Solenidade da Santíssima Trindade – B – 2024
1 – Somos seres sociais mas nem sempre lidamos bem com os outros. Em todas as áreas do saber e em todas as dimensões da vida se constata que fomos criados uns para os outros, para vivermos em povo, solidariamente. Sempre que a solidariedade acontece há vida, felicidade, o mundo pula e avança. Sempre que vem ao de cima o isolamento solitário, o egoísmo, a prepotência desmedida, a ambição doentia, o mundo conhece dias maus, tempos de crise, angústia e devassidão, conflitos e guerra.
Alguém poderá dizer que não é a sociedade que faz avançar a história, mas a genialidade de pessoas que surgem de longe a longe, grandes líderes, inventores, descobridores. Porém, o inventor deve as suas descobertas a outros anteriores, que possibilitaram o ambiente, as condições, os avanços técnicos e até os instrumentos para que novas invenções pudessem emergir. Por outro lado, o génio “cria” para melhorar a vida e/ou para deixar o seu nome inscrito na história (precisa dos outros para ser reconhecido). Se um “criador” agisse apenas por brincadeira, não daria a conhecer as suas descobertas e nunca seria considerado génio ou inventor.
Um génio que “trabalhe” sem raízes (os que estão antes), desligado de tudo e de todos, que viva cinicamente como se o mundo lhe fosse contrário, lhe fosse repugnável, engana-se a si mesmo, pois a genialidade nasce da pertença a uma família, à humanidade, com quem aprendeu a falar, a compreender, a abstrair, a tentar algo a partir do que existe. Já todos vimos (ou ouvimos falar) como pessoas consideradas inteligentes usaram o seu saber e o seu poder para destruir, anular, esquecendo a dívida para com quem lhes proporcionou a vida, o contexto e as condições.
2 – Somos seres sociais mas nem sempre funcionamos bem com as diferenças, com as limitações, com a fragilidade, com as qualidades dos outros. Anunciamos a tolerância, dizemo-nos compreensivos, capazes de ceder, mas quando as nossas ideias, opiniões ou projetos prevalecem. Em grupos, em Igreja, no dirigismo político, cultural, desportivo, há sempre a tentação de fazer sozinho, porque mais rápido e (aparentemente) melhor. Defendemos o trabalho em grupo mas se não puserem em causa a nossa forma de trabalhar e/ou o que propomos.
Claro que, em contraponto, há quem promova a integração, o respeito mútuo, o trabalho conjunto, solicitando o contributo de todos, incentivando a participação, abdicando das próprias ideias e sugestões quando percebe que dessa forma haverá uma maior colaboração, mais alargada e responsabilizadora. É necessário uma dose elevada de humildade e de sabedoria para aceitar os dons dos outros, para distinguir o essencial do acessório, o imprescindível do dispensável e secundário. Há quem imponha pormenores apenas para se impor. Há que saber distinguir aquilo por que vale a pena discutir, refletir, dialogar, ou até mesmo chatear-se!
A história conheceu pessoas muito “inteligentes” (mas pouco sábias) que impuseram as suas ideias, contra tudo e contra todos, Reis e imperadores, secando a manifestação das qualidades de outros que poderiam trazer mais paz e frutos de justiça duradouros.
Celebrar a solenidade da Santíssima Trindade é acolher Deus como comunidade de vida e de amor, Deus Uno e Trino, comunhão que integra Três Pessoas, prevalecendo o AMOR que circula em Deus. Sem confusões, anulação ou sobreposição. O que se diz do Pai, assim do Filho e do Espírito Santo. O que se diz do Filho, assim do Pai e do Espírito. O que se diz do Espírito Santo, assim do Pai e do Filho. «Com o vosso Filho Unigénito e o Espírito Santo, sois um só Deus, um só Senhor, não na unidade de uma só pessoa, mas na trindade de uma só natureza» (oração eucarística). É um DESAFIO e um COMPROMISSO para cada um de nós e para a comunidade. Sem cair em relativismos simpáticos – tudo vale, tudo é igual ao litro – mas na procura sincera e humilde de constituirmos uma só família, integradora, inclusiva de diferentes sensibilidades, potenciando o melhor de cada um para o bem de todos.
3 – Ressurreição de Jesus e Ascensão aos Céus, Pentecostes, com a dádiva do Espírito Santo, solenidade da Santíssima Trindade. Várias acentuações de uma realidade que nos convoca, nos provoca, nos envolve e nos compromete. Deus vem para ficar connosco, em definitivo. Criando-nos por amor, por amor nos salva, revelando-Se em definitivo em Jesus Cristo. Com a Páscoa, somos introduzidos numa VIDA NOVA, na vida de Deus, para sermos cada vez mais o que sempre fomos, imagem e semelhança de Deus, irmãos em Jesus para sermos um só povo, um só rebanho, enriquecendo-nos na multicolaridade das nossas vidas.
Precisamos de escutar. Gostamos de nos ouvir. Precisamos que nos escutem. Devemos gostar de ouvir os outros. Não poderemos compreender, amar, amadurecer, alargar os nossos horizontes, sem escutarmos, tentado colocar-nos nas situações dos outros, interagindo socialmente.
Seguindo Jesus, vamos perceber que Ele não É só, não vive sozinho, não Se dá inteiramente sozinho. Ele o Pai são UM, o Pai n’Ele e Ele no Pai. O Seu alimento, a Sua vontade, não segue o que mais Lhe apraz a cada momento, mas procura fazer-Se coincidir com a vontade do Pai. Retira-Se em silêncio, para que o Espírito Lhe traga a vontade, a intimidade, a cumplicidade do Pai.
Com a Páscoa, Jesus agrafa os seus discípulos à missão trinitária: «Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra. Ide e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei. Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».
Anunciar em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo não é, e não pode ser, anunciar-se a si mesmo. Levar-se demasiado a sério, dar-se demasiada importância, pode gerar artistas, mas não gera discípulos, nem gera Filhos, nem missionários, nem irmãos.
4 – Aquele povo precisou de escutar! Quando se encerrou nos seus egoísmos, fazendo desaparecer a solidariedade, acentuou os conflitos e deixou que estranhos minassem a familiaridade, entreajuda e a proximidade que o tornava povo de Deus.
Moisés relembra a sabedoria em escutar e cumprir a Lei do Senhor, sublinhando também a proximidade de Deus: «Que povo escutou como tu a voz de Deus a falar do meio do fogo e continuou a viver? Considera hoje e medita em teu coração que o Senhor é o único Deus, no alto dos céus e cá em baixo na terra, e não há outro. Cumprirás as suas leis e os seus mandamentos, que hoje te prescrevo, para seres feliz, tu e os teus filhos depois de ti, e tenhas longa vida na terra que o Senhor teu Deus te vai dar para sempre».
Somos seres sociais, mas por vezes preferimos experimentar seguir sozinhos, sem a gratidão dos que nos precederam, sem a sabedoria dos que nos acompanham. Popularmente reconhece-se que é preciso bater com a cabeça para valorizarmos o que nos dizem. Cada um terá que assumir e fazer o seu caminho. Jesus é o caminho, a verdade e a vida. Mas como fazer d’Ele o nosso próprio caminho?
Diz-nos São Paulo: “Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão para recair no temor, mas o Espírito de adoção filial, pelo qual exclamamos: «Abá, Pai». O próprio Espírito dá testemunho, em união com o nosso espírito, de que somos filhos de Deus. Se somos filhos, também somos herdeiros, herdeiros de Deus e herdeiros com Cristo; se sofrermos com Ele, também com Ele seremos glorificados”.
Recebemos de Jesus o Espírito Santo que nos encaminha para o Pai e nos aproxima dos outros, revelando-nos o nosso parentesco humano e espiritual.
5 – Sintonizados com Moisés, dóceis ao Espírito Santo que Cristo nos dá em abundância, confiemo-nos a Deus Pai, acolhendo a Sua misericórdia infinita. O salmista ajuda-nos nesta sintonia e nesta sinfonia:
A palavra do Senhor é reta,
da fidelidade nascem as suas obras.
Ele ama a justiça e a retidão:
a terra está cheia da bondade do Senhor.
….
A palavra do Senhor criou os céus,
o sopro da sua boca os adornou.
Ele disse e tudo foi feito,
Ele mandou e tudo foi criado.
….
Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,
para os que esperam na sua bondade,
para libertar da morte as suas almas
e os alimentar no tempo da fome.
…
A nossa alma espera o Senhor:
Ele é o nosso amparo e protetor.
Venha sobre nós a vossa bondade,
porque em Vós esperamos, Senhor.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano B): Deut 4, 32-34. 39-40; Sl 32; Rom 8, 14-17; Mt 28, 16-20.