fazer entrar em apuros, mas sim de que haja igualdade. No momento presente, o que vos sobra a vós supera a indigência dos outros, para que um dia o supérfluo deles compense a vossa indigência. Assim haverá igualdade” (2 Cor 8, 7-14).

Na primeira comunidade cristã, “todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um. Como se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o templo, partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração” (Atos 2, 44-46). Os Apóstolos instituem o diaconado para um serviço mais cuidado e concreto ao grupo mais vulnerável desse tempo, os órfãos e as viúvas.

3 – A Teologia da Libertação foi um grito comprometido com os mais pobres. Nem sempre compreendida, mas a intuição original procurou envolver os próprios pobres na resolução dos problemas, acentuando que não era possível pregar a estômagos vazios, exarar programas feitos em escritórios distantes por quem não conhecia a realidade, com executores que não se entranhavam na realidade. Outra das expressões que ficou célebre – opção preferencial pelos pobres – remetia para a opção de Jesus para com os pequeninos, os doentes, os excluídos, pecadores e publicanos, mulheres e estrangeiros. O Episcopado latino-americano e caribenho convocou diversas Assembleias para refletir, avaliar o caminho percorrido e apresentar propostas de ação.

A V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, em 2007, em Aparecida, contou com a intervenção marcante dos dois últimos Papas. O futuro Papa Francisco, então Cardeal, foi o relator-presidente, cabendo-lhe apresentar o Documento Final. Bento XVI esteve presente para o encerramento da Assembleia, oportunidade para vincar o fundamento da libertação centrada em Cristo. A libertação não pode ser apenas a nível económico, mas integral. E, por outro lado, a referência fundamental a Cristo evita a instrumentalização das pessoas e o esvaziamento da dimensão espiritual. É Cristo que nos liberta com a Sua morte e ressurreição. O risco da Teologia da Libertação seria reduzir-se a uma ideologia com rosto marxista.

Mais tarde o Cardeal responderá a uma jornalista sobre uma possível ingerência da Santa Sé no decorrer da Assembleia de Aparecida. Responde o Cardeal Jorge Bergoglio: “O papa [Bento XVI] deu indicações gerais sobre os problemas da América Latina e, depois, deixou em aberto: fazei vós, fazei vós! Foi um gesto muito grande, esse, por parte do Papa”.

4 – As multidões seguem Jesus. Depois das notícias sobre a morte de João Batista, Jesus afasta-Se para um local isolado, mas logo as multidões vão ao Seu encontro. Ao desembarcar, Jesus vê uma grande multidão e, cheio de compaixão, cura os seus doentes. Ao cair da tarde, os discípulos chamam a atenção do Mestre, para que mande toda a gente embora, pois não há como alimentar tantas bocas.

A resposta de Jesus é elucidativa: «Não precisam de se ir embora; dai-lhes vós de comer». Os discípulos, contudo, veem as dificuldades: «Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes». Hoje somos nós os discípulos. Tanta gente a passar fome, não podemos fazer nada. Que ajude quem pode! Vamos ajudar mandriões? Porque é que os grandes não fazem nada? Eu ajudava, mas não posso ajudar toda a gente, não posso ajudar sempre! E que ia resolver, agora ajudava, mas depois, as pessoas continuarão a precisar?!

A Madre Teresa dá a solução: ajuda, aqui e agora, esta pessoa. A pessoa que tens à frente precisa da tua ajuda, trata dela, cura-lhe as feridas, alimenta-a. Não podes resolver os problemas de todo o mundo, mas não deixes, em nome de muitos problemas, de resolver o que tens à frente.

É isso que Jesus nos ensina: procurar soluções e fazer o que está ao nosso alcance. “Tomou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao Céu e recitou a bênção. Depois partiu os pães e deu-os aos discípulos e os discípulos deram-nos à multidão. Todos comeram e ficaram saciados. E, dos pedaços que sobraram, encheram doze cestos. Ora, os que comeram eram cerca de cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças”.

5 – Milagre da multiplicação ou milagre da partilha? As duas coisas! O milagre existe. Os discípulos concluíram rapidamente que era insustentável fazer com que cinco pães e dois peixes desse para tanta gente! Jesus toma o nosso contributo e multiplica-o. Quando partilhamos o pouco que temos, diria o Papa João Paulo II, numa mensagem quaresmal, o pouco, partilhado, dá para muitos, dá para todos, e sobeja!

Há um simbolismo que não pode ser secundarizado, sobretudo se acentuarmos a partilha. Cinco pães e dois peixes, redunda em sete, o número da perfeição, da plenitude. Havia o suficiente, ou ainda mais, para que todos pudessem matar a fome. Apenas um miúdo se chegou à frente. Daqui se vê que o milagre exige de nós, não é uma espécie de magia que resolve os problemas e nos dá a vida de mão-beijada. Temos de agir!

Com a evolução científica e tecnológica, o milagre da multiplicação existe, falta cumprir o milagre da partilha. A generosidade para com os outros, diz São Paulo, não visa colocar-nos em apuros, mas cumprir a igualdade e a justiça, imitando Jesus, que sendo rico Se fez pobre, para, na Sua pobreza, nos enriquecer. Há empresas sustentáveis que levam em conta as necessidades das pessoas. É dado como exemplo a Delta e Rui Nabeiro que, ao longo dos tempos, também nos momentos de crise, não despede e distribui dividendos pelos trabalhadores, que por sua vez, se dedicam ainda mais ao trabalho e ao crescimento da empresa. É também a filosofia de E. Leclerc, seminarista, cujos hipermercados, com o seu nome distribuem 15% dos lucros anuais pelos funcionários.

6 – Generosidade e gratuidade! Felizmente há muitas pessoas que fazem da bondade a sua vida, multiplicando a alegria, conscientes do caminho que falta fazer. Associada à generosidade anda a gratuidade. Quanto damos por obrigação “imposta” ou para parecer bem, a dádiva é um fardo, que gera lamento e reclamação: estamos a dar para outros esbanjarem?! A lógica do Evangelho é diferente: damos do que temos, e damos do que somos, com alegria, à imitação do divino Mestre, que não reserva nada para Si, dá-Se por inteiro.

Na primeira leitura, o profeta Isaías traz-nos a Palavra do Senhor: «Todos vós que tendes sede, vinde à nascente das águas. Vós que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei. Vinde e comprai, sem dinheiro e sem despesa, vinho e leite. Porque gastais o vosso dinheiro naquilo que não alimenta e o vosso trabalho naquilo que não sacia? Ouvi-Me com atenção e comereis o que é bom; saboreareis manjares suculentos».

A nossa lógica espelha-se na economia de mercado, compramos e vendemos, avaliamos os produtos e procuramos obter o maior lucro; a lógica do Senhor orienta-se pela gratuidade generosa. Claro, que a sociedade tem de buscar os mecanismos mais justos, os instrumentos mais eficazes de produção e de evolução, rentabilizando e potenciando os investimentos, o que protegerá e criará mais emprego. É possível criar riqueza, com honestidade, buscando a justiça solidária.

As palavras do Senhor apontam já para outro alimento, não apenas o biológico, mas o alimento que dá sentido e sabor à vida, e sem o qual tudo o mais é penoso e destrutivo.

7 – De que adianta ter o mundo inteiro, se a nossa vida não tem sentido, se vivemos numa ansiedade permanente, num vazio que nos esmaga? Podemos ter tudo, viver à grande e à francesa, enfartados com os bens que adquirimos, mas se nos falta a amizade, a companhia, o amor, de que vale o que possuímos?

Somos caminho, não estamos concluídos, ainda que integremos a santidade de Jesus Cristo, busquemos a perfeição do Pai e nos deixemos inspirar pelo Espírito Santo! É o amor que nos salva. Amar e sentirmo-nos amados. Não podemos obrigar os outros a gostar de nós, mesmo que, aqui e além possamos corrigir o nosso feitio e limar as nossas birras, mas sem amor ninguém vive, quando muito, sobrevive. Aparentemente é o dinheiro que controla tudo, sem ele a vida pode tornar-se mais difícil, mas experimentemos viver sem amor, sem nos sentirmos amados, sem termos quem amar!

Jesus mostra-nos o Amor que gera vida e nos faz permanecer para sempre. “Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo ou a espada? Mas em tudo isto somos vencedores, graças Àquele que nos amou. Na verdade, eu estou certo de que nem a morte nem a vida, nem os Anjos nem os Principados, nem o presente nem o futuro, nem as Potestades nem a altura nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que se manifestou em Cristo”.

Ainda que o caminho possa ser uma corrida de obstáculos, ainda assim, é um sossego saber que não estamos perdidos, Ele continua a caminhar connosco, ajudando-nos a levantar, animando-nos, amparando as nossas quedas, iluminando o que está diante de nós, esperando por nós, confiando em nós, e garantindo-nos que a nossa vida não nos leva ao abismo, ao vazio, à destruição, mas será por Ele garantida para sempre. Então, tudo faz sentido. Caminhemos e alimentemos a vida de amor e generosidade.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Is 55, 1-3; Sl 144 (145); Rom 8, 35. 37-39; Mt 14, 13-21.