Solenidade da Santíssima Trindade – ano C – 2022

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Solenidade da Santíssima Trindade – ano C – 2022

1 – Em muitas situações da vida temos dificuldade em compreender, aceitar e acolher uma opinião diferente da nossa, uma forma de viver que nos é alheia, uma postura que temos como petulante e prepotente. Umas vezes com razão. Muitas vezes porque não damos tempo para que o outro se explique. Não escutámos. Com pressa, adiantamo-nos a silenciarmos outras opções, para não termos nem que refletir nem que escolher.

Ao fim e ao cabo, todos somos tolerantes e compreensivos quando concordam connosco e/ou quando estimamos aqueles que se nos contrapõem. É conhecido o episódio em que os discípulos voltam para junto de Jesus, dizendo-Lhe, satisfeitos da vida, que proibiram um homem de expulsar espíritos impuros em Seu nome por não fazer parte do grupo (Mc 9, 38-40). Pouco depois Jesus dir-lhes-á que entre eles o serviço aos outros deve ser uma prioridade e um compromisso constante. As disputas para o primeiro lugar ficam reservadas para os chefes das nações, não para os Seus seguidores (cf. Mc 9, 30-37). E, por outro lado, o bem é sempre bem, venha de onde vier!

Se olharmos para a política, para o desporto e até para a Igreja vemos com facilidade a tentação de excluir quem não concorda com as nossas ideias e com as nossas opções. Só o que vem da minha bancada, da minha janela, do meu grupo, do meu clube é que é positivo e defensável. Somos pouco trinitários, temos dificuldades ancestrais em aceitar e acolher o que não é familiar, por defesa, por medo, por insegurança e/ou por sobrevivência. Quando duas tribos se encontravam, lutavam pelo mesmo lugar, mediam forças e tentavam aniquilar-se mutuamente garantindo que não estariam sujeitas a novas ameaças. Cortava-se o mal pela raiz! Ou, estabeleciam uma aliança de cooperação, garantida por casamentos mistos, envolvendo as famílias das duas tribos.

Deus criou-nos para vivermos como família, um só povo porque um só Deus e Pai de todos. O pecado – quando cada um encara o outro como adversário e como inimigo, o outro como impossibilidade para “eu” ser deus – gera conflitos, disputas, guerras, ruturas.

2 – A solenidade da Santíssima Trindade cria mais uma oportunidade para louvarmos o Deus que nos é revelado por Jesus Cristo, que O encarna, personificando-O no tempo e na história, mostrando-O (quem Me vê, vê o Pai), dando-lhe um rosto, um corpo, tornando-O visível. Em Jesus Cristo, vemos Deus. Nos seus gestos e palavras. Na Sua postura e nas Suas escolhas. Na Sua delicadeza e na Sua compaixão. Cumprido o tempo, Ele enviar-nos-á o Espírito Santo, para que continue a revelar-nos a misericórdia infinita do Pai e a suscitar em nós a docilidade para O acolhermos, vivendo-O e testemunhando-O em todo o mundo e em todo o tempo.

Acompanhando Jesus, os discípulos veem e compreendem que para Deus não há excluídos. Na expressão do Papa Francisco, não há santos sem passado e sem pecado, e não há pecadores sem futuro, sem possibilidade de se arrependerem e mudarem de vida. Para Jesus, os pecadores, os excluídos do poder, da sociedade, da cultura, da religião, as pessoas doentes, os publicanos, os pequeninos, as prostitutas, as pessoas cujas profissões “menores” as afastam dos reinos deste mundo, têm preferência no Reino de Jesus, não por serem melhores mas precisamente porque são os primeiras a precisarem de ser socorridos. Os pais darão uma atenção privilegiada ao filho que está doente ou está mais frágil, não por desamor em relação aos outros, mas para que aquele volte à mesa e ao convívio. E isso é ser família, cuidar uns dos outros, a começar pelos mais frágeis. Sabemos bem como atravessamos a cultura do descarte (expressão do Papa Francisco)! Desafio: construir a cultura da proximidade, da inclusão, instaurando a civilização do amor e da vida, já preconizada por Paulo VI, acentuada por João Paulo II, clarificada por Bento XVI e globalizada por Francisco.

3 – O Evangelho hoje proclamado coloca-nos nos últimos momentos da vida histórico-temporal de Jesus. A caminhada percorrida com os Seus discípulos já tem algum tempo. Amadureceram. Puderam ver Jesus, a Sua postura delicada, a atenção aos mais frágeis, a confiança que lhes comunicou a falar do Pai, o reino aberto a todos.

Ao aproximar-se o final, Jesus sabe que ainda precisam de mais tempo, mas sobretudo precisam de se manter ligados ao Pai, pelo Espírito Santo. Se nos apoiarmos em nós, as nossas limitações e fraquezas virão ao de cima e facilmente podemos ensoberbecer-nos. Se nos deixarmos guiar pelo Espírito, Ele nos revelará a verdade, além das nossas debilidades e pecados. Somos vasos de barro, mas ainda assim Deus manifesta-Se em nós e através de nós. O Espírito de Deus faz-nos perceber da nossa grandeza, porque filhos de Deus, e da nossa dependência aos outros, porque irmãos; faz-nos acolher os outros como família e não como adversários e inimigos, mostrando-nos o caminho a percorrer e a distância que nos separa – e nos atrai – da misericórdia de Deus.

Diz Jesus: «Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis compreender agora. Quando vier o Espírito da verdade, Ele vos guiará para a verdade plena; porque não falará de Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará o que está para vir. Ele Me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará. Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso vos disse que Ele receberá do que é meu e vo-lo anunciará».

O Espírito Santo nos revelará toda a verdade, recordar-nos-á as palavras de Jesus, palavras que nos geram para a vida eterna e nos comprometem com o reino de Deus, aqui e agora, neste mundo.

4 – A economia da salvação traz-nos Deus. Como alguém dizia, não é preciso a chegada de Cristo ou do Papa Francisco, para chegar à humanidade a misericórdia de Deus. A Sagrada Escritura vai dando nota da presença benevolente de Deus na História. Pelos mensageiros, Patriarcas, Juízes, Profetas e Reis. Pelos acontecimentos que colocam à prova a fé e a firmeza do povo eleito.

O livro dos Provérbios fala-nos da Sabedoria de Deus, que poderemos, seguindo a reflexão dos Padres da Igreja e com algumas cautelas, identificar com o próprio Jesus.

A sabedoria de Deus apresenta-se: «O Senhor me criou… antes das suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui formada, desde o princípio, antes das origens da terra. Antes de existirem os abismos e de brotarem as fontes das águas… antes de se implantarem as montanhas e as colinas… ainda o Senhor não tinha feito a terra e os campos, nem os primeiros elementos do mundo. Quando Ele consolidava os céus, eu estava presente; quando traçava sobre o abismo a linha do horizonte, quando condensava as nuvens nas alturas, quando fortalecia as fontes dos abismos, quando impunha ao mar os seus limites para que as águas não ultrapassassem o seu termo, quando lançava os fundamentos da terra, eu estava a seu lado como arquiteto, cheia de júbilo, dia após dia, deleitando-me continuamente na sua presença».

Há páginas nos profetas que anunciam a vinda do Messias. Com efeito, ler o Antigo Testamento com a luz da Páscoa, que inclui o mistério da Encarnação, ajuda a perceber o encadeamento da história da Aliança de Deus com o Seu povo. Uma Aliança que não fica em banho-maria, mas tem um desfecho. Ao mesmo, lendo o Novo Testamento com os seus antecedentes, ajuda a perceber e acolher melhor todo o mistério de Deus que Se revela ao longo do tempo e em plenitude com a vinda de Jesus Cristo. Não é um momento, um rompante. Deus, desde sempre, cria-nos por amor, querendo-nos bem, vem salvar-nos. Toda a história da humanidade está imbuída da misericórdia complacente de Deus.

5 – Na segunda leitura, o Apóstolo São Paulo desafia-nos a confiarmos a nossa vida a Deus que é Pai e Filho e Espírito Santo, na certeza que não nos desiludiremos. Com efeito, fomos “justificados pela fé, estamos em paz com Deus, por Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual temos acesso, na fé, a esta graça em que permanecemos e nos gloriamos, apoiados na esperança da glória de Deus. Mais ainda, gloriamo-nos nas nossas tribulações, porque sabemos que a tribulação produz a constância, a constância a virtude sólida, a virtude sólida a esperança. Ora a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”.

A esperança em Deus anima-nos nas tribulações e fortalece-nos no compromisso para construirmos um mundo mais fraterno, iniciando o reino de Deus que Jesus nos trouxe da eternidade, para a qual nos conduzirá. Há que converter as dificuldades em provações e oportunidades!

Confiemo-nos nas mãos e no coração de Deus: “Deus Pai, que revelastes aos homens o vosso admirável mistério, enviando ao mundo a Palavra da verdade e o Espírito da santidade, concedei-nos que, na profissão da verdadeira fé, reconheçamos a glória da eterna Trindade e adoremos a Unidade na sua omnipotência” (coleta).

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (C): Prov 8, 22-31; Sl 8; Rom 5, 1-5; Jo 16, 12-15.