Domingo XXIV do Tempo Comum – ano A – 2023

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Domingo XXIV do Tempo Comum – ano A – 2023

1 – Deus não desiste de nós. O que quer Deus senão que o pecador se converta e viva? É fácil que desistamos uns dos outros. Embora diferentes, cada pessoa é única, há mágoas que muito dificilmente conseguimos superar. Se errar é humano, dizemo-lo amiúde, perdoar é divino. Há ofensas que nos colocam em causa e levamos tempo a compreender, a aceitar, a relevar.

Pior quando a ofensa é daqueles em quem confiamos e por quem temos grande estima e proximidade. Se são meros conhecidos não têm acesso facilitado ao nosso coração, ouvimos e passamos adiante, pois não temos necessidade de confronto, de esclarecimentos, de conjugar a ofensa com a amizade e a confiança. Claro que a sensibilidade de cada um é específica, há quem viva, não em função do que é e do que pensa, mas em função do que os outros dizem ou possam vir a dizer e, aí, qualquer reparo, sugestão, crítica, é o fim do mundo.

Ficar magoado e guardar rancor retira alegria, paz e tempo à pessoa, pois está refém da ofensa do outro. Como diria Augusto Cury, quem não perdoa, dorme com o inimigo, a todo instante o seu pensamento está preso à pessoa-agressora. Haja ou não razões fundadas. As relações pessoais afetam, direta ou indiretamente, a vida profissional, familiar e/ou comunitária. O distanciamento de duas pessoas provocará o afastamento de outras pessoas, podendo criar divisões e conflitos insanáveis que fazem perigar a vida em família, num grupo de amigos, na comunidade ou no trabalho. A proposta de Jesus dá primazia ao amor, ao perdão, à fraternidade. As diferenças hão de servir para enriquecer a comunidade, o perdão é a única cura possível para conflitos, amuos e cisões.

2 – Mas até onde podemos ou devemos perdoar? Até sete vezes? Dez vezes? Duas ou três vezes?

Não se trata por certo de quantidade, até porque as pessoas não são iguais e as ofensas não se medem apenas pela natureza das mesmas, mas pelo momento, pelo caráter da relação entre as pessoas envolvidas, pela sensibilidade, até pela forma ou pelo contexto.

A pergunta de são Pedro mostra generosidade, largueza, humildade. Perdoar até sete vezes é mais do que expectável, ultrapassa o bom-senso, vai além do que se pode tolerar. Perdoar uma vez, é natural; duas, é razoável; perdoar três vezes à mesma pessoa, por situações similares, começa a ser abuso! Perdoar uma quarta vez ou quinta, já é burrice ou ingenuidade!

Ora, a resposta de Jesus deixa-nos consternados: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete».

Não é preciso fazer contas, até porque os números, na linguagem semita, têm um simbolismo próprio. Ainda que se fizessem contas, 490 vezes, já seria, por si, um número de vezes impensável. Trata-se, destarte, de perdoar sempre, sem condições, sem reservas, sem esperar pelo pedido de perdão da outra parte. É possível que haja situações que não conseguiremos esquecer, tal a ofensa, mas podemos decidir, com a ajuda da oração, com a ajuda de Deus, por relevar, aceitando que as falhas alheias também poderiam acontecer-nos em relação a outros. Mas não apenas isso, mas fundamentalmente porque essa é a opção de Jesus, que perdoa até àqueles que lhe provocam a morte, é a opção de um Deus que é Pai e ainda mais Mãe, e que nos ama além de todas as possibilidades, limitações, além de todas as condicionantes. Um pai / uma mãe não ama o filho porque ele é bom, justo e belo, ama porque é filho e, porque ama, para si, o filho é belo, bom e justo, ou a caminho de melhorar!

3 – Para exemplificar, Jesus conta-nos uma parábola sobre a abundância do perdão! O reino de Deus é comparável a um rei que quis ajustar contas com os seus servos. Apresentam-lhe um homem cuja a dívida ascendia a uns milhares largos de euros, 10 mil talentos.

“A dívida do servo da nossa história é muito superior ao dinheiro que então circulava no país inteiro! Mais coisa menos coisa, diz a Bíblia de Jerusalém, como 174 toneladas de ouro, que o estudioso Richard France, no seu belo Comentário ao Evangelho de Mateus, sobe para 300 toneladas!… entre 60 e 100 milhões de salários!” (D. António Couto, in Mesa de Palavras).

Um absurdo! Não há termo de comparação. O rei, todavia, perdoou-lhe a dívida. Riscou a dívida do orçamento do seu reino. Pelo caminho, prossegue Jesus, este homem, feliz da vida, encontra um companheiro que lhe devia cem denários. “Um talento equivalia a cerca de 6.000 denários, sendo um denário o correspondente a um salário diário”. Vemos a desproporção! Como sublinha, ainda, D. António Couto, rapidamente perdemos a memória!

4 – O sábio de Israel, Ben Sirá, deixa claro que o rancor e a vingança são destrutivos, próprios de quem permanece no pecado. O desafio é o perdão aos outros, para acolher o perdão de Deus, diante do Qual somos semelhantes, estamos em plano de igualdade.

Com efeito, «o rancor e a ira são coisas detestáveis… Perdoa a ofensa do teu próximo e, quando o pedires, as tuas ofensas serão perdoadas. Um homem guarda rancor contra outro e pede a Deus que o cure? … Se ele, que é um ser de carne, guarda rancor, quem lhe alcançará o perdão das suas faltas?».

Perdoar àqueles que nos ofendem é consequência do perdão de Deus para connosco. Não faz sentido querermos ser perdoados e, por nossa vez, não estarmos dispostos a perdoar aos nossos irmãos. Na verdade, como nos diz Jesus na parábola, a saldo é imensamente positivo a nosso favor. Deus perdoa-nos mais, muito mais que 10 mil talentos.

Ben Sirá faz-nos ver a vida a partir da fé e a partir do fim: «Lembra-te do teu fim e deixa de ter ódio; pensa na corrupção e na morte, e guarda os mandamentos. Recorda os mandamentos e não tenhas rancor ao próximo; pensa na aliança do Altíssimo e não repares nas ofensas que te fazem».

Perdoamos, não apenas porque desejamos que os outros nos perdoem, mas porque não ganhamos nada com isso, só preocupação, desgaste e ansiedade. Aproveitemos para viver e amar, ao invés de desperdiçarmos tempo com ódio e rancor.

E, razão primeira e última, porque a Aliança com Deus nos remete para a vivência dos mandamentos. Perdoar não é apenas uma opção, mas é, antes de mais, um mandamento que nos aproxima, nos solidariza nas fragilidades e nos faz caminhar como irmãos para a fraternidade, para uma comunidade justa e saudável. O rancor e o ódio geram pessoas doentes, facilitam uma postura depressiva, melancólica, agressiva. O perdão, não apenas beneficia quem dele usufrui, mas beneficia-nos, gera paz e alegria, e até autoestima, pois quem perdoa sente-se bem consigo próprio, sente-se recompensado, preenchido, capaz de dar, sem depender do que pode vir a receber.

5 – Nas suas intervenções, o santo Padre, o Papa Francisco, tem deixado um conselho muito útil: quando não conseguires perdoar, porque a ofensa foi grave, porque ainda é muito recente, reza. Reza a Deus por essa pessoa, até que lhe queiras bem. Não consegues perdoar, pede a Deus que perdoe por ti e vá dilatando o teu coração, até que aceites a pessoa com as suas fragilidades, incongruências e pecados.

No início da Eucaristia, pedimos com fé: «Deus criador e guia de todas as coisas, lançai sobre nós o vosso olhar e, para sentirmos em nós os efeitos do vosso amor, dai-nos a graça de Vos servirmos com todo o coração».

Há situações em que só o olhar de Deus em nós, sentindo o Seu amor, procurando olhar com o Seu olhar, podemos baixar as defesas, à procura de entendermos o que o outro nos fez, relativizando as suas palavras e os seus atos. Só as palavras de Deus são eternas, só os atos de Deus são absolutamente misericordiosos.

O salmista, por sua vez, faz-nos olhar para Deus e fixarmo-nos n’Ele, porque d’Ele nos vem a bênção, o amor, a paz e a certeza de que Ele segue connosco, na vida e na eternidade. É Ele a fonte do amor e do perdão. «Bendiz, ó minha alma, o Senhor e não esqueças nenhum dos seus benefícios. Ele perdoa todos os teus pecados e cura as tuas enfermidades. Salva da morte a tua vida e coroa-te de graça e misericórdia. / Não nos tratou segundo os nossos pecados… Como a distância da terra aos céus, assim é grande a sua misericórdia para os que O temem. Como o Oriente dista do Ocidente, assim Ele afasta de nós os nossos pecados».

Nós facilmente olhamos para os pecados uns dos outros, Deus olha para nós como filhos e age com misericórdia. A Sua misericórdia é sem limites.

6 – A concluir e como síntese, as palavras do apóstolo são Paulo: «Nenhum de nós vive para si mesmo e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, vivemos para o Senhor, e se morremos, morremos para o Senhor. Portanto, quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor. Na verdade, Cristo morreu e ressuscitou para ser o Senhor dos vivos e dos mortos».

O centro, o chão, o ponto de partida, a chegada é Jesus Cristo, que Se entregou para que tenhamos n’Ele a vida plena. O desafio é dizer e fazer tudo em Seu nome e para Sua maior glória. E a glória de Deus, como diria santo Ireneu, é a vida do homem. Se vivermos em nome de Jesus, agindo como Ele, estaremos mais perto de sermos fiéis à nossa filiação divina, mais próximos de sermos irmãos uns dos outros.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Sir 27, 33 – 28, 9; Sl 102 (103); Rom 14, 7-8; Mt 18, 21-35.