Domingo da Quaresma – ano C – 2022

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Domingo da Quaresma – ano C – 2022

1 – Entrámos na Quaresma, com o gesto da imposição das Cinzas (quarta-feira de Cinzas) nas nossas cabeças, sinal de penitência, desafio à conversão, tomada de consciência da nossa fragilidade e da nossa dependência a Deus e aos outros, convocação a libertar-nos do acessório para nos fixarmos no essencial, olhando para o que temos a mais e que faz mais falta a quem pouco ou nada tem.

O primeiro Domingo da Quaresma apresenta-nos o quadro das tentações. Jesus é conduzido pelo Espírito Santo em todas as circunstâncias. Discípulos missionários, também nós somos, se assim o quisermos! Igual a nós, um connosco, Jesus atravessa a história e o tempo submetendo-se às leis da natureza, à biologia humana, às coordenadas espácio-temporais. Ele não é, como se vê neste episódio, um estranho. Ele identifica-Se connosco, para que, a seu tempo, nos identifiquemos com Ele.

No momento que o mundo atravessa, com vários cenários de guerra, mas com o foco principal na Ucrânia, numa invasão cobarde e prepotente dos líderes russos, vêm ao de cima velhos fantasmas, onde se destaca a “tentação” do poder, da prepotência, com o propósito de dominar o outro à força, de reduzir pessoas e povos aos próprios ideais e convicções, anulando-as, subjugando-as ou matando-as.

Ao submeter-se às leis da natureza humana, Jesus faz-nos ver a dificuldade em perceber, em certos momentos, a raiz e as consequências do mal, e, por outro lado, coloca-nos de sobreaviso para não nos deixarmos enganar pela propaganda diabólica, que transforma o mal em bem e que nos interpela a colocar-nos no lugar e em vez de Deus.

2 – Depois de ter sido batizado por João Batista, no Rio Jordão, Jesus retira-se para o deserto e aí faz quaresma, quarenta dias de oração, de jejum, de penitência, quarenta dias para saborear unicamente a presença do Pai, armazenando o combustível necessário para os tempos de vida pública.

O número quarenta tem, na Bíblia, um significado muito próprio e significativo, é o tempo necessário a preparar um grande acontecimento. É tempo de purificação, de encontro consigo e com Deus, de reflexão, através de algum distanciamento dos ruídos e das comodidades, para que prevaleça apenas o essencial, o que faz mesmo falta à vida.

Por outro lado, o deserto, que é um lugar inóspito, onde quase não há vida, não há refúgios, onde predomina o excesso de calor e de frio. Para aí se permanecer algumas horas ou dias é preciso coragem, domínio sobre si mesmo, uma vontade intrépida de prosseguir apesar e além das condições por demais adversas. Não há seguranças. Na verdade, a única segurança é, ou em si mesmo, ou em Deus. Mas perante tamanha adversidade, logo advirá a dúvida, a tentação da desistência, de voltar atrás.

O deserto é também lugar de esperança, sobretudo no contexto bíblico. O povo permanece no deserto, durante anos, até estar pronto para entrar na Terra Prometida. Chegados ao deserto, já se percorreu um longo caminho (a partir do Egito) e vislumbra-se, entre as muitas dificuldades que ainda se vão encontrar, a entrada nessa terra dada por Deus, onde corre leite e mel.

Jesus, a nossa Terra Prometida, faz-nos ver o deserto e envolve-nos na Promessa, cumprindo-a e plenizando-a. Porquanto, mostra-nos que só chegaremos à meta se confiarmos inteiramente em Deus, na certeza que mesmo quando e onde nos faltar o pé não nos faltará a mão do Senhor.

3 – Não tendo comido durante esses dias, Jesus sentiu fome e a fraqueza potenciou a tentação: «Se és Filho de Deus, manda a esta pedra que se transforme em pão…  Eu Te darei todo este poder e a glória destes reinos, porque me foram confiados e os dou a quem eu quiser. Se Te prostrares diante de mim, tudo será teu… Se és Filho de Deus, atira-Te daqui abaixo, porque está escrito: ‘Ele dará ordens aos seus Anjos a teu respeito, para que Te guardem’; e ainda: ‘Na palma das mãos te levarão, para que não tropeces em alguma pedra’».

Como reagir perante as dificuldades e contratempos? Há sempre escolhas e caminhos! Baixar os braços, desistir, ou usar todos os meios, mesmo que imorais e injustos, para reverter as situações em benefício próprio? Impor-se pela corrupção, pela violência, pela chantagem, pelo engodo? Ou resistir, insistir, lutar, procurar meios e formas justas e honestas de responder às adversidades? Passar por cima dos outros ou procurar respostas e soluções em conjunto? Criar ilusões ou enfrentar a realidade?

As respostas de Jesus são elucidativas, tendo Deus como referencial último e decisivo: «Está escrito: ‘Nem só de pão vive o homem’… ‘Ao Senhor teu Deus adorarás, só a Ele prestarás culto’… Não tentarás o Senhor teu Deus’».

Jesus recusa-se a instrumentalizar Deus, recusa usar o poder em benefício próprio. Rejeita a espetacularidade e os caminhos fáceis, a imposição pelo milagre ou, em alternativa, a submissão a poderes obscuros, para facilitar a sua vida, dispondo-se a ser escravizado pelo mal e/ou pela corrupção. Um dia far-Se-á Pão para todos! Gastará a Sua vida a nosso favor, respeitando-nos, respeitando a nossa liberdade e as nossas escolhas. Mostra-nos o caminho. Mais do que satisfazer as próprias necessidades e urgências, tornando-Se conivente com o mal, Jesus opta pela integridade, pela verdade, respeitando os tempos de Deus.

Na sua mensagem para esta Quaresma, D. António Couto deixa-nos o desafio: “Que o ódio e a violência nunca tomem conta do teu coração. Que o teu coração seja habitação de paz. Que nunca te seduza o som das espingardas. Debulha o teu grão, reparte o teu pão, olha para Deus com gratidão. Tens a quaresma e o ano inteiro para encher de amor o teu celeiro. Não tenhas medo do nevoeiro. Que todos os dias haja misericórdia no teu coração e nos teus gestos. Que o Senhor seja a tua Luz”.

4 – Na Carta Encíclica dedicada à esperança, Bento XVI diz-nos com clarividência: «Quando já ninguém me escuta, Deus ainda me ouve. Quando já não posso falar com ninguém, nem invocar mais ninguém, a Deus sempre posso falar. Se não há mais ninguém que me possa ajudar, Ele pode ajudar-me» (Spe Salvi, 32).

Deus não é surdo às nossas preces. No deserto, Jesus sabe que pode contar com o Pai. A Encarnação revela o quanto Deus nos escuta e o quanto nos ama. Moisés mostra como Deus ouviu os clamores do Povo e veio em seu auxílio. A gratidão e o louvor para com Deus fazem-nos iguais. Não estamos subjugados uns aos outros, superiores ou inferiores, adoradores e ídolos, mas irmãos, peregrinos, voltados para Deus. Só Deus é Deus. Só a Deus adorarás!

A humanidade já experimentou os malefícios de individualidades e ideologias que se colocaram no papel de donos e senhores do mundo, como Nero, Napoleão Bonaparte, Estaline, Mussolini, Hitler, Saddam Hussein, Augusto Pinochet, ou agora Vladimir Putin.

A oração predispõe-nos a acolher a ternura e a paz que nos vem de Deus, para, subsequentemente nos responsabilizarmos uns pelos outros, na promoção da justiça e da paz, na vivência da caridade para que todos sejam irmãos e tenham o necessário a viver com dignidade.

O salmista mostra-nos a confiança em Deus e como Ele vem salvar-nos.

5 – Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Nesta expressão está contida a dimensão corpórea da pessoa, que inclui o corpo e o espírito. Nem só de pão, mas também de pão. Isso compromete-nos a trabalhar cada dia, para que haja pão para todos. Mas o pão sem a Palavra, sem a vida espiritual, sem a relação com os outros, sem a potenciação dos nossos dons, talentos e capacidades, não será vida humana. A arte, a música, a fé humaniza-nos, liga-nos aos outros além do tempo e do espaço, irmana-nos. Sem abertura ao transcendente, à vida para lá da história temporal, tudo se encerraria num hiato de tempo curto, limitado, finito, desvalorizando tudo o que fizéssemos. Se estamos limitados ao tempo cronológico e histórico, não haverá luz suficiente para vermos mais além dos nossos caprichos e egoísmos. A abertura para Deus responsabiliza-nos, em pleno, com os outros, pois havemos de Lhe dar contas pelos irmãos.

Paulo, salienta que “a palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração”. E que palavra é esta? “É a palavra da fé que nós pregamos. Se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e se acreditares no teu coração que Deus O ressuscitou dos mortos, serás salvo. Pois com o coração se acredita para obter a justiça e com a boca se professa a fé para alcançar a salvação”.

O ponto de partida ou a condição inicial para aceder à salvação é igual para todos. Com efeito, “não há diferença entre judeu e grego: todos têm o mesmo Senhor, rico para com todos os que O invocam. Portanto, todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”.

A este propósito vale a pena ler e meditar as palavras do Santo Padre, o Papa Francisco, para esta Quaresma de 2022, e que servimos aqui como aperitivo: “Muitas vezes, na nossa vida, prevalecem a ganância e a soberba, o anseio de possuir, acumular e consumir… A Quaresma convida-nos à conversão, a mudar mentalidade, de tal modo que a vida encontre a sua verdade e beleza menos no possuir do que no doar, menos no acumular do que no semear o bem e partilhá-lo”.

O que conta, também em tempo de Quaresma, é o arrependimento, a conversão, a abertura a Deus e à Sua palavra, o propósito de fazermos com que a Sua Palavra encarne, se concretize, se traduza na nossa vida de todos os dias.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano C): Deut 26, 4-10; Sl 90 (91); Rom 10, 8-13; Lc 4, 1-13.