Domingo XXXI do Tempo Comum – Ano B – 2024
1 – Quem de entre vós quiser ser o primeiro seja o último e o servo de todos. Nos últimos domingos fomos vendo como Jesus prepara os Seus discípulos para viverem segundo o sonho de Deus, no Reino que Ele, Filho bem-Amado do Pai, veio inaugurar com a Sua vida, morte e ressurreição. Ele, que era de condição divina, fez-Se um de nós, da mesma carne que nós, frágil e finito no tempo, comungando os nossos sofrimentos, carregando sobre Si os nossos pecados, aliviando a nossa carga. Veio como Quem serve, dando a vida, gastando-Se por inteiro, a favor da humanidade inteira, a nosso favor.
Com efeito, relembra-nos a Epístola aos Hebreus, Ele é o Sumo Sacerdote que nos convinha: «santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores e elevado acima dos céus, que não tem necessidade, como os sumos sacerdotes, de oferecer cada dia sacrifícios, primeiro pelos seus próprios pecados, depois pelos pecados do povo, porque o fez de uma vez para sempre quando Se ofereceu a Si mesmo». Partilhando da nossa fragilidade humana, “revestido de fraqueza” pôde e pode compadecer-Se de nós, e oferecer-Se para nos redimir, elevando-nos para Deus e, ao mesmo tempo, dando-nos o exemplo, para que assim como Ele fez, façamos nós também. É a nossa condição de discípulos missionários. Estabelecido, pela ressurreição, Sacerdote perfeito, à direita do Pai, continua a atrair-nos para a glória de Deus.
A lógica é a do amor e do serviço, vislumbrada nos mandamentos, que valem como orientação, como desafio, no compromisso com os outros, sob o olhar e a bênção de Deus, dando-Lhe prioridade. Porém, como facilmente se compreende, havendo dúvidas, há de ser Cristo a referência, o tira-teimas a iluminar e enformar as nossas escolhas. Alguns quadros do Evangelho permitem-nos ficar esclarecidos, por exemplo, a parábola do Bom Samaritano, paradigma de Jesus que Se faz próximo de todos, preferencialmente dos mais desfavorecidos; ou o Lava-pés, com Jesus a ajoelhar-Se diante dos Apóstolos para lhes lavar os pés, num abaixamento completo.
2 – As perguntas a Jesus (também) permitem clarificar algumas dúvidas ou, como parece o caso de hoje, incentivar a viver na dinâmica dos mandamentos. Um escriba aproxima-se e pergunta-Lhe: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?».
O próprio escriba deveria saber qual o primeiro mandamento, até porque é um mandamento proclamado, desde tenra idade, em forma de oração e como profissão de fé. Perguntando-o em voz alta permite que outros ouçam a pergunta e sejam envolvidos na resposta. É como numa sala de aula, alguém faz uma pergunta, por exemplo, no decorrer de um teste, e todos têm a possibilidade de perceber melhor a pergunta e intuir a resposta!
«Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças». É primeiro mandamento e que prevalece sobre os demais, iluminando-os, não permitindo a sua instrumentalização, pois a Deus se prestará contas por todo o mal que se fizer, pelo bem que deixar de se fazer e em Deus serão abençoados todos os que procurarem servir o seu semelhante.
Logo Jesus acrescenta um segundo mandamento agrafado ao primeiro: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo». E conclui, dizendo que “não há nenhum mandamento maior que estes”.
Jesus faz com que não nos possamos desculpar ou justificar por só darmos importância a um dos mandamentos, o amor a Deus ou o amor ao próximo. Na verdade, quem ama a Deus terá que amar quem Deus ama, ora se Deus nos criou por amor e nos ama ao ponto de nos dar o Seu Filho primogénito, nós, tu e eu, não podemos de deixar de amar a criação de Deus, sobretudo a Sua obra-prima, o ser humano. Seria um absurdo. Uma contradição. Um contrassenso. Vale também para todas as relações humanas. Não podemos dar-nos bem com uma pessoa (adulta) e depois dizermos mal ou darmo-nos mal com os seus filhos. E obviamente, quem ama os filhos também granjeia a estima dos pais. “Quem meus filhos beija minha boca adoça”. A prevalência do primeiro mandamento impede a instrumentalização do segundo, o egoísmo, afastando o endeusamento próprio e de outros, pois já há um Deus, e só Deus é Deus.
3 – Ao longo da Sua vida pública, Jesus encontra doutores da Lei, fariseus, saduceus, herodianos, que procuram armar-lhe ciladas. E tantas vezes aparecem a provocar Jesus, a ver se O apanham em falso, expondo-O diante das multidões, fragilizando-O, que poderá parecer que entre eles não haja quem se aproveite. Porém, Jesus não vem com o propósito de excluir ou eliminar um grupo, um movimento, uma classe social. O cristianismo difere e distancia-se de algumas ideologias políticas precisamente por esse aspeto, não vem defender a substituição de um grupo por outro, não eleva uns à custa dos outros, mas promove a fraternidade, a inclusão, na certeza que o bem pode e deve beneficiar a todos. Todos são elevados. Quanto mais dou mais recebo.
O escriba que se aproxima de Jesus vem à procura de sancionar, explicitando, as suas convicções. Mas existem outros como José de Arimateia, Nicodemos, Jairo, o chefe da Sinagoga, o Centurião romano que crê que Jesus pode salvar o seu servo… pessoas ligadas a classes sociais mais favorecidas e que acreditam na bondade de Jesus. Além disso, o Evangelho refere que algumas mulheres O serviam com os seus bens, como Maria Madalena, Joana, mulher de Cusa, procurador de Herodes, Susana e muitas outras (cf. Lc 8, 1-3). Ora se estas mulheres servem Jesus é porque têm o beneplácito dos maridos. Nem de outra forma poderia ser e, pelo que se vê, são pessoas com estatuto dentro do mundo judaico. A opção preferencialmente pelos mais pobres não exclui ninguém, começa a incluir precisamente os que estão excluídos.
Depois das palavras de Jesus, o escriba conclui: «Muito bem, Mestre! Tens razão quando dizes: Deus é único e não há outro além d’Ele. Amá-l’O com todo o coração, com toda a inteligência e com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios». É relevante o escriba confrontar o amor com os holocaustos e sacrifícios, na linha dos profetas e na linha de Jesus. Por sua vez, Jesus, vendo a resposta inteligente, aponta o caminho: «Não estás longe do reino de Deus».
4 – Também Jesus é filho do Povo Eleito. Conhece bem os Mandamentos e percebe como, ao longo dos tempos, foram sendo multiplicados e, em muitos casos, dificultando a sua compreensão e a sua prática.
A Lei, em alguns casos, tornou-se um fardo, sobretudo para as pessoas mais simples. Aqueles que deveriam zelar pela Lei, muitas vezes zelaram pelos seus interesses usando a Lei em proveito próprio. Contudo, a Lei nunca deveria ser um peso, mas uma orientação. Fruto da sabedoria de um povo, a experiência das pessoas que nos precederam e, no caso concreto, sob inspiração divina, a Lei tem o propósito de iluminar escolhas, propor caminhos, ajudar a fazer opções que permitam viver em harmonia, pessoal e comunitariamente, no respeito pela dignidade de cada um, pela sua integridade, e também pelos seus bens. O primeiro mandamento é a garantia para os outros mandamentos.
Moisés, o grande líder do Povo da Primeira Aliança, é o custodiador da Lei, recebe-a de Deus, comunicando-a ao povo, com a certeza que a Lei visa a felicidade, «cuida de pôr em prática o que te vai tornar feliz e multiplicar sem medida na terra onde corre leite e mel, segundo a promessa que te fez o Senhor, Deus de teus pais», sendo que estas «palavras que hoje te prescrevo ficarão gravadas no teu coração».
Jesus aperfeiçoa, levando à plenitude, a Lei, dando-lhe carne, corpo e vida. O amor, a Deus e ao próximo, são a referência. Não como imposição externa, mas como palavras gravadas no coração, como vocação e compromisso. Ele próprio vive na plenitude da Lei, dando a Sua vida por inteiro. Ninguém Lhe tira a vida, é Ele que a dá, a favor de todo o povo.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano B): Deut 6, 2-6; Sl 17 (18); Hebr 7, 23-28; Mc 12, 28b-34.