Domingo XX do Tempo Comum – ano A – 2023

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Domingo XX do Tempo Comum – ano A – 2023

1 – “Na Igreja há espaço para todos. E, quando não houver, por favor, façamos com que haja, mesmo para quem erra, para quem cai, para quem sente dificuldade. Todos, todos, todos”. Estas palavras, proferidas pelo santo Padre, em Lisboa, na JMJ, têm tido amplo eco nos meios de comunicação social e nas redes sociais. Tal como Jesus, também o Papa visa cultivar a proximidade, a abertura dos cristãos e da Igreja, o acolhimento de todos, o reconhecimento da riqueza das diferenças. Como viria a responder aos jornalistas, a Igreja é para todos, o Evangelho destina-se a todos e todos são chamados e enviados.

Porém, o acolhimento pressupõe identidade, que não se dilui, há orientações, linhas, regras que nos identificam com Jesus, com a Palavra de Deus e fazem da Igreja o Corpo de Cristo, no tempo e na história. Não é uma anarquia! Todos têm lugar e todos são interpelados a viver ao jeito de Jesus, na hospitalidade, no serviço e no perdão, na prossecução da justiça e da paz. Como qualquer sociedade, constituída por pessoas, exige e pressupõe um conjunto de normas que facilitam uma sadia convivência e operacionalizam a evangelização. A identidade, o rosto, não é light, uma espécie de água de rosas. Escutemos novamente o Papa Francisco: “Peçamos ao Senhor a graça de não cair neste espírito de ‘cristãos pela metade’ ou, como dizem as velhinhas, ‘cristãos de água de rosas’, assim, sem substância. Cristãos bons, mas que trabalham tanto – semearam muito, mas colheram pouco. Vidas que prometiam muito e, no final, não fizeram nada”.

A referência é sempre Jesus, que vem em busca dos pecadores, dos doentes, dos excluídos, não para os deixar na mesma situação, mas para os libertar, para os curar, para os incluir no reino de Deus. Como dirá à mulher apanhada em flagrante adultério: vai… e não voltes a pecar. A Igreja é para todos, porque é casa de Deus, porque é Corpo de Cristo, está de portas abertas, não para se identificar com qualquer comportamento ou postura, mas para ser rosto e presença do Senhor e para que nela se encontre a paz e o amor, a fraternidade, para ser caminho para Jesus, sem condições prévias, mas para gerar conversão. Sublinhe-se que a identidade não pode servir de desculpa para integrar e acolher, pelo contrário, a consciência da pertença a Cristo leva-nos à evangelização, à propagação do Evangelho, a testemunhar e contagiar todos os que encontrarmos na nossa vida, mas, concomitantemente, não deixamos de ser o que somos só para evitar incómodos ou conflitos!

2 – O episódio que nos é apresentado no Evangelho expõe o elitismo dos discípulos, o conforto no grupo, e a pedagogia de Jesus que desafia à abertura, concluindo que a fé é a única condição, à partida, para aceder à graça de Deus, porque, por ser graça, é proposta, é gratuita. Tudo se paga, dizia o santo Padre em Lisboa, tudo se paga, menos o amor de Jesus.

Uma mulher cananeia interpela Jesus: «Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim. Minha filha está cruelmente atormentada por um demónio». É estranha a atitude de Jesus! Não responde, aparentando indiferença, o que leva os apóstolos a interceder: «Atende-a, porque ela vem a gritar atrás de nós». Já é alguma coisa, mas o interesse dos apóstolos não se fixa tanto nas necessidades da mulher, mas, antes, no facto de estarem a ser incomodados pela sua gritaria. Como mãe, esta mulher expõe-se, sujeita-se a passar vergonha, a ser considerada louca, mas o amor que a une à filha é maior que qualquer sacrifício.

O diálogo prossegue e Jesus sublinha uma possível precedência: «Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel». Mais do que o pensar do Mestre, como se verá em muitas outras ocasiões, esta é a sensibilidade dos discípulos e do povo judeu. A eleição do Povo de Israel, contudo, é instrumental, pois visa a humanidade inteira.

Entretanto, a mulher prostra-se diante de Jesus e suplica: «Socorre-me, Senhor». Obtém uma resposta semelhante à dada aos discípulos: «Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos».

Quantas vezes, pensamos que Deus não ouve as nossas preces e desistimos de rezar por não obtermos imediatamente o que desejamos. Jesus dir-nos-á para insistirmos e sermos firmes na oração, pois Deus, que é Pai, não deixará de nos atender. É o que faz esta mulher, insiste, pois está em causa a saúde da sua filha. O amor de mãe não tem limites e desistir não é opção para quem ama. «É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos».

A resposta, e a subsequente ação, de Jesus não deixam margens para hesitações: Deus escuta-nos quanto rezamos com fé: «Mulher, é grande a tua fé. Faça-se como desejas».

3 – A universalidade do Evangelho e da salvação leva tempo a ser acolhida, assimilada e vivida.

A comunidade dos discípulos de Jesus, num primeiro momento, manteve-se tranquila por Jerusalém, até que as perseguições irromperam com evidência. No momento de sair desse recanto, Pedro confronta-se com a sua idiossincrasia e hesita em se misturar com os pagãos, só a custo o fará.

Num sonho, Pedro é chamado a sair de um registo elitista e preconceituoso. É dessa forma que confessa ao centurião da coorte itálica: «Vós sabeis que não é permitido a um judeu ter contacto com um estrangeiro, ou entrar em sua casa. Mas Deus mostrou-me que não se deve chamar profano ou impuro a homem algum…» (Atos 10, 28). O gesto de Pedro provocará a irritação dos circuncisos, isto é, dos judeus convertidos ao cristianismo, obrigando-o a justificar-se: «… se Deus lhes concedeu o mesmo dom que a nós, por terem acreditado no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para me opor a Deus?» (Atos 11, 17).

Não é fácil agir fora do próprio grupo. Como não lembrar Tiago e João que proíbem um homem que anunciava o Evangelho, só porque não pertencia ao grupo dos discípulos?! A repreensão de Jesus é categórica, lembrando que o importante é mesmo a mensagem transmitida e não a origem pátria ou religiosa de quem a anuncia. As últimas palavras de Jesus são taxativas: ide por todo o mundo e fazei discípulos de todas as nações!

4 – Não basta saber, é essencial pôr-se a caminho. Não é suficiente ter muitos conhecimentos, é fundamental que as palavras se traduzam e se concretizem em vida. A Sagrada Escritura traz-nos diversas passagens que pressupõem e desafiam a abertura a outras nações e a hospitalidade para com os estrageiros.

Desde logo, o carater eletivo do Povo hebreu implica que se torne luz para todas as nações. O próprio Abraão é estrangeiro, errante, emigrante em Canaã. É chamado para que nele sejam abençoados todos os povos da terra. O exílio há de acentuar a dimensão universal do judaísmo, que não está depende (apenas) do território, mas pode e deve ser vivido onde os judeus se encontram.

A palavra do Senhor, dirigida a Isaías, é inequívoca: «Quanto aos estrangeiros que desejam unir-se ao Senhor para O servirem, para amarem o seu nome e serem seus servos, se guardarem o sábado, sem o profanarem, se forem fiéis à minha aliança, hei de conduzi-los ao meu santo monte, hei de enchê-los de alegria na minha casa de oração. Os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceites no meu altar, porque a minha casa será chamada ‘casa de oração para todos os povos’».

A exigência é igual para todos, nativos ou estrangeiros: «Respeitai o direito, praticai a justiça, porque a minha salvação está perto e a minha justiça não tardará a manifestar-se».

5 – São Paulo anunciou, primeiramente, o Evangelho aos seus conterrâneos, mas a recusa deles precipita o anúncio aos pagãos. Nesta missiva aos romanos, parece o apaixonado recusado ou traído: «Enquanto eu for Apóstolo dos gentios, procurarei prestigiar o meu ministério a ver se provoco o ciúme dos homens da minha raça e salvo alguns deles. Porque, se da sua rejeição resultou a reconciliação do mundo, o que será a sua reintegração senão uma ressurreição de entre os mortos? Vós fostes outrora desobedientes a Deus e agora alcançastes misericórdia, devido à desobediência dos judeus. Assim também eles desobedecem agora, de modo que, devido à misericórdia obtida por vós, também eles agora alcancem misericórdia».

Ouvíamo-lo há oito dias a dizer que não se importava de ser separado de Cristo se isso significasse a conversão dos seus irmãos judeus e, agora, a confissão de quem não desistiu de os provocar e de lhes anunciar Jesus, morto e ressuscitado. Com efeito, «Deus encerrou a todos na desobediência, para usar de misericórdia para com todos». Todos são destinatários da salvação.

6 – Se a salvação está destinada a todos, cada um de nós é responsável em a tornar visível para os outros, pelas palavras e pelas obras, com a voz e com a vida.

Com o salmista, rezamos a confiança em Deus que Se revela na bênção e na justiça. «Deus Se compadeça de nós e nos dê a sua bênção, resplandeça sobre nós a luz do seu rosto. Na terra se conhecerão os vossos caminhos e entre os povos a vossa salvação. / Alegrem-se e exultem as nações, porque julgais os povos com justiça e governais as nações sobre a terra. / Os povos Vos louvem, ó Deus, todos os povos Vos louvem. Deus nos dê a sua bênção e chegue o seu temor aos confins da terra».

Estamos no mesmo barco, debaixo do mesmo céu, sobre a mesma terra, somos irmãos, filhos do mesmo Pai, o Deus que em Cristo Se identifica connosco e nos faz caminhar, como família, até à eternidade.

Unidos na identidade, na origem, na filiação, unamo-nos na oração: «Senhor nosso Deus, que preparastes bens invisíveis para aqueles que Vos amam, infundi em nós o vosso amor, para que, amando-Vos em tudo e acima de tudo, alcancemos as vossas promessas, que excedem todo o desejo».

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Is 56, 1. 6-7; Sl 66 (67); Rm 11, 13-15. 29-32; Mt 15, 21-28.