Domingo XXXII do Tempo Comum – B – 2021
1 – “O homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração” (1Sam 16, 7). Samuel é encarregado por Deus para ir ungir o novo Rei, escolhido entre os filhos de Jessé de Belém. Jessé faz passar diante de Samuel os seus sete filhos. Samuel deixa-se impressionar pelo aspeto de cada um deles. Mas o Senhor diz-lhe que não é nenhum deles. De fora, Jessé deixou David, que andava a guardar o rebanho, por não o reconhecer como suscetível de ser escolhido para Rei, mas é precisamente quem Deus escolhe. Samuel viu as aparências, tal como Jessé que nem se lembrou de David para o apresentar ao Profeta; Deus olhou o coração pobre e humilde de David.
No Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry, sublinha que “só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos”. É claro que, como seres humanos, vemos o que aparece a nossos olhos, o que é agradável, elegante, belo e nos prende o olhar, ou o que é terrífico, feio, asqueroso que nos faz desviar o olhar e afastar-nos de uma situação ou de uma pessoa.
O olhar de Jesus é penetrante, acolhedor, desafiante. É um olhar cheio de ternura e amor, capaz de iluminar a alma daqueles que encontra por estar preenchido da bondade de Deus. O Seu olhar não se fixa (apenas) nos grandes deste mundo, que vestem bem e andam bem perfumados, fixa-Se (sobretudo) nos pequeninos, pobres, crianças, mulheres, estrangeiros, publicanos e pecadores. O olhar de Jesus, humano e divino, vai além de todas as aparências. Os próprios apóstolos são chamados, não por serem ricos ou com um elevado estatuto social, por falarem bem e terem uma boa formação académica, ou por serem reconhecidos pelas suas competências profissionais, mas pela disponibilidade para escutar, pela vontade em aprender, pela fé que os capacita a apreciar as maravilhas que Deus realiza diariamente no mundo.
2 – Na liturgia da palavra deste 32.º Domingo do Tempo Comum surgem-nos duas viúvas cuja bondade e fé em Deus se confundem. Pobres, a viver à míngua, mas de uma fé extraordinária.
Na primeira leitura, Elias dirige-se para Serepta e às portas da cidade encontra uma viúva a apanhar lenha e logo lhe diz: «Por favor, traz-me uma bilha de água para eu beber». E acrescenta: «Por favor, traz-me também um pedaço de pão». Dir-nos-á Jesus que nem um copo de água ficará sem recompensa! Ela não pensa duas vezes, vai imediatamente buscar a água. Mas quanto ao pão confessa: «Tão certo como estar vivo o Senhor, teu Deus, eu não tenho pão cozido, mas somente um punhado de farinha na panela e um pouco de azeite na almotolia. Vim apanhar dois cavacos de lenha, a fim de preparar esse resto para mim e meu filho. Depois comeremos e esperaremos a morte».
A sua profissão de fé em Deus é surpreendente, apesar da penúria. Não protesta, confia em Deus. E esperará pela morte, tranquilamente, porque o Senhor está vivo.
O profeta replica: «Não temas; volta e faz como disseste. Mas primeiro coze um pãozinho e traz-mo aqui. Depois prepararás o resto para ti e teu filho. Porque assim fala o Senhor, Deus de Israel: ‘Não se esgotará a panela da farinha, nem se esvaziará a almotolia do azeite, até ao dia em que o Senhor mandar chuva sobre a face da terra’».
Diz-nos o autor sagrado que esta viúva fez como Elias lhe mandara e desde então nem a panela da farinha se esgotou nem a almotolia do azeite ficou vazia. Ela confia em Deus, na pessoa do Seu enviado. E Deus cumpre a promessa feita pela boca do Profeta.
3 – O salmo evidencia como Deus não falta às Suas promessas e atende as súplicas dos indigentes e desfavorecidos.
“O Senhor faz justiça aos oprimidos, dá pão aos que têm fome e a liberdade aos cativos. / O Senhor ilumina os olhos do cego, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor ama os justos. / O Senhor protege os peregrinos, ampara o órfão e a viúva e entrava o caminho aos pecadores. / O Senhor reina eternamente; o teu Deus, ó Sião, é rei por todas as gerações”.
A experiência da viúva de Serepta é comum a todos aqueles que, na humildade e na fé, confiam totalmente ao Senhor e procuram viver segundo os Seus desígnios de amor. É também assim que rezamos: “Deus eterno e misericordioso, afastai de nós toda a adversidade, para que, sem obstáculos do corpo ou do espírito, possamos livremente cumprir a vossa vontade”.
4 – No evangelho, Jesus contrapõe o testemunho de uma viúva, pobre, despojada, piedosa, à incoerência dos escribas, os especialistas da Lei, que sabem muito e muito impõem aos outros. «Acautelai-vos dos escribas, que gostam de exibir longas vestes, de receber cumprimentos nas praças, de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos banquetes. Devoram as casas das viúvas, com pretexto de fazerem longas rezas. Estes receberão uma sentença mais severa».
Sentado em frente à arca do tesouro, Jesus observa a multidão. Muitos ricos deitam quantias avultadas. Entretanto, uma viúva deita duas pequenas moedas, um quadrante. Este gesto não passa despercebido a Jesus, que vê as duas moedinhas, mas sobretudo o coração desta mulher e chama a atenção dos discípulos: «Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros. Eles deitaram do que lhes sobrava, mas ela, na sua pobreza, ofereceu tudo o que tinha, tudo o que possuía para viver».
Naquele tempo, as viúvas eram um dos grupos mais pobres e desprotegidos, sobretudo quando não tinham descendência. Dependiam da boa vontade de familiares e vizinhos, ou das esmolas que recolhiam nas imediações do Templo. Pelas palavras de Jesus, esta viúva tinha apenas aquelas duas moedinhas, que não guardou para o seu sustento, deitando-as no tesouro do Templo. A prioridade era a fé em Deus, confiando que Deus proverá ao pão de cada dia!
Podemos perguntar: quem se dá por inteiro? E sabemos qual é a resposta: quem ama, quem confia, quem tem fé. Amar é despojar-se. Quem ama é pobre porque dá tudo o que tem e, mais, dá-se inteiramente. Quem ama sujeita-se a perder-se, a ficar na penúria, por pensar em quem ama e não em si mesmo. O amor não é divisível, é total, não há meio amor, não se ama às parcelas, a prestações, com reservas ou na condicional, ama-se por inteiro. Amar é um risco permanente, pois leva-nos tudo, em prol de outros. Mas é também o que nos humaniza, irmana, nos faz tornar aquilo que somos: homens e mulheres criados à imagem e semelhança de Deus.
5 – Pobre por excelência é Jesus. De condição divina, despojou-se de qualquer poder, assumindo a nossa condição humana e a nossa finitude. Por amor, por obediência ao Pai, Jesus entrega-Se totalmente. É acusado de comer com pecadores e publicanos. Dá-se bem com os excluídos, não Se desvia dos andrajosos, leprosos, doentes, estrangeiros.
No final, até da roupa O despojam. Não tem nada! E dá tudo! A Sua vida, reconciliando-nos com o Pai e uns com os outros! É o Sumo Sacerdote que nos convinha, imaculado, faz-Se “pecado”, para nos subtrair ao pecado e à morte. “Cristo não entrou num santuário feito por mãos humanas, figura do verdadeiro, mas no próprio Céu, para Se apresentar agora na presença de Deus em nosso favor”.
Os sacerdotes ofereciam, cada ano, sacrifícios pelos pecados do povo. Jesus não oferece sacrifícios, nem sangue alheio, mas a Sua vida, até ao último fôlego. E como nos dirá, a vida ninguém Lha tira, é Ele que no-la dá espontaneamente, por amor, cumprindo a vontade amorosa do Pai.
“Ele manifestou-Se uma só vez, na plenitude dos tempos, para destruir o pecado pelo sacrifício de Si mesmo. E, como está determinado que os homens morram uma só vez e a seguir haja o julgamento, assim também Cristo, depois de Se ter oferecido uma só vez para tomar sobre Si os pecados da multidão, aparecerá segunda vez, sem a aparência do pecado, para dar a salvação àqueles que O esperam”.
Ninguém quer ser pobre! Muitos querem ser ricos! Mas a verdadeira riqueza é a pobreza de espírito daqueles que semeiam ternura, bondade e amor. A verdadeira pobreza é o amor, que se desfaz, se gasta, a favor dos outros! Ao jeito de Jesus.
Pe. Manuel Gonçalves
Leituras para a Eucaristia (ano B): 1 Reis 17, 10-16; Sl 145 (146); Hebr 9, 24-28; Mc 12, 38-44.