Domingo XXII do Tempo Comum – ano A – 30 de agosto de 2020

Watch Now

Download

Domingo XXII do Tempo Comum – ano A – 30 de agosto de 2020

1 – A fé é caminho. É caminho, seguimento e vida. Mais que um estado, fixo e estanque, a fé é movimento, amadurece-nos e amadurece connosco, com a nossa vida. Não é meramente espiritual, antes pelo contrário, envolve-nos por completo, no que somos e, consequentemente, no que fazemos. Somos cristãos do Domingo, isto é, nascidos do mistério redentor de Jesus Cristo, comungando a Sua morte e ressurreição, em comunidade de irmãos e discípulos missionários, mas não somos, de todo, cristãos somente de Domingo! Seria absurdamente redutor. Seria um engano, um engodo, acharmos que somos cristãos só porque vamos à Missa, só porque rezamos, ou só porque somos batizados! Pode ser ponto de partida, mas é insuficiente, pois também não somos crianças a vida toda, mesmo que os traços iniciais nos acompanhem!

Não somos e não podemos ser cristãos pela rama se verdadeiramente nos assumimos como discípulos de Jesus. As circunstâncias e as situações podem validar a nossa fé, fazendo-a perigar ou tornando-a mais robusta. Como a fé é dom há que a pedir a Deus constantemente, pois não depende nem primeira nem principalmente da nossa vontade, mas da graça recebida, percebida e acolhida. Deus não passa por cima do que somos. Cria-nos sem nós, diria Santo Agostinho, mas não nos salva sem nós. Assim a fé: é dom, iniciativa pura de Deus, mas depende sempre da nossa aceitação. O recipiente está preparado, Deus criou-nos com a capacidade de O reconhecer e de O amar. Mas quantos recipientes ficam vazios, por estarem demasiado cheios de outras coisas, demasiado cheios de si mesmos?!

A fé não é um sentimento que de vez enquanto mexe connosco e nos faz emocionar! A fé é encontro com Jesus Cristo, crucificado-ressuscitado, é seguimento. Sendo seguimento terá que ser vida, teremos que decalcar a postura de Jesus, teremos que ir atrás, seguindo-O, em todo o tempo, e não apenas quando nos convém.

2 – “E vós quem dizeis que Eu?” Ressoa ainda a pergunta feita aos discípulos, momentos antes, proclamada há oito dias na Eucaristia, através da qual Jesus espera de nós uma resposta pessoal e comprometida. Pedro ajuda-nos. Inspirado pelo Espírito do Pai, responde: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo». A partir daqui, da profissão de fé, por parte de Pedro, o chamamento e a condição do seguimento: reconhecer Jesus como o Filho de Deus e agir em conformidade! Não se trata de uma informação neutra, trata-se de reconhecimento, de inspiração, de revelação que nos envolve e que há de transformar a nossa vida por inteiro. É uma boa notícia! Não se trata (somente) de acreditar e de dizer, trata-se de aderir e de seguir.

Jesus completa a informação! O filho do Homem encaminha-Se para Jerusalém, vai sofrer muito, por parte de anciãos, sacerdotes e escribas, vai ser morto e ressuscitará três dias depois! De que adianta ser Filho amado do Pai se vai ser morto? Até nós pensávamos que, sendo amigos de Jesus, a vida já não passaria por sobressaltos, mas parece que Jesus não dos dá um salvo-conduto em relação ao sofrimento e às adversidades.

Pedro ajudou-nos na profissão de Fé, agora manifesta a Jesus as nossas preocupações e estranheza: «Deus Te livre de tal, Senhor! Isso não há de acontecer!». O Apóstolo contesta Jesus por duas razões que compreendemos: se é o Filho de Deus, então Deus O protegerá e nada Lhe acontecerá de mal! Belo pensamento! Como no deserto, na tentação diabólica: manda-te daqui abaixo que os Anjos de protegerão! A outra razão: a coragem de Pedro, confiando que também os outros agirão – Tu que nos dás o Reino, nós não deixaremos que nada Te aconteça! Como não lembrar o momento da Última Ceia, em que Pedro garante que está pronto para morrer por Jesus. Ou dos discípulos que, perante o anúncio da paixão, O informam que têm duas espadas! No Horto das Oliveiras, Pedro desembainha a espada e fere um soldado, perspetivando que há momentos para a fé, para o amor, para a religião, e há momentos para usar a força e a violência para resolver! Pedro coloca confiança na própria força e deixa de lado, por ora, a fé e confiança em Deus. O caminho terá de ser de sucesso, mesmo que usando meios violentos, para convencer quem encontramos. Ora a opção de Jesus não é, não poderia ser, pela imposição.

Antes, Jesus disse a Pedro que ele seria pedra, rocha firme na qual assentará a Sua Igreja. Agora, Jesus diz-lhe para não se transformar em estorvo, em pedra de tropeço: «Vai-te daqui, Satanás. Tu és para mim uma ocasião de escândalo, pois não tens em vista as coisas de Deus, mas dos homens». O nosso Bispo, D. António Couto, traduz desta forma: “Vai para trás de Mim, satanás! Pedra de tropeço és para Mim…”. Deixando claro que o lugar do discípulo é atrás d’Ele. “Pedro deve seguir atentamente atrás de Jesus, e não postar-se à Sua frente para Lhe barrar o caminho”. É Pedro, e nós com ele, que tem de seguir a mensagem de Jesus e não Lhe impingir as próprias ideias.

3 – Atenção! As palavras de Jesus a Pedro também são para mim, também são para ti, são para nós! Não nos excluamos! Excluirmo-nos das chamadas de atenção de Jesus seria presunção por acharmos que somos mais firmes e melhores do que Pedro. Jesus garantirá que ele não se perde nem os demais apóstolos, ainda que não possa substituir-se às escolhas deles. Jesus não desistiu de Judas, mas Judas não foi capaz de se perdoar tal foi o remorso por ter entregado à morte um homem inocente. Mas a desistência não vem do Mestre da Docilidade, mas do próprio Judas que se fechou nas suas trevas.

Pedro tinha chamado Jesus à parte para O repreender. Jesus, na resposta envolve todos os discípulos, desafiando-os, desafiando-nos: «Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me. Pois quem quiser salvar a sua vida há de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa, há de encontrá-la. Na verdade, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida? Que poderá dar o homem em troca da sua vida?»

Bem vistas as coisas, os discípulos, com Pedro à cabeça, aceitando que Jesus é o Messias, esperavam que o futuro fosse risonho, deslumbrante, com sucesso garantido, sabendo que eles seriam os privilegiados deste novo Reino. Mas logo Jesus lhes garante que a Sua soberania não se baseia na força, mas no amor e o amor é débil, frágil, pobre, pois sujeita-se, pelo outro, ao despojamento, mendiga a atenção, o cuidado e a resposta, não se impõe! O amor expõe-se à recusa, à traição e à perda, sujeita-se à própria morte sem reação nem vingança! Segui-l’O implica agir do mesmo modo, pela fragilidade (e grandeza) do amor, da entrega e do serviço, renunciando a si mesmo!

O segredo de Jesus, do Seu reino, está no perder-se por amor, entregar-se ao amor, como diria Khalil Gibran, sujeitando-se à glória e ao “inferno”. Mas quem se gasta amando, em nome de Jesus, sem instrumentalizações nem idolatrias, vive para sempre!

4 – Jeremias, na primeira leitura, mostra a identificação à vontade de Deus e como a resposta à vocação lhe trouxe muitos dissabores, mas também a certeza de que não poderia agir de outra forma que não fosse anunciar Deus, com palavras e obras!

A Vocação: “Vós me seduzistes, Senhor, e eu deixei-me seduzir; Vós me do­minastes e vencestes”. O chamamento de Deus e a resposta de Jeremias. O seguimento que lhe trouxeram provações: “Em todo o tempo sou objeto de escárnio, toda a gente se ri de mim; porque sempre que falo é para gritar e proclamar: «Violência e ruína!». E a palavra do Senhor tornou-se para mim ocasião permanente de insultos e zombarias. Então eu disse: «Não voltarei a falar n’Ele, não falarei mais em seu nome»”.

Ao longo do caminho, Jeremias sente-se desalentado, quase em modo de desistência. Anuncia a mensagem de Deus, mas experimenta a injúria, as calúnias, a perseguição. Contudo prevalece a fidelidade à missão, a fidelidade a Deus: “Mas havia no meu coração um fogo ardente, comprimido dentro dos meus ossos. Procurava contê-lo, mas não podia”.

Por momentos, parece que os obstáculos são mais fortes, mas logo brota o fogo da presença de Deus.

Ao iniciarmos a Eucaristia, na primeira oração suplicamos: «Deus do universo, de quem procede todo o dom perfeito, infundi em nossos corações o amor do vosso nome e, estreitando a nossa união convosco, dai vida ao que em nós é bom e protegei com solicitude esta vida nova». Pedimos ao Senhor o que Jeremias experimento ao longo do seu caminho.

5 – Numa perspetiva muito próxima, ou pelo menos condizente com a mesma temática, São Paulo desafia-nos a entregar a nossa vida ao Senhor. Por certo que o seguimento exige tempo, esforço, exige “fazer” obras, mas o primeiro passo, o essencial e decisivo, é oferecermo-nos a nós próprios.

Ouçamo-lo: “Peço-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, que vos ofereçais a vós mesmos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus, como culto espiritual”. Quando em Igreja nos pedem algum serviço, parece, antes demais um encargo que nos rouba tempo e exige sacrifícios e gastos! Muitas vezes, é mais fácil dar um contributo monetário do que comprometer-se com tempo em alguma tarefa ou missão que é duradoura. Já não se trata de dar, mas de se dar ao serviço da catequese, da liturgia, do asseio da Igreja. Mas antes disso ainda, a entrega a Deus do que somos, para que Ele nos inspire e disponha de nós!

São Paulo prossegue, um tanto ou quanto na linha das expectativas dos apóstolos, antes de perceberam que o seguimento não lhes traria benesses. “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, pela renovação espiritual da vossa mente, para saberdes discernir, segundo a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável, o que é perfeito”. A lógica do mundo, do poder e do sucesso, nem sempre é, ou nunca é, a lógica de Deus e do seguimento, pois este exige colocar o amor e o serviço antes dos nossos interesses, implica renunciar a si mesmo e tomar, dia a dia, a própria cruz, mas que, por amor, nos salva.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Jer 20, 7-9; Sl 62 (63); Rom 12, 1-2; Mt 16, 21-27