Domingo V do Tempo Comum – ano A – 2023
1 – No alto da montanha, continuamos a beber as palavras de Jesus.
Depois da bela e sugestiva Carta de Jesus aos seus discípulos, as Bem-aventuranças, segue-se esta analogia: vós sois o sal da terra, vós sois a luz do mundo.
O próprio Jesus clarifica: «Vós sois o sal da terra. Mas se ele perder a força, com que há de salgar-se? Não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens».
Nos nossos dias, tem havido um incentivo à utilização moderada do sal, pelos malefícios que poderá trazer à saúde, substituindo-o por outros condimentos. Apesar disso, o sal continua a ser um elemento essencial na dieta mediterrânea e na nossa alimentação diária. O desafio é moderar em conformidade com a saúde de cada um e com a respetiva idade. Mas voltemos à analogia. O sal serve para salgar, para preservar, para dar sabor. Melhor, o sal faz sobressair o sabor dos alimentos. Se for em excesso impede-nos de saber o sabor do que estamos a comer. Se for insuficiente é possível que também não nos saiba bem. O “gosto”, o paladar, também se educa!
Sabemos bem o que significa ser uma pessoa insossa, sem sabor, que vive ao sabor dos ventos e das marés. Como alertava Séneca, quem não sabe para onde vai, qualquer vento lhe é desfavorável. É conhecido o alerta de Jesus: a vossa linguagem seja “sim-sim”, e “não-não”; o talvez, o “nim”, não têm cabimento no nosso relacionamento com Deus e uns com os outros.
Deixemos que Cristo e a Sua palavra de amor sejam sal na nossa vida, dando-lhe sabor e sentido, temperando e animando as nossas escolhas, para que, por nossa vez, levemos sal, melhor, levemos sabor e sentido à vida dos outros.
2 – «Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, onde brilha para todos os que estão em casa. Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus».
Uma das características da Igreja, numa analogia avivada pelo santo Padre, é ser como a Lua em relação ao Sol. A Lua reflete a luz do Sol, assim a Igreja há de refletir a luz de Cristo. Se a Igreja se tornar opaca, autorreferencial, parafraseando o Papa Francisco, deixa de cumprir a sua missão lunar, a sua identidade. Como a Igreja, também os cristãos, eu e tu. A luz que nos habita vem de dentro, mas antes disso, veio e vem do alto.
Jesus é explícito, a luz existe para iluminar, para tornar transparente a vida, para nos permitir ver o bem e a verdade, para possibilitar caminhar, ir ao encontro dos outros e reconhecê-los como irmãos. Um mestre oriental tinha perguntado aos seus discípulos o momento exato em que a noite dava lugar ao dia. As respostas foram variadas, mas insuficientes. Quando o dia começa a clarear! Quando se vê a estrada que está à frente! Quando se distinguem os arbustos das silhuetas das pessoas! Mas, na verdade, é dia quando conseguimos ver que os outros são nossos irmãos.
É esta luz que acolhemos de Jesus, há de ser esta a luz que nos permite acolher o amor de Deus e comunicá-lo, partilhá-lo, concretizando-o no cuidado a todos os que Deus coloca na nossa vida.
3 – Somos luz quando absorvemos a luz de Jesus e iluminamos o caminho dos outros. Somos luz quando amamos, ajudamos, cuidamos. Somos luz quando perdoamos, quando acolhemos, quando vamos ao encontro dos outros, das suas necessidades e sofrimentos. Somos luz quando os outros vislumbram, em nós e através de nós, um caminho, uma saída, quando sentem paz e se sentem motivados para caminhar, para viver, quando readquirem confiança na vida, nas pessoas, em Deus.
O salmista exemplifica, desafiando-nos. «Brilha aos homens retos, como luz nas trevas, o homem misericordioso, compassivo e justo. Ditoso o homem que se compadece e empresta e dispõe das suas coisas com justiça. / Este jamais será abalado; o justo deixará memória eterna. Ele não receia más notícias: seu coração está firme, confiado no Senhor. / O seu coração é inabalável, nada teme; reparte com largueza pelos pobres, a sua generosidade permanece para sempre e pode levantar a cabeça com altivez».
A ligação essencial a Deus e aos irmãos garante que a luz não se apaga. Quanto mais ligados a Deus, maior a nossa luz; quanto mais comprometidos uns com os outros, maior o brilho da luz que nos vem do Senhor. Com efeito, é possível ser-se filantropo, sem fé ou, pelo menos, sem religião; mas não é possível ser crente, de verdade, se tal não nos conduzir ao compromisso sério e concreto com a transformação do mundo, no cuidado por toda a criação, a começar pelas pessoas.
4 – Os profetas relembram-nos que a religião pura e santa é o serviço ao órfão e à viúva, o cuidado pelos mais pobres. Podes cumprir todas as prescrições da Lei, mas se o teu coração não respirar ternura, amor, compaixão, vives uma ilusão que redundará em desolação e em desencanto. Deus não te pode dar o que não procuras, não garante a vida e o amor se tu não estiveres verdadeiramente envolvido com os outros. Ele revela-Se na vida, no mundo, na história, em plenitude, em Jesus Cristo. Não se trata de uma ideia, uma elucubração intelectual, uma divagação espiritual, sem chão, sem visibilidade. Jesus encarnou, tomou a nossa carne, a vida humana, tornou-Se visível no Seu corpo, com a Sua vida, gestos, palavras e prodígios. É possível situá-l’O no tempo e no espaço. Não é solúvel na nossa racionalidade ou nas nossas ideias.
Dirá o apóstolo são Tiago, uma fé sem obras é oca, vazia, é um disparate, uma desculpa ou uma distração. Não mais do que isso. Não nos colocamos de joelhos para esquecermos a vida, para esquecermos os outros, para nos esquecermos das dificuldades. Ajoelhamos para tomarmos consciência que Deus pode operar maravilhas em nosso favor e dos outros Seus filhos, nossos irmãos. Ajoelhamos para que o impulso do levantar e partir seja mais firme, mais luminoso, sustentado, não nas nossas capacidades, mas no amor de Deus. Não é possível que te ajoelhes para te esqueceres que és irmão dos outros e que Deus é Pai de todos. Na oração podes esquecer-te de ti, mas nunca dos outros! É uma palermice. A oração, como a fé, por mais contemplativa que seja, envolve sempre os outros, o mundo, a criação de Deus e os Seus desígnios de amor para a humanidade.
O profeta Isaías é categórico. Não te escondas nas tradições, nos sacrifícios, no templo, a não ser que aí revigores o teu empenho. «Reparte o teu pão com o faminto, dá pousada aos pobres sem abrigo, leva roupa ao que não tem que vestir e não voltes as costas ao teu semelhante».
Esta é a luz que nos identifica como crentes, como cristãos. Não se esconde uma cidade no alto do monte, nem se acende uma luz para a colocar debaixo do alqueire, diz-nos Jesus, a luz há de iluminar toda a casa, toda a vida. As obras de misericórdia traduzem e concretizam a fé, alimentam a luz. «Então a tua luz despontará como a aurora e as tuas feridas não tardarão a sarar. Preceder-te-á a tua justiça e seguir-te-á a glória do Senhor. Então, se chamares, o Senhor responderá, se O invocares, dir-te-á: ‘Aqui estou’. Se tirares do meio de ti a opressão, os gestos de ameaça e as palavras ofensivas, se deres do teu pão ao faminto e matares a fome ao indigente, a tua luz brilhará na escuridão e a tua noite será como o meio-dia».
5 – Na sua missiva, dirigida aos coríntios, são Paulo recorda como procurou ser transparente na linguagem, para transparecer Jesus Cristo e a Boa Nova que Ele é para nós e para o mundo. O risco do discípulo de Jesus, do apóstolo, é esquecer-se que não está em nome próprio e ficar em primeiro plano escondendo Jesus. Não é fácil. Cada um de nós, no mistério que transporta, aqui e além, necessita de ser reconhecido, sentir-se acolhido, amado, sentir-se visível, e não apenas um ponto luminoso a apontar para o Mestre dos Mestres, como se Ele não nos fizesse brilhar ainda mais.
A iniciar o Seu magistério papal, dizia Bento XVI: “Quem faz entrar Cristo, nada perde, nada absolutamente nada daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade se abrem de par em par as portas da vida. Só nesta amizade se abrem realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só nesta amizade experimentámos o que é belo e o que liberta. Assim, eu gostaria com grande força e convicção, partindo da experiência de uma longa vida pessoal, de vos dizer hoje, queridos jovens: não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, ele dá tudo. Quem se doa por Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri de par em par as portas a Cristo e encontrareis a vida verdadeira”.
Regressemos à imagem da Lua e da Igreja lunar. Como Corpo de Cristo, a Igreja vive-O, reflete-O, mostra-O, testemunha-O, aponta para Ele. O risco de quem olha é fixar-se no mensageiro e não na Boa Nova. Obviamente, o cristão não é, apenas, espelho, quanto muito é cubo de luz, que estando preenchido dissipa e irradia a luz de Cristo para os outros.
O apóstolo tem o cuidado de testemunhar Jesus. Fiz-me tudo para todos, para ganhar alguns para Cristo, Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. «Quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei com sublimidade de linguagem ou de sabedoria a anunciar-vos o mistério de Deus. Pensei que, entre vós, não devia saber nada senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado… A minha palavra e a minha pregação não se basearam na linguagem convincente da sabedoria humana, mas na poderosa manifestação do Espírito Santo, para que a vossa fé não se fundasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus».
Regressemos, uma e outra vez, à montanha, ou melhor, mantenhamo-nos perto daquela Luz que não conhece ocaso, Jesus Cristo, para que, vivendo iluminados, saboreemos a presença amorosa de Deus e sejamos sal e luz para este mundo que nos cabe cuidar.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (A): Is 58, 7-10; Sl 111 (112); 1Cor 2, 1-5; Mt 5, 13-16.