Domingo da Divina Misericórdia – 2021

Tomé toca nas chagas

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Domingo da Divina Misericórdia – 2021

1 – É Domingo, dia do Senhor, dia da Ressurreição e da vida nova. Páscoa. Passagem da morte à vida. Das trevas somos conduzidos à luz; da desolação somos imersos na esperança; na dispersão voltamos à comunhão. Jesus retira-nos do egoísmo e impele-nos à caridade, à comunhão e à fraternidade.

Na sexta-feira santa, adveio a tristeza e o luto, o silêncio e o recolhimento, a desesperança e o medo, a impressão que chegou ao fim um tempo de bênção. Há presenças, contudo, como a de Maria, Mãe de Jesus, que nos fazem permanecer em vigília. Pode haver pouca margem para as lágrimas e para as palavras, mas há espaço para a oração confiante. Maria, desde a primeira hora, confia nos meandros misteriosos de Deus, que age na história das pessoas, dos povos e do mundo. Rezemos com Ela as dúvidas e as esperas, os medos e as contrariedades. Deus não nos falha. E não cessa de nos escutar e nos responder. Quando já não houver ninguém que nos escute, Deus continua a escutar-nos (Bento XVI).

O essencial da vida é invisível aos olhos, é visível ao coração, como nos relembra Antoine de Saint-Exupéry, no Principezinho. O que é visível também perecível. O que é duradouro, na maioria das vezes, não é tangível, não é manuseável, ainda que seja dessa forma, enquanto pessoas, que tudo se expresse, se traduza e se concretize.

2 – Na tarde deste Primeiro Dia da semana, Jesus surpreende os discípulos. Atemorizados com o que Lhe tinha acontecido, e que lhes poderia também acontecer, fecharam-se em casa. Até é compreensível, pois a casa é refúgio e oportunidade para reequilibrar a vida. A morte de alguém que nos diz muito, ou nos diz tudo, requer fazer o luto em espaços mais reservados, mais tranquilos e seguros, em família e entre os amigos mais chegados.

 Três dias de emoções díspares e contraditórias. A fé amadurecida de Maria é um elo que mantém os discípulos em espera, ainda que haja momentos em que o embotamento dificulte a escuta, a compreensão e a abertura para outras possibilidades.

As portas estão fechadas! Isso não impede a vinda de Jesus que Se coloca no meio deles e diz-lhes: «A paz esteja convosco».

Como é possível? Estaremos a ver bem? Não será uma alucinação fruto do cansaço?

3 – Jesus sabe que os seus discípulos passaram por um mau bocado.

Depois da saudação inicial, Jesus mostra-lhes as mãos e o lado. No meio da surpresa, a alegria, mas obviamente, os discípulos estão boquiabertos, como também nós estaríamos. Jesus diz-lhes novamente: «A paz esteja convosco».

A mensagem pré-pascal é a mesma após a Páscoa. É o mesmo Jesus. As marcas da paixão estão no Ressuscitado; a ressurreição, a vida nova, não anula a identidade, a história de amor que O moveu durante toda a vida, visível especialmente durante a vida pública. É o mesmo Cristo. O mesmo olhar, o mesmo corpo, o mesmo amor. Não se trata de um fantasma, uma alucinação, é Jesus. O antes não desapareceu, o passado não foi anulado. Ele morreu por amor e por amor voltou à vida. Ele está no MEIO a unir, a atrair, a solidificar a comunidade. Com a Sua morte, não havia mais razões para se manter a comunidade, pois teria sido um embuste, um falhanço. Com a Sua ressurreição, a Sua mensagem é sancionada e dá razões para que os elos se mantenham ligados a Ele.

Como facilmente se percebe, o encontro com Jesus efetiva-se no envio, no anúncio e no testemunho: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós… Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».

Jesus envia-os e dá-lhes a missão de dispensarem perdão e vida, saúde e salvação.

4 – Longe da comunidade, acabaremos por nos perder. Uma pessoa sozinha, como sói dizer-se, nem para comer serve. Tomé, chamado Dídimo, isto é, Gémeo, não está com os demais discípulos. Judas perdeu-se, saindo da convivência do grupo, isolando-se nos seus pensamentos e afastando-se do projeto de Jesus.

Quando Tomé regressa à comunidade, contam-lhe o que se passou. É a missão deles. O nosso encontro com Jesus desemboca no anúncio. Já não somos apenas discípulos, somos igualmente apóstolos. O esforço de todos não é lá muito convincente! Nem tem de ser! É alegre e entusiasta, mas não deixa de ser uma proposta. O que é bom para nós, nos faz bem e sentimos como bênção, queremos que os outros também experimentem, sintam o mesmo. Mas não nos cabe obrigá-los, convencê-los, só temos de ser explícitos no anúncio. O cristianismo, diz-nos Bento XV, expande-se, não por proselitismo, mas por atração.

Os discípulos precisaram de ver Jesus. Maria Madalena e as outras mulheres já lhes tinham falado d’Ele vivo. Também Pedro. Mas agora é a prova dos nove. Tomé não é diferente. Também quer ver. Também queremos ver, mesmo o que é invisível. «Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado, não acreditarei».

Oito dias depois, Jesus apresenta-Se no meio deles. Desta vez, Tomé está com a comunidade reunida. Jesus saúda-os e depois diz a Tomé: «Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente».

O nosso irmão gémeo responde também por nós, numa profissão de fé simples, pós-pascal, e que diz tudo: «Meu Senhor e meu Deus!»

5 – A fé não é obscura, serve-se da racionalidade, leva-nos a ver mais longe e para lá do que é tangível, palpável, visível exteriormente. A fé guia-nos, ilumina as nossas escolhas, os nossos caminhos, cria confiança. Só esta nos permite viver com saúde. Faz-nos acreditar nos outros, na vida, em Deus. Mobiliza-nos a rezar e a agir, mesmo sem vermos os frutos imediatos, envolve-nos na construção de um mundo fraterno e humano.

Jesus diz a Tomé, mas também te diz a ti e também me diz a mim: «Porque Me viste acreditaste: felizes os que acreditam sem terem visto».

Por um lado, Tomé tem razão. Não é possível acreditar sem termos visto, sem fazermos a experiência de encontro com o Ressuscitado. Por outro lado, Jesus mostra-lhe que está visível pela fé: no partir do pão, os discípulos aperceberam-Se da Sua presença. Sozinho, Tomé duvida. Na comunidade, Ele encontra-se com Jesus.

Mas diz-nos mais: quando virdes o meu lado, as minhas mãos, as minhas chagas, então sabereis que Eu vivo convosco. O que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos é a Mim que o fazeis. As feridas que cuidamos nos mais frágeis são as feridas de Jesus e permitem-nos vê-l’O. E seremos felizes se O virmos no partir e no partilhar do pão, se O virmos nos irmãos, se O virmos e d’Ele cuidarmos nas chagas dos nossos semelhantes.

6 – A fé pode não ser palpável em si mesmo, como não o é o amor, ou o perdão, mas é uma realidade que se torna evidência na vida, na postura diante dos outros, no compromisso sério, militante, permanente em fazer com que o mundo seja casa para todos e todos se sintam filhos amados de Deus.

Não é possível separar o seguimento de Jesus Cristo e do serviço fidalgo aos irmãos. Essa separação, entre a fé e a vida, entre o Evangelho e a sociedade, entre o discipulado e a fraternidade, seria um embuste, uma fraude.

A primeira comunidade é paradigma da Igreja, e das Igrejas locais e domésticas, as nossas famílias cristãs. “A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma; ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas tudo entre eles era comum. Não havia entre eles qualquer necessitado, porque todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas e traziam o produto das vendas, que depunham aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se então a cada um conforme a sua necessidade”.

7 – A primeira caridade é o anúncio do Evangelho. “Os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus com grande poder e gozavam todos de grande simpatia”. Quem adere ao Evangelho, quem segue Jesus, saberá que o egoísmo deixa de ser opção. Tal como o egoísmo, também a indiferença terá de ser combatida. Se amamos Jesus de todo o coração, passamos a agir como Ele, amando e servindo.

Isso mesmo nos diz São João, na segunda leitura: “Quem acredita que Jesus é o Messias, nasceu de Deus, e quem ama Aquele que gerou ama também Aquele que nasceu d’Ele. Nós sabemos que amamos os filhos de Deus quando amamos a Deus e cumprimos os seus mandamentos, porque o amor de Deus consiste em guardar os seus mandamentos”.

8 – Deus amou-nos primeiro. Criou-nos por amor. Por amor nos sustenta na vida. Por amor nos entrega Jesus, o Seu filho amado, para percebermos o quanto Ele nos ama.

Este segundo Domingo de Páscoa é dedicado à Divina Misericórdia, forma de acentuarmos que Deus nos ama como Pai, com coração de Mãe. “Digam os que temem o Senhor: é eterna a sua misericórdia. A mão do Senhor fez prodígios, a mão do Senhor foi magnífica. A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular. Tudo isto veio do Senhor: é admirável aos nossos olhos. Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria”.

É o poder e a fraqueza de Deus: amar-nos. É um amor entranhado, umbilical, não há forma de anular ou disfarçar. Deus é amor. O amor é Deus. Ele é misericórdia que elimina a nossa miséria, para nos elevar, para nos conduzir à abundância da Sua graça.

“Deus de eterna misericórdia, que reanimais a fé do vosso povo na celebração anual das festas pascais, aumentai em nós os dons da vossa graça, para compreendermos melhor as riquezas inesgotáveis do Batismo com que fomos purificados, do Espírito em que fomos renovados e do Sangue com que fomos redimidos”.

Não defraudemos os dons que Deus nos dá.

Pe. Manuel Gonçalves


Leituras para a Eucaristia: Atos 4, 32-35; Sl 117 (118); 1 Jo 5, 1-6; Jo 20, 19-31.