Domingo IV da Quaresma – ano C – 2022

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Domingo IV da Quaresma – ano C – 2022

1 – Predisponhamo-nos a acolher a Palavra de Deus, escutando, saboreando, ruminando, procurando que se faça vida na nossa vida. Deixemo-nos tocar pela inspiração e pela graça de Deus, preenchendo-nos, pela oração, da Sua Presença. «Deus de misericórdia, que, pelo vosso Filho, realizais admiravelmente a reconciliação do género humano, concedei ao povo cristão fé viva e espírito generoso, a fim de caminhar alegremente para as próximas solenidades pascais».

A alegria que buscamos reforça-se pela conciliação, em Deus, com os outros e com o mundo. Contagiados pela Sua misericórdia infinita, façamos emergir a delicadeza, o cuidado e a compaixão para com aqueles que peregrinam connosco neste tempo e neste mundo.

A liturgia da Palavra que hoje temos a dita de refletir, mormente o Evangelho de São Lucas, coloca a descoberto a compaixão de Deus Pai. É grandiloquente a parábola tradicionalmente conhecida como “do filho pródigo”, ainda que seja o Pai misericordioso que preenche todo o texto. Esta parábola ilumina todo o Evangelho, pela qual Jesus nos revela o coração misericordioso do Pai que nos contagia e impele a agir do mesmo modo.

2 – Os publicanos e os pecadores, os doentes, as mulheres e as crianças, os leprosos, os surdos e os coxos, os pobres, são os amigos mais próximos de Jesus. Atrai-os pela simplicidade, pela transparência, pela afabilidade. Procura-os. Vai ter com eles, senta-se a conversar e, o gesto mais sublime e desafiante, come com eles. A refeição não é apenas um momento para se alimentar, é um momento de encontro, de convívio, de festa. Um judeu senta-se à mesa para comer com a família e com os amigos. Se Jesus come com publicanos e pecadores é por considerá-los amigos, com eles quer partilhar o tempo e a vida. Não se trata de excluir uns em relação aos outros, trata-se de uma opção preferencial, para que também os excluídos se sintam amados, acarinhados, prediletos de Deus.

Esta postura de Jesus não agrada a todos. Ele anuncia o Reino de Deus, onde todos têm lugar, dando primazia aos mais desvalidos. Alguns grupos, que se consideram privilegiados, puros, abençoados por Deus, acham que, se Ele é profeta, deve circunscrever-se ao Templo e às Sinagogas e conviver com pessoas de bem e não com pessoas de honra duvidosa. Presunção e água benta… ao sabor de cada um!

Perante o murmúrio, a desconfiança e a crítica, Jesus conta-lhes uma parábola: «Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me toca’. O pai repartiu os bens pelos filhos. Alguns dias depois, o filho mais novo, juntando todos os seus haveres, partiu para um país distante».

O Filho bem-amado, Jesus, mostra-nos o rosto do Seu e nosso Pai que ama com amor de Mãe. A Sua casa e o Seu trabalho, o Seu coração e a Sua vida orientam-se para os dois filhos, para lhes proporcionar alegria e segurança. É um Pai que parte a cara e perde a vergonha, mas não quer perder os filhos e não desiste deles. O mais novo deseja-lha a morte, pois a herança vem com a morte do pai. Este filho afasta-se, para ele o pai morreu, deixou de ser pai, porque não quer continuar a ser filho. Por sua vez o Pai não força, não discute, não argumenta, não faz chantagem. Podia recusar o seu pedido, deixá-lo partir sem nada. Mas, não, deixa-o por partir e dá-lhe uma considerável fortuna para que se oriente. Abatido, confia que ele regresse e, por conseguinte, o seu olhar perde-se no horizonte à espera que o filho volte.

«Ainda ele estava longe, quando o pai o viu: encheu-se de compaixão e correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos». Encheu-se de compaixão (revolveram-se-lhes as entranhas), quando vislumbrou o filho à distância. Não hesitou. Correu. Lançou-se-lhe ao pescoço, encheu-o de beijos. Tal como uma Mãe quando se reencontra com o filho ausente há algum tempo. O filho saiu de casa, esbanjou os bens, regressa por indigência, pois gastou tudo o que tinha, ficando na miséria. Está convencido que o Pai o aceitará como empregado, mas não como filho. O Pai nem lhe deixa que ele prossiga com o discurso que traz preparado e logo o enche beijos, recebe-o como filho, manda que lhe ponham o anel, as sandálias, a melhor túnica, manda matar o vitelo gordo, faz-lhe uma grande festa. Na mais importa, o filho que estava perdido voltou à vida! A miséria (do filho) é absorvida pela misericórdia (do Pai)! E pela gratidão!

3 – A provação, contudo, não fica por aqui. Quando o Pai se delicia com o regresso do Seu filho, aproxima-se o filho mais velho. Cumpridor. Sempre perto do Pai. Mais que filho, é um servo obediente, trabalhador. «Há tantos anos que eu te sirvo, sem nunca transgredir uma ordem tua». Não questiona as ordens. Faz o tem que fazer. Fica fora, a observar. Fora de casa e da festa!

«Ora o filho mais velho estava no campo. Quando regressou, ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças. Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo. O servo respondeu-lhe: ‘O teu irmão voltou e teu pai mandou matar o vitelo gordo, porque ele chegou são e salvo’. Ele ficou ressentido e não queria entrar».

O Pai põe-se novamente em campo. Sai da festa e de casa e vai ao encontro do filho. O Pai renuncia à sua autoridade e humilha-se pelos filhos. Os que estão à volta, os servos, são testemunhas destas coisas. O Pai expõe-se aos olhares e aos murmúrios. Assim como Jesus Se expõe ao nosso sussurro e à nossa crítica por Se atrever a conviver com pessoas de má índole.

Apesar de Se expor, o Pai não deixa de ser Pai e Mãe, cujas entranhas se revolvem, cuja compaixão (misericórdia) O conduz para fora do seu espaço de conforto. Não se preocupa com os costumes ou as ideias preconcebidas acerca da figura hierática da paternidade. Não mantém distâncias, não fica no seu canto à espera que os filhos regressem. Dá-lhes a liberdade necessária para que decidam, mas faz-lhes sentir o Seu amor, a Sua delicadeza. «Filho, tu estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado».

Mais que filhos, um e outro, assumem-se como assalariados. Quando regressa, o filho mais novo quer ser tratado como um dos servos, porque até os servos, em sua casa, são bem tratados. O filho mais velho sente-se um servo cumpridor, nunca se sentiu filho, aguarda apenas o tempo necessário para se tornar o sucessor do pai e se assumir como patrão. Desconsidera o irmão. Não ousa dizer ao pai “o meu irmão”, mas fixa-o como adversário, incómodo. “Esse teu filho”! Só quando nos sentimos filhos nos poderemos considerar irmãos!

4 – O perigo também está dentro de nós. A dracma perdida (no conjunto das três parábolas: Pai misericordioso, pastor à procura da ovelha perdida, mulher que perde e encontra a dracma) mostra que em casa também podemos perder-nos. Jesus responde com as três parábolas ao murmúrio, à crítica, à desconfiança e à suspeita que recaem sobre Ele por se misturar com pecadores e publicanos.

Para melhor percebermos e acolhermos o essencial da mensagem de Jesus, procuremos situar-nos no ângulo mais adequado: a partir do filho mais novo, do filho mais velho, ou do Pai! Porém, para que a parábola possa levar-nos à conversão, devemos situar-nos, como insiste D. António Couto, Bispo de Lamego, na assembleia ouvinte, como fariseus e doutores da lei, a quem Jesus se dirige. Contestam o proceder de Jesus, porque não conhecem o Pai, a Quem consideram patrão, juiz, todo-poderoso, a Quem temem e, por isso, procuram cumprir um conjunto de regras e de tradições para serem merecedores da compaixão de Deus.

Ora, para Jesus a salvação de Deus é DOM, é gratuita. Nenhum dos filhos fez nada que mereça os cuidados e a ternura complacente do Pai. A misericórdia alcança-os para lá dos méritos. Um sai de casa e assume-se como filho sem Pai. O outro, ainda que em casa, considera-se servo, mas não filho e não considera como irmão o outro filho de Seu Pai. Aqueles fariseus e doutores da lei, do lado de quem devemos colocar-nos, terão de fazer a experiência de Deus como Pai que ama com amor de Mãe, que quebra a cara mas não quer perder nenhum dos Seus filhos.

Sentindo a nossa fragilidade, mas sabendo-nos filhos, acolhamos em verdade a misericórdia de Deus. O primeiro passo para a cura é o reconhecimento de que estamos doentes e precisamos de tratamento. Deus toma a iniciativa de nos AMAR de todo o coração. Cabe-nos responder-Lhe. Quando é que nos assumimos como filhos bem-amados?!

5 – A revelação de Deus como Pai vai sendo desenhada ao longo do Antigo Testamento, na história da Primeira Aliança. O penitente, o orante, o crente confia a Sua vida a Deus, esperando compaixão, graça, misericórdia. A libertação do Egipto tem a marca de Deus, que não Se mantém indiferente às súplicas do Seu povo. «Hoje tirei de vós o opróbrio do Egipto», diz Deus a Josué. O Povo pode então celebrar na planície a paz e a libertação, a bênção de Deus. O deserto fica para trás para que na terra da promessa experimentem a abundância dos frutos da terra.

O Apóstolo São Paulo faz-nos ver como em Cristo, a nossa Terra Prometida, Se manifesta a justiça e a misericórdia de Deus, que nos salva e nos renova: «Deus que em Cristo reconcilia o mundo consigo, não levando em conta as faltas dos homens e confiando-nos a palavra da reconciliação… A Cristo, que não conhecera o pecado, Deus identificou-O com o pecado por causa de nós, para que em Cristo nos tornemos justiça de Deus».

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano C): Jos 5, 9a. 10-12; Sl 33 (34); 2 Cor 5, 17-21; Lc 15, 1-3. 11-32.