Domingo XX do Tempo Comum – ano A – 16 de agosto de 2020

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Domingo XX do Tempo Comum – ano A – 16 de agosto de 2020

1 – Um dos dramas do nosso tempo é a indiferença perante a miséria com a qual convivemos, através dos meios de comunicação social e das redes sociais, mas também nas ruas e praças de muitas cidades. A violência e a pobreza tornaram-se banais. O Papa Francisco tem alertado para a globalização da indiferença. Em mais de uma ocasião chamou a atenção para esta economia que mata. Quando a Bolsa de Valores sofre uma quebra, ainda que muito baixa, um ponto percentual, todo o mundo se agita preocupado; morre mais um pobre à fome ou numa rixa, ou milhares de refugiados em situação sub-humana e parece que é natural. A violência já não nos choca, já vimos tanto miséria, tanta destruição, que já nem paramos para refletir!

O encontro de Jesus com a mulher cananeia põe em choque os Seus discípulos. Se atendermos bem à postura de Jesus, à Sua forma de lidar com as pessoas, especialmente em relação aos mais pequeninos, pobres, pecadores, doentes, crianças, mulheres, publicanos, os que vivem à margem, porque não pertencem ao povo judaico, não há qualquer reparo que se possa fazer à Sua delicadeza, atenção e proximidade. Jesus escuta, mesmo quando a multidão faz demasiado ruído. Jesus vê (Zaqueu, Mateus, a mim e a ti), mesmo quando outros passam, avançam e não olham, vê mesmo que haja outras pessoas a criar barreiras. Jesus sente cada pessoa que se aproxima d’Ele e toca nem que seja na fímbria do seu manto, ainda que seja apertado pela multidão. Jesus para mesmo que seja “empurrado” pelos discípulos e atende todos os que encontra pelo caminho e Lhe suplicam!

2 – Jesus, com os Seus apóstolos, continua a percorrer cidades e aldeias, vilas e lugarejos. Desta feita para os lados de Tiro e Sidónia, lugares pagãos e, por conseguinte, sinal que Jesus não se limita às fronteiras do judaísmo.

Uma mulher cananeia começa a gritar: «Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim. Minha filha está cruelmente atormentada por um demónio». Para esta mulher, Jesus não é estrangeiro, nem estranho, nem distante, pois dirige-se-Lhe tratando-O por Senhor, por Filho de David.

Há uma atração prévia, esta mulher já tinha ouvido falar de Jesus e está por dentro das profecias judaicas. É impelida, por certo, pelo Espírito Santo, a ir ao encontro de Jesus. Já ouviu falar d’Ele, já se informou sobre a Sua bondade e delicadeza, confia que não será defraudada a sua esperança. Arrisca. Pelos filhos, as mães, os pais, fazem tudo. Não importa se têm de receber “nãos” ou enfrentar o escárnio dos outros, se têm de passar por uma vergonha ou por uma desilusão. Os filhos valem qualquer risco, valem os riscos todos. Esta mãe não se limita a pedir delicadamente, grita, incomoda, insiste, não se acanha de ser vista como louca.

Mas, diz-nos o evangelista, Jesus não lhe responde, fica de boca calada! Começa a perceber-se a provocação. Jesus quer que nós ouçamos os gritos daqueles que sofrem. Se andamos apressados, preocupados com muitas coisas, centrados em nós, faltar-nos-á a disponibilidade para a escuta, para a atenção aos outros, para responder a quem nos interpela. Já vimos de tudo, a violência, a miséria, o sofrimento dos outros já é tão corriqueiro que já não nos provoca calafrios. Daí este silêncio ensurdecedor por parte de Jesus.

Logo os discípulos interpelam Jesus: «Atende-a, porque ela vem a gritar atrás de nós». O que os incomoda, não é o sofrimento, mas a gritaria desta mulher que os desafia e os expõe à curiosidade de quem passa! A insensibilidade está lá. Eles conhecem Jesus! Já viram com Jesus é atencioso, como Se preenche de compaixão. Tendo diante a multidão, Jesus ensina-a, cura os seus doentes, alimenta-a em abundância, e, no entanto, os discípulos continuam a não perceber a bondade de Jesus que se concretiza na resposta concreta a cada pessoa que O interpela, que se aproxima d’Ele ou de quem Ele se aproxima.

3 – O repto foi lançado. Jesus não é insensível, ainda que aparentemente não Se deixe mover pela gritaria. A oração não incomoda Deus, nós é que, pelo contrário, desistimos rapidamente, achando que Deus não nos escuta ou se nos escuta não nos atende, pois tem mais que fazer. Jesus mostra que Deus não deixa ninguém sem resposta. Vale a oração dos próprios, mas vale também a oração de intercessão, como dos discípulos em relação a esta mulher.

«Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel».

Afinal, Jesus responde, mas não como expectável! Ou será que nos obriga a uma oração mais intensa, mais fervorosa?

Esta mãe não desiste, vem e prostra-se diante de Jesus e suplica: «Socorre-me, Senhor».

Parece que Jesus testa a fé desta mãe! Ou será que testa a fé dos discípulos? A contestação “nacionalista” e “grupal” de Jesus é bem mais adequada aos discípulos. Como não lembrar quando eles proíbem um homem, que andava a expulsar demónios, a curar, só porque não pertencia ao grupo de discípulos! Jesus coloca em voz alta o que nos vai no coração: «Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos». Que temos nós a ver com os estrangeiros? Que temos nós a ver com o nosso irmão, com Abel? Acaso somos guardas uns dos outros?

Uma mãe vai ao limite, enquanto houver possibilidade, por mais ínfima que seja, não há como desistir: «É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos».

Através desta mulher, Jesus faz-nos ouvir a misericórdia de Deus, que não é um exclusivo dos “bons” ou dos que perfilham esta ou aquela religião. Há sempre caminho para rezar a Deus. Não é possível encerrar Deus nos nossos esquemas mentais, circunscrevendo-O à nossa pátria religiosa.

4 – Deus ama-nos, antes sequer de termos consciência desse amor que nos cria, nos sustenta, também na eternidade, e nos salva. Não precisamos de convencer Deus com as nossas qualidades e feitos, com as nossas promessas e juras, mesmo que em situações delicadas tenhamos necessidade disso. O que nos cabe é acolher o Seu amor. O ponto de partida é a fé em Deus, a confiança no Seu amor, a certeza da Sua benevolência.

A fé é que nos salva! Não uma fé para quando dá jeito, mas a fé que nos faz reconhecer Deus como Pai e os outros como irmãos em Cristo Jesus. Para chegarmos ao Coração de Deus, basta que abramos o nosso coração, a nossa vida, deixando que o Seu olhar nos transforme e nos ilumine.

A oração desta mãe é intensa, não tanto pelas palavras que do coração assomam aos lábios, mas pela fé com que reza a Jesus, confiante, resiliente, certa que Ele não deixará de responder. No final, venceu a oração, a fé desta cananeia: «Mulher, é grande a tua fé. Faça-se como desejas». Conclui o evangelista dizendo que a partir daquele momento, a sua filha ficou curada. E concluímos nós com a oração inicial da Eucaristia: “Deus de bondade infinita, que preparastes bens invisíveis para aqueles que Vos amam, infundi em nós o vosso amor, para que, amando-Vos em tudo e acima de tudo, alcancemos as vossas promessas, que excedem todo o desejo”.

5 – Isaías, que anuncia a vinda do Emanuel, Deus connosco, perscruta a mensagem do Senhor, fazendo ver que a Sua benevolência se destina a todos. O Profeta mostra-nos que a religião não está vedada a ninguém.

Aos que têm fé, a inevitável ligação à vida: «Respeitai o direito, praticai a justiça, porque a minha salvação está perto e a minha justiça não tardará a manifestar-se». Conhecemos o princípio, se amamos a Deus, amemos também os Seus mandamentos, amemos as pessoas que Ele coloca à nossa Beira e vivamos segundo a justiça do amor e da verdade.

«Quanto aos estrangeiros que desejam unir-se ao Senhor para O servirem, para amarem o seu nome e serem seus servos, se guardarem o sábado, sem o profanarem, se forem fiéis à minha aliança, hei de conduzi-los ao meu santo monte, hei de enchê-los de alegria na minha casa de oração. Os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceites no meu altar, porque a minha casa será chamada ‘casa de oração para todos os povos’».

Ninguém está impedido de aceder ao Senhor, pois se Ele a todos nos cria por amor, por amor a todos acolhe na Sua casa.

Respondamos, com o salmista, aos desafios da palavra de Deus, rezando: “Deus Se compadeça de nós e nos dê a sua bênção, resplandeça sobre nós a luz do seu rosto. Na terra se conhecerão os vossos caminhos e entre os povos a vossa salvação”. Também através de nós, pelas nossas palavras e obras, Deus Se dará a conhecer a todos os povos.

6 – São Paulo é também conhecido como o Apóstolo dos gentios, isto é, daqueles que não vêm do judaísmo. Jesus Cristo é judeu, tal como todos os apóstolos e discípulos. Também São Paulo é um fervoroso judeu. Depois da morte e ressurreição de Jesus, os discípulos reúnem-se para falarem de tudo quando ouviram ao seu Mestre. A partir do Pentecoste, portas e janelas abrem-se de par em par e os discípulos de Jesus assumem-se como Seus apóstolos anunciando-O em todos os cenários.

Formam-se comunidades de seguidores de Jesus. Com a perseguição a estas pequenas comunidades, pequenas igrejas, a necessidade de ir saindo, cumprindo, ainda que a isso forçados, o mandato de Jesus de irem por todo o mundo a anunciar o Evangelho e a fazer discípulos em todas as nações.

Paulo, de perseguidor a seguidor, assume-se agora como fervoroso discípulo missionário. Encontrando resistência entre os judeus, vira-se resolutamente para os gentios, tomando consciência que o Evangelho não pode estar circunscrito a um grupo, a uma região, a uma cultura. A abertura aos pagãos, aos gentios, não implica o fechamento ao judaísmo, pode, aliás, como no-lo diz São Paulo, significar provocação e desafio.

“Vós fostes outrora desobedientes a Deus e agora alcançastes misericórdia, devido à desobediência dos judeus. Assim também eles desobedecem agora, de modo que, devido à misericórdia obtida por vós, também eles agora alcancem misericórdia. Efetivamente, Deus encerrou a todos na desobediência, para usar de misericórdia para com todos”.

Todos estamos no mesmo barco, todos frágeis, mas todos destinatários da graça de Deus.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Is 56, 1. 6-7; Sl 66 (67); Rom 11, 13-15. 29-32; Mt 15, 21-28.