Domingo XXI do Tempo Comum – ano B – 2024
1 – “Muitos discípulos, ao ouvirem Jesus, disseram: «Estas palavras são duras. Quem pode escutá-las?»… A partir de então, muitos dos discípulos afastaram-se e já não andavam com Ele”.
Continuamos com o texto de são João, no qual Jesus Se apresenta como o verdadeiro Pão da Vida, o Pão de Deus. A afirmação de Jesus – o meu corpo é verdadeira comida, o meu sangue é verdadeira bebida… quem não comer a minha carne e não beber o meu sangue não terá a vida… – gera polémica na população, nos judeus e nos discípulos. Nesta parte final do capítulo 6, são os discípulos que se interrogam, duvidam e dispersam.
Perante a dispersão dos judeus e dos discípulos, Jesus questiona os Doze sobre as disposições: «Também vós quereis ir embora?». Pedro, em nome dos outros Apóstolos, responde inequivocamente: «Para quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós acreditamos e sabemos que Tu és o Santo de Deus».
A dissidência dá lugar à firmeza, à convicção, ao seguimento consciente e livre. O projeto de Jesus Cristo é um projeto de salvação, de vida nova, desafiando os limites do tempo e do espaço, dando o melhor que cada um possui em favor de todos, para que o que se dá se multiplique e atravesse o próprio Céu. É um projeto arrojado e libertador. Jesus não quer que os seus discípulos, e ninguém, viva no medo do passado ou sob o peso de leis castradoras e injustas, mas que todos possam apreciar a VIDA como dom, transformando a dádiva recebida em dádiva oferecida a favor dos outros.
2 – Jesus Cristo, Deus entre nós, é o Pão que nos dá ânimo (alma) para vivermos confiantes, em momentos favoráveis como em ocasiões de tormenta, com alegria, sabendo que, como a mãe/pai em relação aos filhos, Ele, em relação ao nós, é o OLHAR que nos eleva, a mão que nos segura, é a COMPANHIA que nos fortalece, é a VIDA nova que oxigena o nosso coração, por inteiro.
Não Se impõe. Vive no tempo e na história. Habita a humanidade. Caminha nas nossas buscas. Insere-Se nos nossos sonhos. Bebe e come connosco. Sofre e diverte-se com os nossos filhos e irmãos e pais. Chora e ri nas praças e nas vielas dos nossos corações. Não Se impõe. Tem a força e o poder que Lhe vêm do alto, de DEUS, mas faz-Se pobre, frágil, mendigo da nossa vontade, ajoelha-Se diante do nosso olhar. Carrega na Cruz todo o mundo, com todo o AMOR. Até ao fim. Para sempre. Até à última gota de sangue. Até à eternidade. Até Deus. Junto de Deus, connosco, pelo Espírito Santo, nos Sacramentos e nos Pobres deste tempo. À direita de Deus Pai atrai-nos com a Sua bondade.
Não Se impõe. Testemunha. Vive. Exemplifica. Mostra como viver em qualidade. Dá-Se por inteiro. Dá-nos o Seu CORPO, a Sua VIDA. Precede-nos no peregrinar temporal. Encaminha-nos para o CORAÇÃO do PAI.
“Quereis ir embora?”
A liberdade integra o plano salvador de Deus. Sem ameaças. Apela à decisão. A proposta está feita, as cartas lançadas! Cabe a cada um, ainda que com a ajuda generosa dos irmãos, decidir. É este o jeito de Deus, como os pais em relação aos filhos seus. Quer o melhor para nós, como os nossos pais o querem. Mas cabe-nos a nós viver a nossa vida, com as escolhas que fizermos.
Na primeira leitura, o sucessor de Moisés, Josué desafia os seus decidirem-se: “Se não vos agrada servir o Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir: se os deuses que os vossos pais serviram no outro lado do rio, se os deuses dos amorreus em cuja terra habitais. Eu e a minha família serviremos o Senhor. Mas o povo respondeu: ‘Longe de nós abandonar o Senhor para servir outros deuses; porque o Senhor é o nosso Deus, que nos fez sair, a nós e a nossos pais, da terra do Egipto, da casa da escravidão’”.
3 – Quando uma criança descobre que não pode ter dois brinquedos, opta pelo que gosta mais. O buscador de pérolas, ou de pedras preciosas, nas parábolas de Jesus sobre o Reino de Deus, quando encontra a mais bela pérola, ou a pedra mais preciosa, deixa/vende tudo o que tem de valioso para ficar com a que é mais preciosa e bela.
As escolhas podem exigir renúncia. Não podemos ter todos os brinquedos. Há escolhas que devem fazer-nos sentir preenchidos, a transbordar de paz e de júbilo. Se escolho este marido, esta esposa, se escolho este caminho, não fico a chorar pelo que deixo, ou será que não encontrei o amor maior, a melhor das pérolas?! Quando escolho Jesus Cristo, escolho a vida, a verdade, escolho ser livre e, em consequência, escolho não ficar refém do tempo e da finitude e abrir-me ao futuro, à graça de Deus, a uma vida sem fim, com o fim na eternidade de Deus.
Quando crescemos, damo-nos conta que aqueloutro brinquedo já não nos satisfaz, ou já diz muito pouco. No plano da fé temos que dar o salto, como Pedro e os Apóstolos, apostar em Deus, nada perderemos, ganharemos o essencial, a VIDA que nos abre os horizontes de Deus. Quando lançamos as mãos ao arado para lavrar a terra, olhamos para o campo que se estende à nossa frente, para a beleza do campo depois de lavrado e semeado.
Faz mais sentido acentuar o que temos, o caminho a percorrer, do que ficar a moer-se com o que se deixou para trás ou arrependidos na incerteza do que o tempo nos trará. Deus está à nossa frente, e ao nosso lado, e em nós. Confiemos. Não nos deixemos levar pela multidão ou pelos muitos discípulos que seguiram outro caminho ou se desviaram por atalhos. Vivamos. Neste concreto, não importa tanto a maioria, mas saber que o CAMINHO é verdade e vida para nós. E na certeza que os outros continuarão a ser atraídos por Deus, ainda que por meio da Sua luz em nós.
4 – Ele é o Pão vivo. A Sua carne e o Seu sangue são alimento que nos salva. Se O acolhemos como Pão de Deus, se Ele tem para nós palavras de vida eterna, se Ele é o Santo de Deus, consideramo-nos como Corpo Seu. Comungamos o mesmo corpo, constituímos um só Corpo de Cristo. Daí a certeza que a Eucaristia, mistério maior da nossa fé, nos implica e compromete com os outros. Recebemos para dar, para partilhar, para entrar em comunhão.
Bento XVI é categórico e taxativo: “O pão é para mim e também para o outro. Assim Cristo une todos nós a Si mesmo e une-nos todos uns aos outros. Na comunhão recebemos Cristo. Mas Cristo une-se de igual modo ao meu próximo: Cristo e o próximo são inseparáveis na Eucaristia. E assim todos nós somos um só pão, um só corpo. Uma Eucaristia sem solidariedade com os outros é uma Eucaristia abusada… Na Eucaristia, Cristo entrega-nos o Seu corpo, doa-se a Si mesmo no Seu corpo e assim faz-nos Seu corpo, une-nos ao Seu corpo ressuscitado”.
O caminho da Eucaristia é o caminho de Jesus, de Deus à terra, do nascimento à Cruz, da morte à vida nova de graça e ressurreição. É o caminho do amor. É uma escolha que nos liberta, preenchendo os nossos vazios e anseios. Só na caridade descobrimos a beleza e a grandeza de sermos gente, de sermos irmãos, de sermos filhos de Deus.
A este propósito vale a pena mastigar as palavras de são Paulo, exemplificado o amor entre marido e mulher, expressão do AMOR único de Cristo à Igreja e pela humanidade, paradigma do amor que nos há de mobilizar uns para os outros e para Deus: “Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo. Ninguém, de facto, odiou jamais o seu corpo, antes o alimenta e lhe presta cuidados, como Cristo à Igreja; porque nós somos membros do seu Corpo. Por isso, o homem deixará pai e mãe, para se unir à sua mulher, e serão dois numa só carne. É grande este mistério, digo-o em relação a Cristo e à Igreja”.
Se só tenho o meu amor para dar, será pouco, pois sou finito e limitado e assim o será também o meu coração, por mais vontade e decisão que possa haver. Amar os outros, como resposta ao amor de Deus, ao mandato de Jesus Cristo, alarga o meu coração e torna duradouro e definitivo o meu amor por ti e pelos outros. Se me coloco como centro do amor, este desaparecerá na justa medida que prevalecerá o egoísmo. Se coloco o outro como centro e meta do meu amor, este converter-se-á em idolatria, desiludindo-me quanto o outro falhar. Viver o amor como reposta a Deus, ao Seu amor, com a exigência da fé, é garantia que o amor prevalece para além e apesar das minhas e das tuas limitações.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano B): Jos 24, 1-2a.15-17.18b; Ef 5, 21-32; Jo 6, 60-69.