Solenidade de Todos os Santos – 1 de novembro de 2020
1 – Dois dias para honrarmos aqueles que partiram para a eternidade, evocando a santidade, que nos vem de Deus e que nos assume como Seus filhos, no tempo e na eternidade, e a finitude que nos faz valorizar o tempo presente, o tempo como dom e como bênção, e sermos gratos por aqueles que vieram antes de nós e, como na corrida de estafetas, nos passaram o testemunho, acompanhando-nos durante um tempo, mas deixando-nos, depois, a responsabilidade em cuidar do mundo e dos outros, acolhendo o mandato divino.
No primeiro dia de novembro, a solenidade que reúne todos os santos e a certeza que neles estamos mais perto de Deus. Não que Deus esteja longe daqueles que O invocam, mas a proximidade aos Seus amigos faz-nos sentir também a nós mais amigos e mais amparados. Podemos dizer que «estamos circundados, conduzidos e guiados pelos santos. Não devo carregar sozinho o que, na realidade, nunca poderia carregar sozinho. Os numerosos santos de Deus protegem-me, amparam-me e guiam-me» (Bento XVI).
A santidade não é um estado, mas um caminho, não é para alguns, é para todos. Neste dia evocamos os santos todos, isto é, aqueles que a Igreja reconheceu ou o que o povo santo de Deus consagrou, mas e sobretudo os que ficaram para sempre no anonimato. «Vi uma multidão imensa, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé, diante do trono e na presença do Cordeiro, vestidos com túnicas brancas e de palmas na mão. E clamavam em alta voz: ‘A salvação ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro’».
Na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate sobre o chamamento à santidade no mundo atual, o Papa Francisco utiliza um termo significativo, os santos ao pé da porta, os pais que se gastam para cuidar dos filhos, que trabalham para trazer o pão para casa, os doentes, os que se consagram ao serviço dos irmãos. «Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus… nesta constância de continuar a caminhar dia após dia, vejo a santidade da Igreja melitante. Esta é muitas vezes a santidade ‘ao pé da porta’, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus, ou, por outras palavras, da ‘classe média da santidade’».
2 – Numa das suas missivas, São Paulo diz-nos claramente: “Já não sois estrangeiros nem hóspedes, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas, que tem Cristo como pedra angular. Em Cristo, também vós sois integrados na construção, para vos tornardes, no Espírito Santo, morada de Deus” (Ef 2, 19-22).
A certeza da nossa fé, a santidade na qual estamos imersos pelo Batismo, a configuração a Cristo, ao Seu Corpo, do Qual somos membros, o desafio permanente e premente a sermos morada de Deus, procurando, em tudo, ser dóceis à inspiração do Espírito Santo, fazendo com que os dons nos aproximem uns dos outros, nos comprometam com o bem e a verdade, com a justiça e com a paz.
“Todos, continua a sublinhar o Santo Padre, somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra”. Não nos é pedido que façamos coisas extraordinárias e acima das nossas capacidades, mas que façamos o melhor em todas as dimensões da nossa vida e em todas as circunstâncias, numa dinâmica de amor e de serviço, de empenho e compromisso na transformação positiva do mundo e cuidado por todas as criaturas de Deus, especialmente pelos que vivem em situação mais frágil.
3 – Na Lumen Gentium, o Vaticano II consagrou a vocação universal à santidade. Estamos, também aqui no mesmo barco. Não é um compromisso de alguns, é a condição de todo o batizado. A santidade não passa de moda (título que recolhe catequeses do Papa Bento XVI sobre alguns santos), é de ontem e é de hoje. É a condição do batizado. Melhor, é a condição do ser humano. Numa perspetiva humana, todos somos chamados a aperfeiçoar-nos, a desenvolver as nossas capacidades e talentos. O mundo que construirmos favorecer-nos-á ou prejudicar-nos-á. Estamos no mesmo barco. No batismo fomos introduzidos na santidade de Jesus, na vida divina, tornamo-nos novas criaturas, morremos para o pecado, fomos retirados às trevas e imersos na luz do Espírito Santo. É como “santos”, como eleitos, que pertencemos a Cristo e ao Seu Corpo que é a Igreja.
Sede santos como o vosso Pai celeste é santo. Interpelação de Jesus aos discípulos. Sede misericordiosos como o Vosso Pai do Céu é misericordioso. A santidade passa pela misericórdia, pela compaixão, pela ternura. A santidade não é, definitivamente, uma atitude passiva, de quem não faz bem nem mal, mas a decisão firme de seguir as pegadas de Jesus, fazendo-se próximo, apostando na docilidade, gastando-se a favor dos outros.
A vocação primeira do cristão é ser santo. Podemos dizê-lo de outra maneira: a vocação primeira do cristão é seguir Jesus, amar Jesus, viver Jesus, testemunhar Jesus. Ora, Jesus trouxe-nos a santidade de Deus, humanizando as relações entre as pessoas, devolvendo a dignidade aos excluídos daquele tempo, sarando os corações dilacerados pela discórdia, curando as enfermidades do corpo e da alma, espalhando ternura!
Como salienta o Papa Francisco: “O Senhor pede tudo e, em troca, oferece a vida verdadeira, a felicidade para a qual fomos criados. Quer-nos santos e espera que não nos resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa”. Deus, em Jesus, toma a iniciativa, a dianteira, cabe-nos responder do mesmo jeito, com o mesmo compromisso amoroso. Ele confia em nós. Confiemos n’Ele e deixemo-nos guiar por Ele.
4 – O caminho das Bem-aventuranças é o caminho aberto por Jesus, pela palavra e sobretudo com a Sua vida. Nada, em momento nenhum, O impediu de Se fazer próximo, bênção, compaixão, mesmo e apesar da perseguição, da maledicência, da perspetiva de ser morto. Fez-Se pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza, com o Seu amor. Bem sabemos que o amor é pobre, o amor assume a pobreza, porque se dá, se faz peregrino do outro, porque o amor predispõe-se a ser tudo para os outros, mesmo correndo o risco de ficar sem nada, sem a própria vida.
As Bem-aventuranças não sancionam a pobreza, as lágrimas, a humildade, como miserabilismo, a (in)justiça, o pacifismo. As bem-aventuranças são uma provocação, um desafio, um compromisso de lutar em todas as situações, ainda que sejamos perseguidos, silenciados, ainda que tenhamos de sofrer, de verter lágrimas, de viver na pobreza.
«Bem-aventurados os pobres em espírito, os humildes, os que choram, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os que promovem a paz, os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa».
Renunciamos ao mal, à violência, respondendo com verdade, justiça e amor. Se respondemos com violência e vingança ao mal que nos fazem, multiplicamos o conflito e as ruturas, ainda que tenhamos, sempre, o dever de restaurar a justiça e “bloquear” situações de maldade.
5 – Os santos procuraram, em todas as circunstâncias, realizar a vontade de Deus. Alguns com gestos mais eloquentes, outros pela fidelidade e persistência; alguns com uma vida sacrificada, outros na leveza do sorriso e da proximidade. Em todos, a paixão de ajudar os outros, numa escolha pela verdade e pela justiça, no cuidado afável para com todos, a atenção aos mais desfavorecidos. Dessa forma se sentiram filhos amados de Deus. «São os que vieram da grande tribulação, os que lavaram as túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro».
É uma multidão imensa de santos que nos aproxima de Deus, intercedendo por nós, mostrando-nos que é possível um caminho de santidade. “Esta é a geração dos que procuram o Senhor… Quem poderá subir à montanha do Senhor? Quem habitará no seu santuário? O que tem as mãos inocentes e o coração puro, o que não invocou o seu nome em vão. Este será abençoado pelo Senhor e recompensado por Deus, seu Salvador. Esta é a geração dos que O procuram, que procuram a face de Deus”.
Temos consciência que estamos a caminho e nem sempre transparecemos o amor de Deus para com o nosso semelhante, nem sempre o amor de Deus e por Deus é visível nas nossas palavras, nas nossas mãos ou nas nossas obras, nem sempre a nossa pertença a Cristo é visível nos nossos cansaços e afazeres. Por vezes, é maior a opacidade do que a transparência. Mas a consciência da nossa fragilidade, possibilita-nos acolher a misericórdia de Deus e ser plasmado pelo Seu Espírito de Amor. “Deus eterno e omnipotente, que nos concedeis a graça de honrar numa única solenidade os méritos de Todos os Santos, dignai-Vos derramar sobre nós, em atenção a tão numerosos intercessores, a desejada abundância da vossa misericórdia”.
6 – É também de caminho que São João nos fala. De caminho e de identidade. Somos novas criaturas. Somos filhos de Deus. Enquanto estamos no tempo, somos história a fazer-se, sujeitos às coordenadas espácio-temporais, somos pecadores em busca de ser santos.
“Agora somos filhos de Deus e ainda não se manifestou o que havemos de ser. Mas sabemos que, na altura em que se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porque O veremos tal como Ele é. Todo aquele que tem n’Ele esta esperança purifica-se a si mesmo, para ser puro, como Ele é puro”.
A esperança que nos filia na comunidade dos filhos de Deus, irmãos em Jesus Cristo, torna pura a nossa caridade, se e sempre que nos deixamos olhar por Ele, transformar por Ele e deixando que Ele aja em nós e através de nós, imitando-O em Jesus Cristo, pela ação santificadora do Espírito Santo.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano A): Ap 7, 2-4. 9-14; Sl 23 (24); 1 Jo 3, 1-3; Mt 5, 1-12a.