Santíssimo Corpo e Sangue de Jesus Cristo

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Santíssimo Corpo e Sangue de Jesus Cristo

1 – O maior órgão do corpo humano é a pele. É a última fronteira. O limite que nos identifica e que, simultaneamente, nos permite comunicar com os outros. Podemos imaginar, somente imaginar, uma comunicação meramente espiritual, sem corpo. Na oração, nas intuições, nos pressentimentos. Mas mesmo aqui, por maior que seja a abstração, partimos de figuras, objetos, imagens, reais ou imaginadas. O tempo e o espaço, a história e o mundo, pressupõem o corpo, a matéria, a ocupação, a comunicação, que se faz de olhares, de gestos, de palavras, da postura, do vestuário, na forma de caminhar, na postura corporal… sempre tendo por base um corpo. O dualismo “alma-corpo” não pode ser excludente, quanto muito dialógico e inclusivo. O que nos identifica passa pela corporeidade preenchida pela inteligência, pela vontade, pela capacidade de amar, pelos sentimentos e emoções. Bem sabemos como somos psicossomáticos – o corpo influencia o nosso mundo interior e o nosso espírito influi com a saúde do nosso corpo.

Houve, no passado, como ainda atualmente, a tentação de espiritualizar a religião, desencarnando a fé, desvalorizando a corporeidade. Por conseguinte, em causa ficaria o compromisso e a luta por um mundo mais justo e fraterno. Se recuarmos aos primeiros tempos da Igreja verificámos como Tiago deixa claro que tal não é cristão. Não há fé que não seja comprovável pelas obras, pela solidariedade. Não se pode desejar a paz a alguém, despedindo-o da assembleia, sabendo que não terá que comer, que vestir ou um leito para descansar. Seria um contrassenso. A fé leva-nos ao corpo e às chagas uns dos outros. A oração é o ponto de partida, o alimento, o chão, o fundamento na certeza que a proximidade e intimidade com Deus nos devolve àqueles que rezam, vivem ou sofrem ao nosso lado. Ou então não seria Pai, Pai de todos, Pai de misericórdia. Não meu Pai, mas nosso Pai. A cumplicidade (espiritual) com Deus, força-me ao compromisso (corporal) com os outros.

Uma religião pura, sem corpo, sem o Corpo de Cristo, seria puro pensamento e, como tal, ficar-se-ia na imaginação, ao critério de cada um. Ora a religião cristã tem um Corpo, um Rosto, uma Pessoa, Jesus Cristo. E tudo tem a ver com Jesus.

2 – A solenidade do Corpo de Deus vem do século XIII, reafirmando a presença real de Jesus na Eucaristia, na hóstia e no vinho consagrados. Um pouco antes, a elevação da hóstia para que todos contemplassem, em adoração, o Corpo de Jesus. A solenidade do Corpo de Deus começou a celebrar-se em 1246, na cidade belga de Liège, tendo sido alargada à Igreja universal, em 1264, com o Papa Urbano IV, através da bula “Transiturus“, dotando-a de missa e ofício próprios. A adoração da Hóstia consagrada ultrapassou o tempo da celebração da Eucaristia e o espaço físico das Igrejas, para se fazer através das Procissões do Santíssimo.

No século XVI, a solenidade do Corpo de Deus ganhou novo ímpeto, sublinhando a fé católica, que professa a presença real de Jesus na hóstia consagrada, durante a celebração, mas perdurando na hóstia, seja no Sacrário, seja na Adoração Sacramental, em celebrações específicas, na referida procissão, ou quando se leva a comunhão aos doentes. Não é uma presença provisória ou momentânea. Também no pão e no vinho consagrados Deus “encarna” por inteiro e não apenas por um curto espaço de tempo.

Muitas vezes os cristãos são acusados de adorar as imagens. O que revela, pelo menos, ignorância, ainda que possa haver exageros. A imagem e/ou estátua é algo que é visível, palpável. Como precisamos das fotografias na carteira e no telemóvel, ainda que estejamos todos os dias com as pessoas que amamos ou falemos com elas ao telefone ou por meio das plataformas digitais. A fotografia aproxima-nos e facilita a abstração. Rezar num armazém descaracterizado não é o mesmo que se recolher num espaço preparado, arrumado, com um ambiente facilitador da oração e do encontro com os outros. Não é exatamente o mesmo viver num quarto desarrumado, com roupa e calçado espalhados pelo chão, móveis em qualquer lado, em que tenhamos que fazer esforço para não derrubarmos e não nos aleijarmos ou um quarto arranjado, limpo, arejado, em que cabemos sem andar aos tropeções! Para nos encontrarmos como comunidade, como família, precisamos de tempos e de espaços. Adorar a Deus “em espírito e verdade” é focar-se no essencial e não endeusar os espaços ou os tempos nem os templos. Mas estes facilitam o encontro e a celebração conjunta da fé.

Com tem vindo a acentuar o Papa Francisco, o tempo é mais importante que o espaço, mas este também nos desafia e compromete!

3 – Eis que venho, ó Deus para fazer a Vossa vontade. Não quiseste sacrifícios, mas fizeste-me um corpo. As palavras que a Epístola aos Hebreus atribui a Jesus falam da centralidade da encarnação, como possibilidade para a história, para a partilha da vida de Deus com a vida humana. Só na carne humana é possível Deus tocar o nosso sofrimento e a própria morte. E, por conseguinte, só nessa comunhão é possível Deus salvar-nos por inteiro.

Jesus vem para nos dar a vida e vida em abundância. Assume um Corpo, uma Vida humana, limitada e finita, num tempo e num espaço concretos. Falou-nos de diferentes maneiras, mas na plenitude do tempo, Deus veio em Pessoa ver-nos, viver connosco e como nós, para que aprendamos a viver com Ele e como Ele. Daí a necessidade de constantemente nos confrontarmos com Jesus e com o Seu Evangelho de misericórdia.

Se somos Corpo de Cristo – a Igreja é o Corpo de Cristo, Ele a cabeça, nós os membros – o compromisso é o mesmo e assim também a vontade se há de conciliar. Não é possível que um membro puxe para um lado e outro para o outro. O corpo deixa-se comandar pela Cabeça, pela inteligência e pela vontade. Daí a oração e o colocar-nos à escuta para que a inteligência de Cristo, a inteligência do coração, nos possa guiar, sintonizando-nos, fazendo-nos entrar em comunhão, para nos tornarmos verdadeiramente Corpo de Cristo.

No evangelho, Jesus insinua-Se como o alimento para todos. Alimento abundante, que sobeja para que possa ser partilhado por outros, pelos que estão ausentes. Os apóstolos veem (sobretudo) o número: muitas pessoas, poucos alimentos, dinheiro insuficiente para tanta gente. Como é verdade ainda hoje: tanta gente que não tem como alimentar-se! A riqueza nas mãos de uns poucos. A nossa responsabilidade compromete-nos. Jesus compromete-nos: «Dai-lhes vós de comer».

Tanta gente. Cinco pães e dois peixes. Ontem como hoje. A questão dos números é relativa. Também hoje podemos operar verdadeiros milagres, pela partilha. Quando partilhamos do pouco que temos, dá para mais, dá para muitos, dá para todos. Deus conta connosco, com os nossos cinco pães e dois peixes e conta que sejamos nós a distribuir.

4 – “Todos comeram e ficaram saciados; e ainda recolheram doze cestos dos pedaços que sobraram”. Milagre da multiplicação, milagre da partilha. Jesus é alimento que sacia todas as pessoas, alimento que sobeja para outras que venham. Neste gesto, Jesus antecipa a Sua entrega. Agora faz com que o pão se multiplique pela multidão, para Ele ser o Corpo, o Pão, partilhável por todos. E se comungamos o mesmo Corpo teremos que prosseguir ao jeito d’Aquele que nos dá a Sua vida, nosso alimento, nossa força e nosso guia, o Bom Pastor!

“O Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: «Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de Mim». Do mesmo modo, no fim da ceia, tomou o cálice e disse: «Este cálice é a nova aliança no meu Sangue. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de Mim. Na verdade, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha».

 Celebramos Eucaristia, comungamos o Corpo e Sangue de Jesus, para O anunciar, para que Ele nos transforme a partir de dentro. Comungamo-l’O para O partilharmos. O Alimento dá-nos o ânimo (a alma) para prosseguimos a missão d’Aquele que vem habitar-nos e viver em nós. Refira-se novamente: a cumplicidade e a progressiva identificação/comunhão com Jesus leva-nos a fazer o que Ele fazia. O cenário pode ser diferente, o compromisso é o mesmo: amar servindo, servir amando. Dar a vida, optando por cuidar dos mais frágeis.

Rezemos de corpo, alma e espírito: “Senhor Jesus Cristo, que neste admirável sacramento nos deixastes o memorial da vossa paixão, concedei-nos a graça de venerar de tal modo os mistérios do vosso Corpo e Sangue que sintamos continuamente os frutos da vossa redenção”.

A adoração de Deus – só Deus é digno de ser adorado – para que a nossa vida resplandeça cada vez mais a alegria e a paz do Evangelho, a misericórdia e a ternura em que Jesus nos enxerta, para que, dóceis ao Espírito Santo, nos acolhamos ao Coração do mesmo Pai e usemos da mesma complacência uns para os outros, constituindo uma só família, um só Corpo.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (C): Gen 14, 18-20; Sl 109 (110);1 Cor 11, 23-26; Lc 9, 11b-17.