Domingo III da Páscoa – B – 2021
1 – Os caminhos da fé são misteriosos e multifacetados. Nem todos chegam à fé da mesma maneira e nem a todos a fé preenche do mesmo modo, ainda que o propósito seja o mesmo: inundar a vida do amor de Deus.
São Lucas coloca-nos naquele primeiro dia da nova criação. Jesus ressuscita e faz-Se visível, faz-Se presente aos Apóstolos. No Domingo passado, víamos como Tomé, mas igualmente os demais apóstolos, teve necessidade de ver Jesus e constatar que não tinha sido ludibriado, que não tinha feito parte de um embuste. No primeiro dia da Semana, Páscoa, Jesus aparece a todos e mostra-lhes as mãos e o lado. Oito dias depois volta a fazer o mesmo em relação a Tomé.
Na versão lucana, temos a aparição de Jesus aos discípulos de Emaús e como estes O reconhecem ao partir do pão. Logo que O percebem vivo, partem e vão ao encontro dos outros discípulos e contam-lhes tudo o Ele lhes disse pelo caminho e como O reconheceram, como os seus olhos se abriram.
2 – A saudação é a de sempre (comum em todos os evangelistas): «A paz esteja convosco». Jesus coloca-Se no meio, de onde nos atrai para Si e nos liga uns aos outros. Quanto mais nos aproximarmos do meio, de Jesus, mais próximos estaremos uns dos outros.
A surpresa dos discípulos é reveladora. Não estavam à espera. Já havia “rumores”, melhor, testemunhos, mas aos quais não deram muito crédito, porque vinham da parte de Maria Madalena e das outras mulheres, e de um ou outro apóstolo. Os discípulos de Emaús contam tudo o que ouviram, viram e sentiram, mas a incredulidade predomina ou, pelo menos, é muita informação para absorver. A morte e crucifixão deixaram marcas profundas de desencanto e desilusão. As notícias, boas, de que Jesus ressuscitou são estranhas ao vocabulário dos Seus seguidores. Jesus tinha ressuscitado (reanimado) Lázaro, o filho da viúva de Naím, a filha de Jairo. Nesses casos é um regresso à vida biológica e temporal, é mais uma ressuscitação ou reanimação. Mas com esses prodígios, Jesus mostrou o poder de Deus e as possibilidades das nossas impossibilidades. Deus é um Deus de vivos e quer a vida. Por isso nos criou, por amor, para vivermos na Sua presença, no tempo e na eternidade. Não nos criou para nos ver desaparecer, mas para que permaneçamos na Sua vida.
Jesus percebe as dificuldades de entendimento e a surpresa e mostra-lhes as mãos e os pés: «Porque estais perturbados e porque se levantam esses pensamentos nos vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo; tocai-Me e vede: um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que Eu tenho».
3 – Diante o Indizível, ficamos estupefactos. À alegria junta-se a admiração. Ainda há caminho a percorrer na maturação da fé. A sexta-feira santa não está longe. E é bom que não nos esqueçamos daquela sexta-feira, da cruz de Jesus, como expressão e sinal da Sua entrega, por amor, até ao limite das Suas forças. Jesus oferece a vida e a morte, para nos reconduzir à VIDA nova e definitiva no Reino de Deus.
A linguagem é limitada para dizer tanto, para acolher um mistério que vem do alto, para traduzir em palavras o que nos deixa sem palavras, mas que precisamos de dizer, de testemunhar, de acolher, de comunicar aos outros, pois não cabe em nós, nem no nosso vocabulário nem no nosso coração, mas preenche-nos, renova-nos, recria-nos, transformando-nos, por amor.
Se Jesus nos aparecesse de repente, como apareceu aos discípulos, ou a pessoas místicas, cairíamos da cadeira abaixo ou talvez ficássemos sem fala, paralisados, a achar que estávamos a ver coisas. Então Jesus pede-lhes alguma coisa para comer e eles dão-Lhe uma posta de peixe assado, que Ele come diante deles. Desta forma faz-lhes abrir a mente para a realidade do que veem. Não é um fantasma, é Ele, glorioso, mas visível, com as marcas da paixão, da vida histórica. Já passaram três dias, parece uma eternidade, mas é o mesmo Senhor Jesus.
4 – Aos gestos, como na liturgia, acrescentam-se palavras que clarificam o visível. A nossa vida está cheia de símbolos, que nos mostram a realidade e nos inserem no invisível e no indizível. Os símbolos não eliminam a nossa inteligência, mas servem-se das palavras, da cultura, das nossas vivências, do nosso vocabulário.
Um gesto, uma imagem, um símbolo pode suscitar dúvida ou, pelo menos, exigir uma interpretação, na certeza de estar sujeita às limitações e contexto de cada um. Então Jesus relembra o que lhes disse anteriormente, quando (materialmente) estava com eles. É o mesmo Jesus. A saudação é a mesma. As mãos e os pés estão chagados, não desapareceu a identidade corpórea, basta olhar (não apenas, mas sobretudo) com o coração e ver além das aparências, ainda que estas também confirmem a glorificação do Filho de Deus.
«Foram estas as palavras que vos dirigi, quando ainda estava convosco: ‘Tem de se cumprir tudo o que está escrito a meu respeito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’. Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia, e que havia de ser pregado em seu nome o arrependimento e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém».
5 – «Vós sois as testemunhas de todas estas coisas».
Jesus não escolheu os apóstolos por serem os melhores do mundo ou, em alternativa, para os fazer felizes. Escolheu-os para os preparar e para serem, com Ele, e depois d’Ele, mensageiros da salvação, testemunhando o amor de Deus, proclamando a Boa Nova do Reino de Deus. Obviamente, seguindo Jesus de perto, estarão mais perto da verdade e da bondade, do serviço e da partilha, e, da mesma forma, serão mais felizes.
Por outro lado, se são testemunhas, não se anunciam a eles próprios, mas ao Senhor. Conviveram de perto com Jesus, durante três anos, percorreram cidades e aldeias, viram como Ele falava, os milagres que fazia, os prodígios que realizava, os gestos de compaixão, de perdão e carinho para com os mais debilitados e desfavorecidos. Foram testemunhas do Seu jeito de Se fazer pequeno, próximo, amável, não se alheando dos sofrimentos dos pobres, dos doentes, dos pecadores e publicanos. Estão aptos para agir ao jeito de Jesus, transparecendo-O, anunciando a Sua mensagem, comunicando a Sua vida, a Sua entrega até à Cruz e a certeza de que está vivo no meio dos que n’Ele acreditam.
Pedro, depois das aparições do Ressuscitado, nem parece o mesmo de antes, agora apresenta-se eloquente, feliz, convicto: «O Deus de nossos pais, glorificou o seu Servo Jesus, que vós entregastes e negastes na presença de Pilatos… matastes o autor da vida, mas Deus ressuscitou-O dos mortos, e nós somos testemunhas disso. Agora, irmãos, eu sei que agistes por ignorância, como também os vossos chefes. Foi assim que Deus cumpriu o que de antemão tinha anunciado pela boca de todos os Profetas: que o seu Messias havia de padecer. Portanto, arrependei-vos e convertei-vos, para que os vossos pecados sejam perdoados».
6 – O discipulado, o seguimento de Jesus, desemboca no apostolado, na ação missionária. Seguimos Jesus para que Ele transforme a nossa vida, para que nos redima e salve, para sermos inseridos na Sua vida divina, integrarmos o Seu reino de amor, sermos novas criaturas. E uma vez convertidos, seremos inundados pela alegria da Sua presença em nós e vamos querer que outros façam a mesma experiência.
Diz-nos o apóstolo São João: «Meus filhos, escrevo-vos isto, para que não pequeis. Mas se alguém pecar, nós temos Jesus Cristo, o Justo, como advogado junto do Pai. Ele é a vítima de propiciação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos do mundo inteiro. E nós sabemos que O conhecemos, se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz conhecê-l’O e não guarda os seus mandamentos é mentiroso e a verdade não está nele. Mas se alguém guardar a sua palavra, nesse o amor de Deus é perfeito».
Pedro convida ao arrependimento e conversão, para que os pecados nos sejam perdoados e possamos levar uma vida santa, realizada e feliz. São João desafia-nos ao mesmo, garantindo que, mesmo que pequemos, não desistamos de voltar o nosso coração e a nossa vida para Deus. Jesus deu a Sua vida pela remissão dos nossos pecados, não apenas dos nossos, mas das pessoas do mundo inteiro.
Por outro lado, diz-nos São João, que a vida em Deus, ao jeito de Jesus, passa pela vivência dos Seus mandamentos que nos aproximam d’Ele e, aproximando-nos d’Ele, nos comprometem com os irmãos. Só seremos verdadeiramente cristãos, discípulos missionários, se agirmos ao modo de Jesus, dando a vida.
7 – Os dias não são todos iguais! Cada pessoa tem os seus dias, uns mais luminosos e outros mais fuscos. Mas a consciência de sermos amados por Deus, dá-nos ânimo para enfrentar as dificuldades, e avançar, e a alegria para espalhar a luz para que outros beneficiem desta boa e bela notícia.
A oração ajuda-nos a manter-nos vigilantes, confiantes e sintonizados com o amor de Deus. “Exulte sempre o vosso povo, Senhor, com a renovada juventude da alma, de modo que, alegrando-se agora por se ver restituído à glória da adoção divina, aguarde o dia da ressurreição na esperança da felicidade eterna”. A esperança na eternidade com Deus, fortalece o nosso empenho em acolher, viver e comunicar a glória da adoção divina.
“Quando Vos invocar, ouvi-me, ó Deus de justiça. Vós que na tribulação me tendes protegido, compadecei-Vos de mim e ouvi a minha súplica. Fazei brilhar sobre nós, Senhor, a luz da vossa face. Em paz me deito e adormeço tranquilo, porque só Vós, Senhor, me fazeis repousar em segurança”.
O medo paralisa-nos e destrói-nos, isola-nos e torna-nos egoístas; a confiança, desde logo em Deus, liberta-nos, abre-nos à vida e aos outros, aproxima-nos, faz-nos interpelar e deixarmo-nos interpelar. Na dúvida, invoquemos o amor de Deus, no medo deixemo-nos inundar pela Sua luz.
Como Maria, Mãe de Jesus e nossa Mãe, escutemos a Palavra de Deus com docilidade para Lhe respondermos com prontidão.
Pe. Manuel Gonçalves
Leituras para a Eucaristia: Atos 3, 13-15. 17-19; Sl 4; 1 Jo 2, 1-5a; Lc 24, 35-48.