Domingo VII do Tempo Comum – ano C – 2022
1 – Era amigo dos seus amigos. É uma expressão muito usada para caracterizar algumas pessoas que morreram. Curiosamente, diz pouco ou quase nada, é um elogio que se pode dizer da maioria das pessoas. Mais que um elogio, é uma constatação ou resignação por não haver mais nada a dizer! Com pouquíssimas exceções, todos são amigos dos seus amigos.
A novidade do Evangelho, o mandato de Cristo, leva-nos a um patamar muito mais elevado: amar, não apenas aqueles com quem nos damos bem, com aqueles que simpatizamos, mas também aqueles de quem não gostamos tanto, e que nos aborrecem ou nos provocam náuseas.
Jesus é clarividente: «Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos injuriam. A quem te bater numa face, apresenta-lhe também a outra; e a quem te levar a capa, deixa-lhe também a túnica».
Não é fácil! Sê-lo-á na intenção ou no propósito, na prática é um bico de obra. Depende do grau de inimizade, do passado vivido, das histórias mal contadas, do desgaste dos relacionamentos e, claro, do feitio da própria pessoa. Mas é um mandato para levar a sério, pois vem de Jesus Cristo. Como cristãos, temos o dever, se nos assumimos como tal, de Lhe prestar atenção, procurando assimilar e viver os Seus ensinamentos. Não digamos que amamos muito a Cristo Jesus se não estivermos dispostos a viver do mesmo jeito que Ele, a amar, a cuidar, a perdoar, a servir, a incluir nas nossas relações até aqueles que nos querem mal. Mas repito, não é fácil e haverá momentos em que a nossa generosidade para com os outros implique distanciamento e que o perdão exija afastar-nos da toxidade desta ou daquela pessoa, até para nos mantermos saudáveis.
2 – Amar não significa gostar do feitio desta ou daquela pessoa, da sua maneira de ser ou de agir. Mas essa é também uma provação do amor autêntico, amar além das aparências, amar mesmo quando nos querem mal. É a opção de Jesus. Terá de ser a nossa também. Amar é uma decisão da vontade: fazemos o que está ao nosso alcance para aceitarmos as pessoas, convivermos com elas, ajudá-las quando e no que precisam. Como o perdão, é uma opção da vontade, aceitarmos os outros com as suas falhas, como gostaríamos que fizessem connosco. Mas perdoar não pressupõe esquecer. O esquecimento é uma questão de memória, o perdão uma questão da vontade. Em nossa ajuda, vem Deus. A oração será fundamental para perdoar, para invocar o perdão de Deus para nós e para os que nos ofendem. Será fundamental também para amarmos, sobretudo os nossos inimigos.
Há situações em que dizemos amar, mas cultivamos o desprezo e/ou a indiferença: esta pessoa para mim morreu! Já perdoei, não me diz nada, desde que não me incomode e se mantenha à distância, tudo bem! Chamemos-lhe outra coisa, isso não é amar, mas desprezar, colocar de parte, passar para o outro lado do passeio! Pode haver, e há, situações em que é, não apenas preferível, mas até recomendável o afastamento, para evitar envolver-se na toxidade desta ou daquela pessoa, desta ou daquela situação. Nem tudo é branco e preto, teremos de sopesar cada situação, mas invocando sempre a sabedoria e a caridade de Deus.
Amar implica-nos com os outros. Não basta dizer: eu amo todas as pessoas! Sim, e estou comprometido com todas as pessoas? As que estão mais perto e as que estão mais longe? Não basta contribuir para uma campanha solidária para pessoas e países distantes, é necessário que amemos em concreto aqueles que fazem parte das nossas relações, a começar pela família, pelos amigos, pela vizinhança, pelos colegas de trabalho, e por aqueles que desejaríamos distantes!
3 – Jesus é categórico: «Dá a todo aquele que te pedir e ao que levar o que é teu, não o reclames… amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem nada esperar em troca. Não julgueis e não sereis julgados. Não condeneis e não sereis condenados. Perdoai e sereis perdoados. Dai e dar-se-vos-á: deitar-vos-ão no regaço uma boa medida, calcada, sacudida, a transbordar. A medida que usardes com os outros será usada também convosco».
A referência não sou eu. Não és tu. Amar os outros como a nós mesmos, já é um começo. Mas os nossos critérios podem falir, até podemos não gostar muito de nós! A referência e a medida há de ser Deus. «Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso». Jesus prossegue dizendo que «Deus é bom até para os ingratos e os maus».
Sermos amigos dos nossos amigos, dar a quem nos dá, sorrir a quem nos sorri, não é tarefa difícil, a não ser que tenhamos mesmo mau feito, difícil e exigente é dar, amar, sorrir, ajudar aqueles que nos querem mal. Dar sem olhar a quem!
Peçamos ao Senhor que nos envolva no Seu amor. “Concedei-nos, Deus todo-poderoso, que, meditando continuamente nas realidades espirituais, pratiquemos sempre, em palavras e obras, o que Vos agrada”.
4 – A primeira leitura traz-nos um episódio, bem nosso conhecido, em que o futuro Rei David tem oportunidade de eliminar o seu inimigo, o Rei Saul.
Rezam as crónicas que David ajudou a realeza de Saul, matando o gigante Golias com a sua funda de pastor. Esse acontecimento granjeou-lhe admiração das pessoas e, em consequência, provocou a inveja e ciúme de Saul, sentindo que já não era tão apreciado pelos seus súbditos. Entretanto, David vivia no Palácio e tinha-se tornado grade amigo de Jónatas, Filho de Saul. Mas nem assim, o rei aceitou o jovem David e decidiu dar-lhe a morte. David, com um companheiro, conseguiu entrar no acampamento do Rei, durante a noite, e chegar perto dele, tendo a chance de o matar. Mas David escolhe poupar-lhe a vida, concluindo que não poderia atentar contra a vida do ungido do Senhor.
David, como tinha entrado, assim saiu do acampamento, sem que ninguém se tivesse apercebido, mas levou com ele a lança e o cantil de Saul e, já longe, faz-se ouvir: «Aqui está a lança do rei. Um dos servos venha buscá-la. O Senhor retribuirá a cada um segundo a sua justiça e fidelidade. Ele entregou-te hoje nas minhas mãos e eu não quis atentar contra o ungido do Senhor».
5 – Analisamos as circunstâncias que nos levaram a odiar determinada pessoa, ou justificações para que nos seja indiferente, e talvez concluamos que é perfeitamente normal e aceitável. E talvez seja! Aquela pessoa foi má para nós, injusta e incorreta, ou para algum amigo ou familiar, ou é má por feitio! Teremos razões que nos aconselham a mantermo-nos distantes e/ou indiferentes!
Errar é humano. Mais humano, é amar e amando procurar acertar! Perdoar é divino. Bem vemos a dificuldade que temos em perdoar a quem nos ofendeu, amar a quem nos fez mal. Por conseguinte, rezamos ao Senhor Deus que perdoe enquanto não o conseguimos fazer e para que torne o nosso coração dócil para aceitarmos os outros nas suas fragilidades.
Como gostaríamos que procedessem connosco, assim procedamos com os outros. Foi assim que Deus agiu connosco, amou-nos antes de O merecermos, perdoou-nos antes de pecarmos, de nos reconhecermos pecadores e de Lhe pedirmos perdão.
Reconhecemos, com o salmista, que “Ele perdoa todos os teus pecados e cura as tuas enfermidades; salva da morte a tua vida e coroa-te de graça e misericórdia. / O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade; não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos castigou segundo as nossas culpas. / Como o Oriente dista do Ocidente, assim Ele afasta de nós os nossos pecados; como um pai se compadece dos seus filhos, assim o Senhor Se compadece dos que O temem”.
Deus amou-nos primeiro! Perdoar e amar até os inimigos é escutar e viver o mandato divino, mesmo que seja contrário ao nosso interesse e comodismo.
6 – Deus precede-nos no amor. Por amor nos cria. Garante a nossa vida por amor. Por amor vem até nós, faz-Se um de nós. Em Jesus Cristo, Deus mostra que está do nosso lado, caminha connosco. Não nos substitui, criou-nos livres, e confia em nós. Porque criados, também limitados, sujeitos às condicionantes do tempo e do espaço; sujeitos à fragilidade e à própria morte. Em Cristo, Deus sujeitou-Se a ser um de nós, um como nós.
O primeiro homem afastou-se de Deus sem que Deus Se ausentasse ou afastasse da Sua vida. O primeiro homem, diz-nos São Paulo, é modelo do homem terreno; o segundo homem, Jesus Cristo, veio do Céu. “Assim como trouxemos em nós a imagem do homem terreno, traremos também em nós a imagem do homem celeste”. Com Jesus aprendemos a ser mais humanos e a deixar que a nossa humanidade transpareça a divindade, o amor e a ternura de Deus.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano C): Jer 17, 5-8; Sl 1; 1 Cor 15, 12. 16-20; Lc 6, 17. 20-26.