Domingo XXI do Tempo Comum – ano B – 2021
1 – Eu sou o Pão da Vida. A afirmação lapidar de Jesus é bem mais problemática e decisiva do que pareceria à primeira vista. Não se trata de uma imagem para explicar a Sua identidade, uma aproximação à Sua divindade, um símbolo ou uma analogia. É tudo isso, mas é sobretudo a essência da Sua missão. Na multiplicação dos pães (e dos peixes), Jesus mostra a abundância do alimento que nos vem de Deus e que sacia a nossa fome e a nossa sede. Logo de seguida, Ele diz às multidões, e àqueles que querem ser Seus discípulos, que não procurem milagres que resolvam o que está ao alcance de cada um realizar, mas que, uns e outros, se transformem em milagre, enchendo-se de vida… e de amor… e de ternura… e deixem de pensar (apenas) no próprio estômago e nas suas comodidades individuais! Não basta esperar que os outros façam, que os outros deem, que os outros resolvam! É urgente e inadiável, que eu e tu, todos, façamos, dando-nos uns em prol dos outros.
Jesus não vem para dar coisas! O pão também é necessário e por isso faz parte da oração do Pai-Nosso! A multiplicação não visa descomprometer-nos, nem se realiza em benefício próprio, mas como consequência, desafiando-nos à partilha. O dom dado e recebido tem a sua eficácia na partilha solidária e na comunhão. Ele recusou transformar as pedras em pão! Mas, quando se trata dos outros, Jesus transforma a água em vinho e as lágrimas em rios de alegria e paz. Ele sacia em abundância, vem ao encontro das nossas sedes. Que o diga a Samaritana em busca de mundo, de paz, de vida!
Cabe-nos fazer com que o pão semeado, granjeado, se multiplique por todos. Mas não apenas o que damos, que se desprende, com mais ou menos esforço, de nós e nos deixa tranquilos, porque há sempre mais alegria em dar do que em receber! É importante fazer como Ele, darmo-nos a nós mesmos, o tempo todo, em todas as circunstâncias, para todas as pessoas. Ele dá-Se antes de exigir conversão ou contrapartidas.
2 – Eu Sou o pão vivo descido do Céu. Este é o pão que Eu hei de dar: a Minha carne e o Meu sangue pela redenção do mundo. Quem comer deste pão viverá eternamente… Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o Seu sangue, não tereis a vida em vós… Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e eu nele…
Confuso? Estranho? Problemático? Como reagiríamos nós, estando nas mesmas circunstâncias dos que O ouviram nessa ocasião? Não é fácil entender! Não é fácil aceitar que se coma a carne de Jesus e se beba o Seu sangue! Como pode Ele dar-nos a comer a Sua carne e a beber o Seu sangue? Não, não é possível! Aliás, seria canibalismo! Seria transformar a fraternidade em fratricídio! Os discípulos ficam completamente atónitos com o que pensar: «Estas palavras são duras. Quem pode escutá-las?»
Este questionamento permite que Jesus relembre que a Deus nada é impossível. No final, é mesmo uma questão de fé! Ou acreditas ou não! Se acreditas em Deus – é isso que chamamos fé – então tudo é possível, n’Ele e por Ele. Tal como os discípulos daquele tempo, também hoje, também nós, eu e tu, temos que pedir a Deus o dom da fé e a sabedoria de coração para percebermos o Seu poder e sobretudo o Seu amor.
Teremos que fazer caminho. Durante a Última Ceia, Jesus antecipará a entrega do Seu corpo e do Seu sangue, sublinhando que a omnipotência faz com que Deus encarne e Se faça pequeno. O campo das possibilidades alarga-se. Aquele que Se faz carne, faz-Se corpo e Sangue nas espécies do pão e do vinho! A entrega antecipa-Se para que, quando acontecer, os discípulos percebam o milagre em que estão envolvidos. Não é fácil ver que Jesus é o Filho de Deus! Não é fácil ver no pão e no vinho o Corpo e o Sangue de Jesus! Como prometeu, Ele realiza a promessa e permanece connosco para sempre, não (apenas) de forma simbólica, mas em substância, na Palavra, peculiarmente nos Sacramentos e no bem que fazemos em Seu nome.
3 – Jesus prossegue, interrogando-nos: «E se virdes o Filho do homem subir para onde estava anteriormente? O espírito é que dá vida, a carne não serve de nada. As palavras que Eu vos disse são espírito e vida. Mas, entre vós, há alguns que não acreditam».
A fé não é uma qualquer superstição que limite a nossa inteligência, mas é luz que ilumina as nossas razões e as projeta até à eternidade. Jesus anuncia, também aqui, também agora, o mistério maior da nossa fé: a Sua ressurreição. Ele precede-nos, nós estaremos com Ele na eternidade, para sempre. Já fazemos parte da Sua vida, pelo batismo; integraremos a eternidade quando chegar a nossa hora, salvos na Sua ressurreição.
Na continuidade, Jesus relembra que a fé é dom do Pai: «Por isso é que vos disse: Ninguém pode vir a Mim, se não lhe for concedido por meu Pai». Daí a necessidade de rezarmos continuamente para que o dom se efetive em nós, amadureça e dê frutos. É como o amor (ou como o fogo)! É necessário cuidar, responder(-lhe), não dar como garantido, mas expressá-lo em atitudes e gestos!
4 – «Para quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós acreditamos e sabemos que Tu és o Santo de Deus». Pedro toma a dianteira e responde pelos discípulos que ficaram. Responde também por nós.
Jesus vê como alguns se afastaram e por isso questiona os Doze: «Também vós quereis ir embora?». Respondeu-Lhe Simão Pedro: «Para quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós acreditamos e sabemos que Tu és o Santo de Deus».
Pedro é espontâneo, mas tem um longo caminho pela frente para perceber que a fé não é tanto uma conquista sua, mas é, sempre e antes de mais, um dom de Deus que é necessário acolher e rezar todos os dias. Vale para ele e vale para nós. A celebração da Eucaristia faz-nos sintonizar na oração o que nos é proposto na liturgia da Palavra. “Senhor Deus, que unis os corações dos fiéis num único desejo, fazei que o vosso povo ame o que mandais e espere o que prometeis, para que, no meio da instabilidade deste mundo, fixemos os nossos corações onde se encontram as verdadeiras alegrias”.
5 – Em tempos idos, Josué confronta as tribos de Israel, os anciãos, chefes, juízes e magistrados, e todo o povo: «Se não vos agrada servir o Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir: se os deuses que os vossos pais serviram no outro lado do rio, se os deuses dos amorreus em cuja terra habitais. Eu e a minha família serviremos o Senhor».
O sucessor de Moisés diz claramente ao que vem, qual a fé que professa e como agirá em conformidade, tanto quanto possível, com a vontade de Deus. Não revela animosidade para com o povo, mas convoca os seus membros ao discernimento, a fazerem uma escolha em relação ao caminho a seguir, servindo a Deus ou afastando-Se dos Seus mandamentos. Josué já fez a sua escolha. Uma escolha que envolve toda a família. A fé não é um apontamento privado ou privativo, liga-nos à família e aos outros que professam a mesma fé.
O povo responde com prontidão, um pouco como fará, alguns séculos depois, Pedro ao questionamento de Jesus. «Longe de nós abandonar o Senhor para servir outros deuses; porque o Senhor é o nosso Deus, que nos fez sair, a nós e a nossos pais, da terra do Egipto, da casa da escravidão. Foi Ele que, diante dos nossos olhos, realizou tão grandes prodígios e nos protegeu durante o caminho que percorremos entre os povos por onde passámos. Também nós queremos servir o Senhor, porque Ele é o nosso Deus».
6 – O salmista, num tom orante, ajuda-nos a fixar o olhar, o coração e a vida no Senhor, donde nos vem o auxílio e a salvação. “A toda a hora bendirei o Senhor, o seu louvor estará sempre na minha boca. A minha alma gloria-se no Senhor: escutem e alegrem-se os humildes. / Os olhos do Senhor estão voltados para os justos e os ouvidos atentos aos seus rogos. / Os justos clamaram e o Senhor os ouviu, livrou-os de todas as suas angústias. O Senhor está perto dos que têm o coração atribulado e salva os de ânimo abatido. / Muitas são as tribulações do justo, mas de todas elas o livra o Senhor. Guarda todos os seus ossos, nem um só será quebrado. / O Senhor defende a vida dos seus servos”.
Nem todos os dias são iguais, há dias de chuva e de sol ou dias com o céu encoberto, mas nada nos separa do amor e da bondade de Deus que segue connosco na bonança e deixa-Se ver e sentir nas adversidades.
7 – A fé não nos abstrai nem nos afasta do mundo. Pelo contrário! Quem ama a Deus vai procurar ter os mesmos gostos que Ele, amar o que Ele ama, melhor, aqueles que Ele ama, a humanidade inteira, a começar por aquelas pessoas que coloca à nossa beira e na nossa vida.
Se a fé não é minha, ainda que a acolha num contexto específico, com a minha individualidade e com as circunstâncias que fazem a minha vida, mas é dom de Deus, então a fé que me junta a Deus faz-me próximo daqueles que professam a mesma fé, conduz-me à comunidade. A fé firma-nos no amor, na caridade, no serviço a favor de todos os filhos de Deus, a começar pelos que se encontram em situação mais frágil.
Numa linguagem que está, inevitavelmente, sujeita ao contexto cultural daquele tempo, São Paulo comunica uma mensagem firme e inequívoca: o cristão não pode senão amar ao jeito de Jesus. Diz-nos: “Irmãos: Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo”. Logo de seguida, o Apóstolo especifica, mas começa por se dirigir a todos os irmãos. E prossegue: “As mulheres submetam-se aos maridos como ao Senhor… como a Igreja se submete a Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em tudo aos maridos”.
Se ficássemos por aqui, talvez pudéssemos situar-nos no radicalismo dos talibãs, ainda que logo o apóstolo coloque como referência o amor e a entrega de Jesus. Da mesma forma ao dirigir-se aos maridos: “amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela… os maridos amar as suas mulheres, como os seus corpos. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo. Ninguém, de facto, odiou jamais o seu corpo, antes o alimenta e lhe presta cuidados, como Cristo à Igreja; porque nós somos membros do seu Corpo”.
Lendo bem, o essencial é amar como Cristo, dar a vida pelo outro como Cristo dá a vida por nós, pela Igreja. Amar o marido ou a mulher como ao seu próprio corpo. Cristo amou e entregou-Se pela Igreja. Esse amor é o modelo, o paradigma para os casais, mas igualmente para toda a Igreja, para cada batizado.
Pe. Manuel Gonçalves
Leituras para a Eucaristia (ano B): Jos 24,1-2a.15-17.18b; Sl 33 (34); Ef 5, 21-32; Jo 6, 60-69.