Domingo VI do Tempo Comum – C – 2022
1 – Ponhamo-nos a caminho. Dentro da multidão, mas disponíveis para nos tornarmos discípulos missionários, para tal precisamos de estar perto de Jesus, escutá-l’O com coração, olhar nos Seus olhos e deixar que o Seu olhar nos purifique nas intenções, propósitos e escolhas.
Jesus desce da montanha, detém-se num sítio plano. Ergue os olhos para os discípulos, os que o são e aqueles que poderão vir a sê-lo, e diz-lhes: «Bem-aventurados vós, os pobres, porque é vosso o reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir. Bem-aventurados sereis, quando os homens vos odiarem, quando vos rejeitarem e insultarem e proscreverem o vosso nome como infame, por causa do Filho do homem. Alegrai-vos e exultai nesse dia, porque é grande no Céu a vossa recompensa».
Desengane-se quem veja aqui motivos para se resignar à pobreza (material)! Seria a inversão de todo o Evangelho. Na verdade, Jesus vem para os pobres, para os pecadores. Vem reabilitar, incluir, vem restituir a liberdade aos oprimidos, para anunciar a Boa Nova aos pobres, para proclamar um ano (intemporal) de graça e misericórdia. Sendo rico, faz-Se pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza, com o Seu amor (cf. 2 Cor 8, 9).
Às bem-aventuranças, podemos juntar o Juízo final: «Vinde, benditos do meu Pai… Pois tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era estrangeiro e acolhestes-me, estava nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava na prisão e fostes ter comigo… quantas vezes o fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, a Mim o fizestes».
2 – São Lucas contrapõe às quatro Bem-aventuranças, quatro “ais” (maldições): «Mas ai de vós, os ricos, porque já recebestes a vossa consolação. Ai de vós, que agora estais saciados, porque haveis de ter fome. Ai de vós, que rides agora, porque haveis de entristecer-vos e chorar. Ai de vós, quando todos os homens vos elogiarem. Era assim que os seus antepassados tratavam os falsos profetas».
As maldições ver-se-ão também refletidas no Juízo Final: «Afastai-vos de mim, malditos, pois tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, era estrangeiro e não me acolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não me visitastes… quantas vezes o não fizestes a um destes mais pequenos, também a Mim o não fizestes».
Esta contraposição não é uma figura literária, ilustra, pelo contrário, a opção preferencial de Jesus pelos pobres, desfavorecidos, excluídos, doentes. Não se trata de uma opção política e ideológica, reduzindo a uma perspetiva de luta de classes, na urgência de colocar os pobres no lugar dos ricos. A opção preferencial pelos pobres engloba a libertação de todos em todos os sentidos, material, cultural, ideológico, assentando no amor e na partilha, na inclusão e solidariedade, na criação e distribuição de riqueza, na atenção a pessoas carenciadas e procurando que as estruturas sejam renovadas pela verdade e transparência, colocando-as ao serviço de todos e não apenas de interesses instalados.
3 – A pobreza imposta, pelas circunstâncias, pela corrupção, pela indiferença, é um pecado que brada aos céus, desde logo porque divide as pessoas, criando fronteiras entre pobres e ricos, sejam pessoas ou povos. Uns filhos, outros enteados. Uns com tudo e outros com nada ou como muito pouco. Ora, isto contraria em absoluto a nossa identidade cristã, o reconhecimento de que em Cristo somos todos irmãos, filhos do mesmo Pai do Céu.
Poderemos ter a tentação de concluir que a culpa não é nossa ou que muitos pobres são responsáveis pela pobreza em que caíram. Por um lado, sabemos que muitas pessoas nascem em ambientes de guerra e de miséria instalada, em países subdesenvolvidos, mas também nos países desenvolvidos, há pessoas que nascem em ambientes desfavoráveis, económica, social e culturalmente falando. Além da pobreza material, as pessoas vivem marcadas por estigmas de exclusão, envergonhando-se por estarem nessa situação.
No tempo de Jesus, a pobreza, como a doença, era tida como maldição divina. A riqueza, a saúde, a durabilidade temporal da vida, a abundância de bens e de filhos correspondia à bênção de Deus. Uma pessoa rica era uma pessoa abençoada. Uma pessoa pobre era uma pessoa esquecida e abandonada por Deus. Porém, já no Antigo Testamento há muitas passagens que sublinham a hospitalidade daqueles que cuidam dos órfãos e das viúvas, acolhendo e cuidando dos indigentes e viandantes. Não ficarão sem recompensa. Por outro lado, a certeza de que Senhor escuta o clamor do pobre e derruba os poderosos.
4 – Auxiliar os necessitados não significa criar mandriões. Nem todas as pessoas podem trabalhar, por exemplo, por questões de saúde. Por outro lado, nem sempre as remunerações fazem face ao número dos membros da família e suas necessidades básicas.
Numa parábola, Jesus fala num dono da vinha, que vai à praça, em diferentes horas do dia, convidando e questionando: “Porque ficais aqui todo o dia sem trabalhar?” (Mt 20, 1-16). Os que estão na praça justificam a “ociosidade” por não terem sido contratados. E esta é também uma preocupação do nosso tempo: o acesso a um trabalho condigno e justamente remunerado.
Perante situações concretas, por vezes é necessário dar o peixe, o assistencialismo, enquanto se ensina a pescar, justiça social e erradicação das injustiças e da pobreza. Se se enveredar apenas por esta, deixam-se morrer à fome aqueles que precisam de pão, já. Se se enveredar pela primeira, sem alterar as estruturas injustas e agir para que os próprios possam envolver-se na sua libertação, então cair-se-á num círculo vicioso que promove dependências e institui a pobreza como fatalidade.
5 – A pobreza não tem a ver com maldição de Deus ou indiferença, mas tem muito a ver com a nossa responsabilidade. Com efeito, Ele prefere os pobres, para os fazer regressar à vida e à família. É como os pais que, tendo vários filhos, em momentos distintos, darão mais atenção e prestarão mais cuidado ao filho que está doente, ou está mais longe ou durante mais tempo fora de casa, ou tem uma vida mais dura. Isso não significa que esquecem os demais, mas que querem que todos estejam bem.
Na parábola do filho pródigo, o filho mais velho, depois do regresso do irmão, trata-o como filho de seu pai, mas esquece-se que, se são os dois filhos, são irmãos. Não esqueçamos: se Deus é Pai de todos, somos irmãos uns dos outros. Ajamos como tal.
Além disso, não ajudamos porque a pessoa merece ou porque é boa pessoa, ajudamos simplesmente, pois é o mandato de Jesus Cristo e a nossa condição de discípulos. Jesus quando se abeira de alguém ou quando alguém d’Ele se aproxima, precisado de ajuda, não lhe pergunta se é boa pessoa, ajuda e pronto, não exige contrapartidas, ainda que seja expectável e mudança de vida: vai e não voltes a pecar, não caias nos mesmos vícios (cf. Jo 8, 1-11).
6 – Os pobres, bem-aventurados, são aqueles que não se escudam em si mesmos, não se sentem autossuficientes, mas dependentes dos outros e de Deus, devedores do bem e dos dons dos seus semelhantes. A pobreza, por opção, é uma atitude de vida, uma postura de quem se abre à graça de Deus. Um nada que se preenche do Tudo e do Todo que é Deus. Os ricos, em contraponto, são aqueles que confiam em si mesmos e se colocam como referencial, fechando-se a Deus, vivendo a vida de forma arrogante e prepotente, avara e egoísta. Os outros são adversários e inimigos ou escravos.
A palavra de Deus, dirigida a Jeremias e por ele transmitida ao povo, é categórica: «Maldito quem confia no homem e põe na carne toda a sua esperança, afastando o seu coração do Senhor. Será como o cardo na estepe, que nem percebe quando chega a felicidade: habitará na aridez do deserto… Bendito quem confia no Senhor e põe no Senhor a sua esperança. É como a árvore plantada à beira da água, que estende as suas raízes para a corrente: nada tem a temer quando vem o calor e a sua folhagem mantém-se sempre verde; em ano de estiagem não se inquieta e não deixa de produzir os seus frutos».
7 – O pobre não se apoia em bens ou em si mesmo, mas em Deus. Quem ama é pobre, porque se despoja de si, tornando-se vulnerável, agindo em prol do outro, dando tudo e dando-se inteiramente. Quem ama, acredita, confia, entrega-se, com o risco de se perder, aposta as fichas todos na/s pessoa/s amada/s. É esta a opção de Deus para connosco. Em Cristo, Deus despoja-Se, porque nos ama infinitamente, sujeitando-Se a ser recusado, ignorado, perseguido e a ser morto. Assim, há de ser a nossa resposta, para que em auxílio da nossa pobreza venha a riqueza do Seu amor.
Na segunda leitura, São Paulo clarifica as razões pelas quais poderemos colocar a nossa vida nas mãos de Deus. “Pregamos que Cristo ressuscitou dos mortos… Se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, ainda estais nos vossos pecados; e assim, os que morreram em Cristo pereceram também. Se é só para a vida presente que temos posta em Cristo a nossa esperança, somos os mais miseráveis de todos os homens. Mas não. Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram”.
É uma confiança para o tempo presente que se abre à eternidade de Deus que, em Cristo, se entranhou no tempo e na história, vindo até nós, fazendo-Se um de nós, caminhando connosco e introduzindo-nos na Sua vida divina. Caminhemos juntos, com Ele, como irmãos.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano C): Jer 17, 5-8; Sl 1; 1 Cor 15, 12. 16-20; Lc 6, 17. 20-26.