Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – 2022
1 – O centro da nossa fé é o mistério pascal. Jesus entrega a Sua vida por inteiro! Nem a morte tem poder de lhe colocar um termo, pois a vida emerge em plenitude na Sua ressurreição. Em cada Eucaristia, especialmente em cada Domingo, a Páscoa semanal, mas de forma mais solene em cada ano celebrámos um mistério que nos faz contemporâneos de Jesus, pois Ele vive agora, no meio de nós, pela força do Espírito Santo, em Igreja. Entramos na semana maior da nossa fé, SEMANA SANTA, pois SANTO é Ele que vem da parte de Deus e nos dá Deus, num mistério que nos envolve, nos desafia e nos salva. Jesus percorre connosco as diversas situações da vida, como facilmente se visualiza nos dois momentos que se entrelaçam neste Domingo: entrada triunfal em Jerusalém, um REI sentado num jumentinho, e condenação à Cruz, no processo apressado e realizado fora de horas, imerso nas trevas.
O Rei aclamado por uma multidão entusiasta e feliz, no início da semana, dá lugar a um Rei coroado de espinhos, injuriado por uma multidão enraivecida e embrutecida.
O Apóstolo São Paulo faz uma síntese perfeita da vida de Jesus: “Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz. Por isso Deus O exaltou”.
Ele está no meio de nós, veio para servir, amando, sujeitando-se às mesmas circunstâncias finitas, frágeis, limitadas, caminha lado a lado, entra connosco na cidade, ouve as nossas preces e os nossos gritos, aceita o nosso louvor, as nossas oferendas e a nossa conversão, a nossa alegria e a nossa cobardia. A realeza de Jesus é despojada de poder, de riqueza, de exuberância. Não vem numa caravana, protegido por um exército, vem num jumentinho, rodeado de amigos e gente simples: “A multidão dos discípulos começou a louvar alegremente a Deus em alta voz por todos os milagres que tinham visto, dizendo: «Bendito o Rei que vem em nome do Senhor. Paz no Céu e glória nas alturas!».
A alegria de uns contrasta com a indiferença, melhor, com a azia de outros. «Mestre, repreende os teus discípulos». Alguns fariseus sentem-se ofendidos pelo contentamento dos Seus discípulos. Então, Jesus garante-lhes: «Eu vos digo: se eles se calarem, clamarão as pedras».
2 – No decorrer na Última Ceia, quando as coisas parecem estar a correr (demasiado) bem, eis que Jesus anuncia a provação. Fá-lo na intimidade da casa e da refeição: “Tomai e reparti entre vós, pois digo-vos que não tornarei a beber do fruto da videira, até que venha o reino de Deus…”
Os discípulos percebem que alguma coisa não está bem, mas ainda não sabem a dimensão das palavras de Jesus, que institui o memorial, antecipando, no repartir do pão e do vinho, a Sua permanência no meio de nós, depois da Sua morte e ascensão para Deus. Ouvem Jesus a dizer que entre eles está alguém cujas intenções não são concordes com o Seu projeto. A casa começa a desfazer-se. Um deles levanta-se da mesa e sai de casa. Doravante a casa fica vulnerável, exposta, as portas não são forçadas, abrem-se por dentro. A história de famílias, comunidades e povos! Os inimigos, mais perigosos, porque mais silenciosos, estão dentro, na família, na comunidade, no povo, e dentro de nós!
E quando o edifício começa a desmoronar-se, o espírito de sobrevivência vem ao de cima, procurando cada um safar-se quanto antes: “Levantou-se também entre eles uma questão: qual deles se devia considerar o maior?” Jesus é perentório: «O maior entre vós seja como o menor e aquele que manda seja como quem serve. Pois quem é o maior: o que está à mesa ou o que serve? Não é o que está à mesa? Ora Eu estou no meio de vós como aquele que serve».
O Mestre clarifica de novo a opção pelo serviço: Eu estou no meio de vós para servir e dar a vida. A disputa não é pelo poder, mas pelo amor.
3 – A Ceia avança e as horas aceleram. É tempo de Jesus solidificar a adesão e o seguimento dos Seus discípulos. Longo foi o caminho do discipulado, mas é necessário que eles tomem consciência das adversidades que virão pela frente, para não vacilarem quando tal acontecer.
Diz Jesus a Pedro: “Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos». Pedro, rápida e resolutamente, responde: «Senhor, eu estou pronto a ir contigo, até para a prisão e para a morte». Novamente, Jesus atalha: «Eu te digo, Pedro: Não cantará hoje o galo, sem que tu, por três vezes, negues conhecer-Me». Depois de Jesus ser preso, Pedro não resistirá ao medo e à vergonha, negando o Seu Mestre e Senhor. Por três vezes se coloca fora da comunhão com Jesus, contradizendo a predisposição manifestada quando estava à mesa com Jesus e os companheiros.
Os nossos propósitos são testados pela realidade! Aos discípulos ainda lhes falta a maturidade do sofrimento e das contrariedades. Precisam de muita oração e de muito amor, de muita confiança em Deus. «Orai, diz-lhes e diz-nos Jesus, para não entrardes em tentação… Porque estais a dormir? Levantai-vos e orai, para não entrardes em tentação».
A oração é a primeira palavra! Pela oração fortalecemos as nossas escolhas diante de Deus e dos homens. Há tempo para tudo, não pode faltar tempo para Deus, para melhor acolhermos a Sua vontade e percebermos os caminhos que nos conduzem a Ele, e d’Ele para as pessoas que nos rodeiam. Rezar com pressa ou como um fardo a cumprir faz-nos distrair do essencial, faz-nos olhar mais para nós, para as nossas competências e egoísmos, do que para a ternura de Deus, para o Seu amor infinito por todos, também para com aqueles de quem não gostamos tanto!
A oração mantém Jesus ligado, íntima e firmemente, ao Pai.
4 – Jesus sai do Jardim das Oliveiras e entra triunfalmente em Jerusalém. Agora de novo vai para o Jardim, para rezar, para Se configurar mais e mais à vontade de Deus. Leva os discípulos, para Se sentir apoiado. Mas eles dormem, estão demasiado ansiosos por todas as notícias que O envolvem. Ninguém aguenta a intensidade e a tensão dos acontecimentos presentes. O Mestre vai morrer. Ele sabe disso. Confessa-o aos discípulos. Eles não querem acreditar, preferem esquecer, relativizar e esperar que tudo passe rapidamente e voltem ao normal. Seria um disparate o Mestre ser preso e morto!
Judas aproxima-se de Jesus, para O beijar, sendo por Ele interpelado: «Judas, é com um beijo que entregas o Filho do homem?».
Ser traído é sempre mau. Ser traído por um amigo é uma calamidade. Ser traído pelo melhor amigo, o homem de confiança (de Jesus e dos outros discípulos) é inacreditável. O cumprimento de Judas a Jesus é o de um amigo próximo e confidente. Perdoa-lhe, Senhor, ele perdeu o juízo, não sabe o que está a fazer, a entregar à morte um inocente, o melhor amigo?! Judas perdeu-se do caminho de Jesus.
5 – Preso, açoitado, provocado, Jesus não responde com injúrias ou palavrões: «Tu és então o Filho de Deus?». Jesus respondeu-lhes: «Vós mesmos dizeis que Eu sou». Confirma apenas o que abertamente já tinha dito: EU SOU.
Outra subida, para o Calvário, com a pesada CRUZ às costas, vergado pelo cansaço, pela desilusão, pelo desamparo dos discípulos, pelas acusações injustas, pelas vergastadas, pelas invetivas da multidão. São muitas horas. É um desgaste enorme. Jesus está perigosamente desfigurado e frágil. É um homem marcado por um vendaval de violência.
“Quando O conduziam, lançaram mão de um certo Simão de Cirene, que vinha do campo, e puseram-lhe a cruz às costas, para a levar atrás de Jesus. Seguia-O grande multidão de povo e mulheres que batiam no peito e se lamentavam, chorando por Ele”.
Mesmo para pessoas menos atentas, a atitude de Jesus gera empatia, tanto sofrimento sem um lamento, sem acusar ninguém. Não vale a pena gastar energias a ofender, desgastando-Se, quando Se gasta totalmente por amor. É crucificado e a postura é de complacência: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem». De entrega confiante ao Pai: “O véu do templo rasgou-se ao meio. E Jesus exclamou com voz forte: «Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito». Dito isto, expirou”.
Mas a história não acaba aqui. Há de continuar ao terceiro dia… no nosso dia, na nossa vida!
Se a Cruz fosse a última palavra, e com ela a morte, não estaríamos a falar de Jesus, não estaríamos reunidos em Seu nome para escutar a Sua Palavra, atualizando os seus gestos, não estaríamos a partilhar o Seu Corpo para sermos seu Corpo, Igreja viva.
A Grande Semana é vivida sob a égide da esperança, Luz que irradia para além da cruz, do sofrimento e da morte. As nuvens carregadas darão lugar à luminosidade da vida e da ressurreição, a Deus no meio de nós. A última palavra é de Deus.
6 – O profeta Isaías apresenta-se como discípulo, respondendo com amor a toda a ofensa. Nestas palavras se caracteriza a figura do servo sofredor, identificável com Jesus Cristo: «O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos… O Senhor Deus abriu-me os ouvidos e eu não resisti nem recuei um passo. Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam. Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio». Ou, como víamos na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, se os discípulos se calarem, as pedras falarão.
Nesta hora e em todas as horas nublosas rezemos confiantes: “Senhor, não Vos afasteis de mim, sois a minha força, apressai-Vos a socorrer-me”. Que a oração seja verdadeiro compromisso, na fidelidade à vontade de Deus.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano C): Lc 19, 28-40; Is. 50, 4-7; Sl 21 (22); Filip 2, 6-11; Lc 22, 14 – 23, 56.