Domingo da Palavra de Deus – ano A – 26 de janeiro de 2020
1 – Um dia teremos que deixar o nosso espaço de conforto! Mas isso significa que poderemos voltar! Ou, pelo menos, sabemos de onde partimos, quais as nossas raízes. Há um momento de pausa, de reflexão, de oração, avaliza-se o que se deixa, antecipa-se, projeta-se o que vem pela frente. O tempo de preparação é importante, havendo oportunidade para isso, ainda que nunca estejamos perfeitamente preparados para novas realidades e daí algum receio pelo que vem lá. O nascimento de um filho! Deixar o filho andar sozinho, deixá-lo ir para a escola ou levantar-se sozinho quando cai… a partida para a Universidade (dolorosa para quem vai, mais doloroso para quem fica), a mudança de escola ou de terra, o compromisso na relação, o primeiro dia no trabalho ou num novo emprego…
Cruzando as informações dos quatro evangelistas, aceita-se que Jesus, antes de João ter sido preso, já tivesse feito algumas incursões e, talvez, alguns seguidores. Trinta e poucos anos de vida familiar, recatada, aparentemente silenciosa, dedicada ao trabalho, no caso, como carpinteiro. Mas, como bom judeu, Jesus frequenta a Sinagoga, lê a Sagrada Escritura em público, comenta e, sendo uma pessoa de fé, entusiasma-se a falar de Deus e de como Deus interveio na história e como continua a enviar sinais, a fazer-Se presente. A caminho de casa, em momentos de festa com amigos, em família, não deixa de falar com o mesmo entusiasmo. Seria errado pensar que Jesus só começou a falar de Deus e do Reino de Deus aos 34 anos!
Todavia, é a partir do Batismo ou a partir da prisão de João que Jesus se dedica por inteiro a anunciar o Evangelho: «Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos Céus».
2 – Jesus não desvaloriza o trabalho feito. Deus nunca nos desvaloriza. Jesus enxerta o Seu ministério no de João Batista, pregando o arrependimento e a proximidade do Reino tal como o havia feito o Precursor. Mantém-se reservado até que João sai de cena. Não se sobrepõe, não rivaliza. João reconhece o seu tempo e aponta para Jesus: Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo! É necessário que eu diminua e Ele cresça.
E então, sabendo que João fora preso, Jesus deixa o recato para, de forma pública, notória e consistente, anunciar a chegada do Reino de Deus com a força da bondade, do amor e do perdão.
Jesus inicia esta nova etapa em locais próximos, ainda que deixe a sua terra e se fixe em Cafarnaum. O desejo de ir para longe “em missão” é de louvar. A missão, todavia, não é uma escapatória dos familiares e da terra onde todos nos conhecem, não é um escape aos problemas de casa; há de ser a expressão de uma necessidade, de uma vocação, de um desígnio: é necessário levar mais longe e mais além a paz que brota do coração, que floresce à minha volta, para que outros usufruam do que eu experimento com os que me são próximos. É conhecido o aforismo “ninguém é profeta na sua terra”, usado pelo próprio Jesus. Com efeito, Jesus vem também para os “Seus”, para os de Sua casa e da Sua terra, vem para todos. Antes de ir para longe, faz-Se caminho nas proximidades, próximo de ti e de mim. Se não O quisermos, Ele dar-Se-á a outros. A maior distância foi da eternidade para o tempo, do Céu para a terra, distância encurtada pelo amor. O amor aproxima-nos, faz-nos vizinhos e irmãos.
Pelo caminho, Jesus encontra-te. Encontra-me. Encontra-nos. Ele vem para nos ver, para nos amar, para Se nos dar; Ele vem para nos dar a Sua vida, para caminhar connosco, para viver entre nós e quer que o Seu amor, tão grande é o Seu amor por nós, quer que o Seu amor não seja aprisionado, mas partilhado, expandido, multiplicado. Por conseguinte, conta contigo, conta comigo, conta com cada um de nós, para que vamos e O levemos a todo o lado, a todas as pessoas, O levemos e O demos a conhecer para que outros possam beneficiar do Seu amor e do Seu perdão.
3 – Em Jesus, Deus cumpre todas as promessas, levando à plenitude a Sua presença no meio de nós. A história de Deus com os homens vem desde sempre: cria-nos por amor, um amor que, transbordando, gera vida, cria-nos para a felicidade, para vivermos na Sua presença e desfrutarmos da Sua alegria e da Sua ternura. Por outro lado, cria-nos livres. A liberdade, com efeito, é uma dimensão intrínseca à pessoa que tem a capacidade para optar pelo bem ou seguir por um caminho distante do Criador.
Deus é afastado, mas nunca Se afasta. Escolhe mensageiros, escolhe um Povo, faz-Se ouvir pelos Patriarcas e pelos Juízes, pelos Reis e pelos Profetas. Não é uma Ideia abstrata, longínqua, alheada do mundo e, sobretudo, da vida dos homens, é Alguém que intervém, valorizando a nossa liberdade, mas possibilitando que vejamos e escolhamos um caminho que nos conduza a Ele. Chegada a plenitude dos tempos, faz-Se um de nós, encarnando.
Uma cidade, um local, uma cultura, um tempo determinado. Em Belém, em Nazaré, em Cafarnaum, em Jerusalém. O povo que andava nas trevas, ainda que eleito para ser a luz das nações, viu uma grande Luz e a morte dá lugar à vida, as trevas são diluídas pela Luz que vem das alturas, pela Luz que vem de Jesus, Luz para todas as nações!
4 – “O Senhor é minha luz e salvação: a quem hei de temer? O Senhor é protetor da minha vida: de quem hei de ter medo? Uma coisa peço ao Senhor, por ela anseio: habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para gozar da suavidade do Senhor e visitar o seu santuário. Espero vir a contemplar a bondade do Senhor na terra dos vivos. Confia no Senhor, sê forte. Tem confiança e confia no Senhor”.
5 – Os profetas, João Batista, Jesus. Belém, Nazaré, Cafarnaum, Jerusalém. Pedro e Paulo. Santo Agostinho e Madre Teresa de Calcutá. Eu e tu. Nós. Roma e Lamego. Penude e Tabuaço. A minha e a tua terra! Nos lugares e nos tempos, a cada pessoa e à comunidade em que se enraíza, Deus chama e Deus envia. Chama-nos para junto de Si e, se experimentamos o Seu amor, somos enviados por Ele a testemunhá-l’O junto de outros, para que também eles tenham a oportunidade de usufruir da Sua bondade e do Seu olhar amoroso.
É o Amor que nos salva, que nos liberta de egoísmos e nos irmana, nos faz solidários e capazes de construir uma sociedade mais justa e fraterna. O Apóstolo relembra a raiz e a identidade dos cristãos, a referência e o fundamento da nossa fé e da pertença ao Seu Corpo que é a Igreja: “Rogo-vos, em nome de Jesus, que faleis todos a mesma linguagem e que não haja divisões entre vós, permanecendo bem unidos, no mesmo pensar e no mesmo agir. Eu soube que há divisões entre vós, que há entre vós quem diga: «Eu sou de Paulo», «eu de Apolo», «eu de Pedro», «eu de Cristo». Estará Cristo dividido? Porventura Paulo foi crucificado por vós? Foi em nome de Paulo que recebestes o Batismo? Na verdade, Cristo não me enviou para batizar, mas para anunciar o Evangelho”.
Vivemos a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos (18 a 25 de janeiro), que se conclui com a Festa da conversão de Paulo. Na Epístola aos Coríntios, o Apóstolo alerta para o perigo das divisões e para a incongruência da fé. A fé aproxima-nos uns dos outros e leva-nos a viver o essencial, o amor, o acolhimento do abraço de Deus que na Cruz dá a vida por nós.
Por outro lado, hoje é o primeiro Domingo da Palavra de Deus, sendo Paulo um expoente do anúncio da Palavra de Deus, do Evangelho de Jesus Cristo, na certeza que a escuta atenta da Palavra de Deus desperta os nossos ouvidos e, sobretudo, o nosso coração para nos reconhecermos como irmãos, deixando-nos interpelar e salvar pela Sua misericórdia.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano A): Is 8, 23b – 9, 3 (9, 1-4); Sl 26 (27); 1 Cor 1, 10-13. 17; Mt 4, 12-23.