
Domingo VIII do Tempo Comum – C – 2022
1 – Deus vê o coração, nós vemos as aparências e ajuizamos a vida, os outros e os acontecimentos a partir da nossa idiossincrasia. Avaliamos, dizemos e agimos a partir do nosso campo de visão, com o que nos carateriza, com as nossas dúvidas, preconceitos, estados de alma, sensações, conhecimentos, cultura, educação. Somos nós e as nossas circunstâncias, como diria Ortega Y Gasset! Dizemo-nos, vezes sem conta, que antes de falarmos e de fazermos juízos de valor sobre alguém, deveríamos colocar-nos no lugar do outro. Há de ser um compromisso e um esforço constante. O facto de sermos cristãos implica-nos ainda mais, implica-nos sempre, pois decorre do mandamento do amor, do oferecimento da própria vida a Deus em prol do nosso semelhante. Mas atenção, um propósito é um bom ponto de partida e o caminho que fazemos para o cumprir é meritório, mas não significa necessariamente que consigamos colocar-nos (inteiramente) no lugar do outro, pois isso implicaria, em absoluto, sermos o outro! O outro será sempre um mistério para nós.
No Evangelho, Jesus alerta-nos para não nos colocarmos como referência para os outros! Vamos por partes. Estamos vinculados ao seguimento de Jesus e esse vínculo faz-nos portadores da Sua alegria e do Seu amor, da Sua bondade e da Sua luz, do Seu Evangelho e da Sua vida, dada por todos. Como o Apóstolo nos recorda, cabe-nos ser embaixadores de Jesus Cristo. São Paulo propõe-se como referência, mas apontando para Jesus Cristo: sede meus imitadores como eu o sou de Cristo. Termos consciência da nossa pertença a Jesus Cristo e cumprindo com o Seu mandamento de amor, estamos no caminho de ser testemunhas fiáveis. O risco onde está? Está quando nos esquecemos da dimensão lunar, propondo-nos ser o Sol, substituindo-nos a Jesus Cristo. A Lua cumpre na perfeição o seu papel, refletindo a luz do Sol. Não a absorve, não fica com ela só para si, mas deixa que o seu solo a projete para outros espaços. Assim a Igreja e os cristãos. A luz que projetamos é a de Cristo; é a Ele que anunciamos, é Ele que transparecemos.
2 – «Poderá um cego guiar outro cego? Não cairão os dois nalguma cova? O discípulo não é superior ao mestre, mas todo o discípulo perfeito deverá ser como o seu mestre». Só Deus é Deus. Não esqueçamos, em nenhum instante: só Deus é perfeito, santo, misericordioso, substantivamente! Nós vamos adjetivando a nossa vida com a santidade, com a perfeição, com a misericórdia de Deus, na medida em que nos deixamos transformar pela Sua graça. A cada momento! Deixemos cair a presunção! Estamos a caminho! Sempre! Havemos de chegar à meta! Então vê-l’O-emos tal como Ele nos vê! Porquanto caminhamos, somos peregrinos. Caminhemos juntos, animando-nos reciprocamente.
Amai os vossos inimigos. Não julgueis e não sereis julgados, não condeneis e não sereis condenados. A medida que usardes com os outros será usada convosco. «Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua? Como podes dizer a teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro da tua vista’, se tu não vês a trave que está na tua? Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista e então verás bem para tirar o argueiro da vista do teu irmão».
A correção fraterna também é mandato de Jesus, mas não sem antes cuidarmos do nosso coração, da nossa alma, de deixarmos que o Seu amor nos purifique, procurando que o Seu olhar cure o nosso. Quando olhamos para os outros com o nosso olhar, não é certo que não caiamos na tentação de os vermos segundo o nosso egoísmo ou a nossa maldade ou segundo o nosso preconceito. Na dúvida, rezemos! Uma e outra vez! E outra ainda! Perguntemo-nos o que faria Jesus se estivesse no meu lugar, nesta situação, diante desta pessoa! Como agiria Ele, que diria Ele? É o amor de Deus que deve enformar os nossos pensamentos, palavras e ações.
3 – «O homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o bem; e o homem mau, da sua maldade tira o mal; pois a boca fala do que transborda do coração». Olhar a vida, o mundo e as pessoas com o olhar de Deus faz com que tudo seja diferente! Faz com que o nosso empenho seja diferente!
Jesus dá o exemplo da árvore. «Não há árvore boa que dê mau fruto, nem árvore má que dê bom fruto. Cada árvore conhece-se pelo seu fruto». Uma pessoa que inunda a sua vida de inveja, ciúme, soberba, egoísmo, revolta, não poderá dizer coisas positivas, não terá vontade de agradecer, de louvar, de elogiar. Uma pessoa desencontrada é uma pessoa dividida, fragmentada, perdida! Não adianta dizer-lhe que a vida tem coisas boas e que existem pessoas realmente boas e que fazem o bem gratuitamente! Não adianta insistir que o Sol brilha se o coração está cheio de trevas; não adianta mostrar que é de dia, se é a noite que domina e se expande.
Isso não significa que não tenhamos momentos tenebrosos, mas, como cristãos, queremos seguir além de todas as adversidades, por maiores que sejam, porque sabemos que maior é o Amor de Deus por nós e, por conseguinte, há caminho a percorrer, há vida a acolher, a sentir e a partilhar, há chão e há Céu, porque é Ele que no-lo garante.
O mundo está novamente em guerra! Se é que alguma vez esteve em paz! Contudo, continuamos a rezar pela paz e a pedir ao Senhor, nosso Deus, que ilumine o coração dos que provocam a guerra e sabedoria para que os líderes mundiais sejam capazes de encontrar soluções justas e duradouras, para as pessoas e para os povos. “Fazei, Senhor, que os acontecimentos do mundo decorram para nós segundo os vossos desígnios de paz e a Igreja Vos possa servir na tranquilidade e na alegria”.
4 – «O fruto da árvore manifesta a qualidade do campo: assim as palavras do homem revelam os seus sentimentos. Não elogies ninguém antes de ele falar».
O sábio de Israel faz-nos ponderar os nossos juízos de valor sobre os outros. E, tal como no Evangelho, também aqui surge a imagem da árvore e dos frutos. A coerência de vida, a que todos apelamos, faz-se da correspondência entre pensamentos, palavras e ações; entre desejos, propósitos e boas obras. «Quando agitamos o crivo, só ficam as impurezas: assim os defeitos dos homens aparecem nas suas palavras». O vaso de barro é provado pelo fogo; nós, somo-lo pelas palavras e pelas obras. Não adianta dizermos que somos bons se a nossa vida não transparecer bondade!
Na última semana, fomos acompanhando o avanço da crise entre a Rússia e a Ucrânia e, finalmente, pudemos testemunhar como as juras e as promessas não passaram de palavras vãs. O que muitos antecipavam e previam, e cujos sinais eram por demais evidentes, aconteceu e as armas voltaram a ouvir-se com mais persistência e intensidade. Na verdade, por aquelas bandas, as armas nunca estiveram silenciadas ou arrumadas!
Agora vê-se com clarividência como as palavras esconderam as intenções e, passando pelo crivo das ações, eram palavras de circunstância, enganadoras e malévolas. O sábio bíblico sugere ouvir-se o homem e só então emitir uma opinião sobre ele, mas neste caso concreto, fomos enganados pelas palavras e pela suposta honradez de alguns líderes. Como diria São Tiago, mostra-me a tua fé sem obras que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé. Na verdade, não há fé que não conduza à prática do bem e da justiça. A fé, se é autêntica, leva-nos a querer o que Deus quer. Matar, ameaçar, destruir, mentir, desprezar a vida, excluir o outro, nada tem a ver com Deus.
5 – «O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro do Líbano: plantado na casa do Senhor, florescerá nos átrios do nosso Deus. Mesmo na velhice dará o seu fruto, cheio de seiva e de vigor, para proclamar que o Senhor é justo: n’Ele que é o meu refúgio não há iniquidade».
A nossa referência, sustentáculo e a nossa meta é Deus, que Se revela em plenitude em Jesus Cristo. Se formos fiéis ao Senhor, como reza o salmista, então a nossa vida dará frutos em abundância. As raízes alimentam o tronco e os ramos; se arrancamos a raiz, a árvore cairá e secará, não dará mais frutos. Enraizemo-nos, pela fé, em Jesus Cristo, sustentados pela fé da Igreja e dos irmãos, para que os ramos possam fazer florir e dar frutos bons.
São Paulo, na segunda leitura, aponta, como meta definitiva, a vida eterna, mas que se enxerta na nossa vida presente. A morte foi vencida pela ressurreição do Senhor Jesus. Se a Ele nos mantivermos ligados, Ele manter-nos-á ligados, com Ele, ao Pai para sempre. «Permanecei firmes e inabaláveis cada vez mais diligentes na obra do Senhor, sabendo que o vosso esforço não é inútil no Senhor».
Há momentos da nossa vida que são desanimadores, e por vezes avassaladores, tais como as perdas, desencontros, a ingratidão, a doença, a morte de um familiar ou amigo, as dificuldades no trabalho, as injustiças que sofremos e aquelas que não podemos evitar ou resolver. Perante uma calamidade, como a pandemia, a violência, a traição, a incompreensão poderemos ensimesmar-nos, criarmos uma carapaça que nos proteja contra o sofrimento e nos torne indiferentes ao sofrimento alheio ou às injustiças perpetradas pelos outros.
Podemos não ter vontade de nos comprometermos com os outros, com a vida, com a alegria do Evangelho, até por acharmos que estamos a remar contra a maré, ou que ninguém ajuda, mas, como nos garante o Apóstolo, como nos garante Jesus, nenhum esforço será esquecido pelo Senhor, nenhum copo de água dado em Seu nome ficará sem recompensa. Mãos à obra. Temos muito que caminhar, muita paz para anunciar, muita vida para contagiar com a ternura de Deus.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano C): Sir 27, 5-8; Sl 91 (92); 1 Cor 15, 54-58; Lc 6, 39-45.