Domingo XVIII do Tempo Comum – B – 2021
1 – Há pessoas a viver em palácios tão pobres, como diria Augusto Cury, tão pobres, que só tem dinheiro, bens materiais e ações na bolsa. Têm tudo, mas querem ter também o que não têm ainda, vivem ansiosos com medo de perder o que têm, vazios, tristes e infelizes, a preencherem a vida com festas, desportos, apostas e toxicodependências várias, tão pobres, tão pobres que lhes falta alegria de viver, a espontaneidade dos amigos, a sinceridade das companhias, a partilha dos momentos sem a constante preocupação das perdas e dos ganhos, das vantagens e desvantagens.
Há pessoas a viver em barracos, com poucos recursos materiais, económicos e financeiros, e tão felizes, porque têm amigos, porque têm a vida preenchida de pequenas coisas, de luta, de esforço e sacrifício, partilham a espontaneidade dos amigos, não vivem ansiosos ou estressados com aquilo que podem perder ou ganhar, confiam na amizade sem fingimento nem interesses ocultos, porque sabem que os amigos não estão comprados pelo dinheiro, pelas festas, pelo estatuto social. São felizes porque amam se sentem amadas. Nos momentos de aperto, de adversidade, têm outras pessoas com quem contar, que permanecem, que ajudam. Sabem que os dias de tormenta são efémeros, pois os dias seguintes trarão a bonança.
Claro que a vida não é a branco e preto, mas multicolor, com muitas nuances e matizes. Colocamos estes dois polos para vincar que o decisivo na vida das pessoas, e na felicidade como caminho, não é o que se possui, mas o sentido dos instantes, os compromissos, os afetos e a verdade, um projeto de vida assente em pessoas!
2 – Depois da abundância do pão, da multiplicação e da partilha, a multidão apressa-se a reencontrar Jesus, que, entretanto, tinha passado à outra margem do mar. Parece que Jesus Se esquiva. Estava numa margem, sacia a fome a uma multidão faminta, e parte para outras bandas. A ideia não é esconder-Se, mas revelar-Se, a ti e a mim, naquela margem e nesta margem, nos dois lados do mar. Onde se encontram as pessoas. Não é refém de ninguém, faz-Se próximo de todos, ajustando-Se a nós e às nossas contingências.
À admiração da multidão, Jesus contrapõe os motivos de tal pressa: «Em verdade, em verdade vos digo: vós procurais-Me, não porque vistes milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes saciados. Trabalhai, não tanto pela comida que se perde, mas pelo alimento que dura até à vida eterna e que o Filho do homem vos dará. A Ele é que o Pai, o próprio Deus, marcou com o seu selo».
A multiplicação permitiu a Jesus expressar a compaixão concreta para com a multidão. Não adiantam belos discursos se depois nada se fizer de concreto pelos outros. É a postura de Jesus, que é exemplo a seguir. Como Ele, também nós devemos fazer tudo pelos outros.
Os milagres, por outro lado, evidenciam uma identidade que nos transcende, a identidade divina. Ele traz-nos o poder de Deus. Através de sinais e de prodígios, da Sua vida, em palavras e gestos, Jesus mostra-nos o amor de Deus, para nos levar a acolhê-l’O e a agir do mesmo modo. Contudo, aquela gente fixou-se no resultado – ficaram saciados – e não no sinal – milagres que expressam atenção, cuidado e ajuda aos outros.
3 – «Que devemos nós fazer para praticar as obras de Deus?».
A pergunta feita a Jesus, permite-nos concluir que, pelo menos alguns, se abriram às palavras de Jesus, procurando perceber melhor ao que Ele vinha. Na resposta, Jesus remete-os, e a nós também, para a fé. É o ponto de partida e alicerce em que a nossa vida se apoia: «A obra de Deus consiste em acreditar n’Aquele que Ele enviou». Eles perguntam por obras; Jesus reponde que tudo se resume, tudo parte, tudo se fixa em Deus.
É a fé que nos predispõe a acolher e ajudar os outros, é a fé que nos faz caminhar para Deus, conjuntamente com os outros. A fé (em Deus) é garantia de que a nossa vida vale a pena, não está encerrada no tempo, na história, não findará com a morte, ainda que, biologicamente, todos estejamos sujeitos a esse fim. Sem Deus, sem fé, tudo terminaria, mais cedo ou mais tarde. Então de pouco adiantaria correr, trabalhar, esforçar-se ou sacrificar-se, sabendo que tudo acabaria por desaparecer como pó que o vento leva! Regressámos ao pó, na condição mortal, mas pó amado, acolhido, salvo por Deus, que nos ressuscita e nos integra na Sua vida divina.
4 – Há respostas que provocam novas perguntas. Há respostas que nos inquietam e dificultam a nossa resignação. «Que milagres fazes Tu, para que nós vejamos e acreditemos em Ti? Que obra realizas? No deserto os nossos pais comeram o maná, conforme está escrito: ‘Deu-lhes a comer um pão que veio do Céu’».
É certo que também nós dizemos que a qualidade da árvore se vê pelos frutos que produz. Jesus não foge à questão e sustenta as Suas palavras em obras, gestos e prodígios, na conduta de vida, num referencial permanente: a fé, a ligação íntima com o Pai. E também nos diz que muito do que nos é atribuído como mérito é dom de Deus, que nos faz, não guardar para nós, mas partilhar com todos.
Com efeito, diz Jesus, «não foi Moisés que vos deu o pão do Céu; meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão do Céu. O pão de Deus é o que desce do Céu para dar a vida ao mundo».
O capítulo seis de São João, que começamos a escutar há oito dias, vai acompanhar-nos alguns Domingos. Trata-se do discurso do Pão da Vida, de Jesus como alimento para a nossa existência humana. A multiplicação aponta à abundância, à partilha solidária, à responsabilidade de uns pelos outros. Estamos comprometidos, não de forma abstrata ou espiritual, mas no concreto, pelas necessidades dos outros e seus sofrimentos. Mas o nosso compromisso, como o de Jesus, há de ser expressão de amor, de compaixão, em todo o tempo, e não apenas quando nos dá jeito, ou quando no-lo solicitam.
Aí está a garantia de Jesus: «Eu sou o pão da vida: quem vem a Mim nunca mais terá fome, quem acredita em Mim nunca mais terá sede». Ao pedido da multidão – «Senhor, dá-nos sempre desse pão» – Jesus garante um alimento que não se esgota. Se comemos o Pão que é Cristo, se comungámos o Seu corpo, não podemos deixar de partilhar a vida, como Ele fez, e atender aos mais necessitados, pois também Ele veio, não para ser servido, mas para servir e dar a vida por todos, sendo rico, fez-Se pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza, com o Seu amor e a Sua vida.
5 – Na primeira leitura, visualizamos uma situação bem próxima do Evangelho. O povo fixa-se mais no estômago e no ventre do que na fé, na gratidão pelas maravilhas realizadas, na confiança em Deus que ouviu os clamores do Seu povo no Egito.
Mais uma vez, Deus não é insensível ao grito dos israelitas, mesmo tenha vindo ao de cima a ingratidão. «Vou fazer que chova para vós pão do céu. O povo sairá para apanhar a quantidade necessária para cada dia. Vou assim pô-lo à prova, para ver se segue ou não a minha lei. Eu ouvi as murmurações dos filhos de Israel. Vai dizer-lhes: ‘Ao cair da noite comereis carne e de manhã saciar-vos-eis de pão. Então reconhecereis que Eu sou o Senhor, vosso Deus’».
O Senhor Deus dá-nos o pão e dá-nos mais tempo para nos convertermos. A paciência de Deus assenta no Seu amor por nós; a nossa impaciência bebe na nossa falta de confiança na Sua bondade. As promessas de Deus cumprem-se em concreto com as codornizes e com o «Man-hu», o maná. Diz-lhes e diz-nos Moisés: «É o pão que o Senhor vos dá em alimento».
6 – O salmo deste dia, recordando as maravilhas operadas pelo Senhor, desafia-nos a abrir o nosso entendimento e o nosso coração a Deus, para Lhe agradecermos os dons que nos dá e O louvarmos por tudo quanto realiza em nós e do mundo.
“Nós ouvimos e aprendemos, os nossos pais nos contaram os louvores do Senhor e o seu poder e as maravilhas que Ele realizou. / Deu suas ordens às nuvens do alto e abriu as portas do céu; para alimento fez chover o maná, deu-lhes o pão do céu. / O homem comeu o pão dos fortes! Mandou-lhes comida com abundância e introduziu-os na sua terra santa, na montanha que a sua direita conquistou”.
Peçamos-Lhe, confiantes: “Mostrai, Senhor, a vossa imensa bondade aos filhos que Vos imploram e dignai-Vos renovar e conservar os dons da vossa graça naqueles que se gloriam de Vos ter por seu criador e sua providência”, para que em todo o tempo correspondamos ao Seu amor, multiplicando pelos outros os dons que recebemos.
7 – A míngua pode levar-nos, como ao Povo Eleito, à murmuração e ao protesto contra Deus. Mas também a fartura nos pode conduzir ao esquecimento de Quem está na origem de tudo. Não basta termos o nome de cristãos, para quando nos dá jeito ou nos é conveniente. Não basta sermos batizados, na verdade, importa que nos tornemos verdadeiramente cristãos, seguidores e imitadores de Cristo, procurando em tudo, em todo o tempo, em todas as situações sintonizar a nossa vida com a d’Ele, para que nessa intimidade, possamos transparece-l’O entre nós, na nossa relação com os outros.
Sublinha bem São Paulo: «Não torneis a proceder como os pagãos, que vivem na futilidade dos seus pensamentos. Não foi assim que aprendestes a conhecer a Cristo, se é que d’Ele ouvistes pregar e sobre Ele fostes instruídos, conforme a verdade que está em Jesus. É necessário abandonar a vida de outrora e pôr de parte o homem velho, corrompido por desejos enganadores. Renovai-vos pela transformação espiritual da vossa inteligência e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus na justiça e santidade verdadeiras».
Alimentemo-nos constantemente de Jesus, da Sua Palavra, mantenhamo-nos perto do Seu coração, com a nossa oração, para que se efetive e concretize em nós a verdadeira identidade de filhos amados de Deus.
Pe. Manuel Gonçalves
Leituras para a Eucaristia (ano B): Ex 16, 2-4. 12-15; Sl 77 (78); Ef 4, 17. 20-24; Jo 6, 24-35.