Domingo XXII do Tempo Comum – ano B – 2021
1 – Vivemos muito de aparências! É uma afirmação genérica, mas que está na moda! Corremos o risco de nos deixarmos toldar mais pelo que os outros pensam de nós do que por aquilo que somos como pessoas e como cristãos.
Preocupar-se com o corpo e com a imagem, com o asseio e o vestuário, com a higiene e com o que queremos que os outros vejam, com conta peso e medida, é defensável. Com efeito, o cuidado connosco, com a nossa saúde, do corpo e da alma, procurando sentir-nos confortáveis e que os outros se sintam descontraídos ao pé de nós, não é um capricho mas uma obrigação. O problema surge quando nos preocupamos apenas com o exterior, mostrando o que não somos, travestindo-nos de várias caras conforme as circunstâncias e os interesses. O problema aparece quando a nossa vida é uma fachada, para inglês ver, e não temos nem princípios, nem convicções, não nos envolvemos nas adversidades e aparecemos apenas nas situações favoráveis.
Mistério que somos, baixamos a guarda com os amigos e familiares; escondemos vícios e manias, insuficiências e medos dos estranhos e conhecidos. Relaxados com os que nos são próximos, cuidadosos com os que vamos conhecendo ou com aqueles que queremos conquistar. Num e noutro caso, o equilíbrio é o segredo, a cautela perante os desconhecidos e a confiança com aqueles com quem convivemos diariamente, tratando cada pessoa como única e irrepetível. Que o relaxamento não seja desmazelo e desatenção a quem nos merece todo o carinho e gratidão; que a precaução não signifique preconceito, fechamento, exclusão com aqueles que irrompem na nossa vida.
2 – Somos zelosos das tradições, usos e costumes, mesmo quando desconhecemos a origem, os objetivos em que se iniciaram, se fazem ou não sentido na atualidade, se ajudam a perpetuar e renovar a história, se contribuem ou não para a aproximação das pessoas e para a harmonia da comunidade.
O Presidente da Junta mandou pintar um banco do jardim, o maior, mais central e mais frequentado da cidade. Para assegurar que ninguém se sentava na pintura fresca, solicitou ao quartel que fossem dispensados dois militares para vigiar o banco. A ordem foi renovada nos dias seguintes. Como o quartel mudasse de comandante, todos os dias a ordem foi repetida; das 7h00 às 22h00, havia dois soldados a guardar o banco jardim. Dez anos depois, chegou um novo comandante que se inteirou das diferentes tarefas atribuídas ao quartel. Achou muito estranho haver dois soldados, na escala de serviço diária, para guardar um banco do jardim. Verificou que era um absurdo que se repetia por ninguém se ter interrogado sobre esta ordem, que teve um propósito e que se esgotou no primeiro dia. Os outros 3.651 dias foi desperdício de pessoal e um banco a menos no jardim!
A tradição enraíza-nos na história que nos identifica e nos permite ser o que somos, com passado, com presente e voltados para o futuro que se aproxima. Mas as raízes não devem impedir o crescimento, pelo contrário, devem alimentar-nos para crescermos, fortalecendo os laços que nos unem uns aos outros, promovendo o bem de todos.
3 – O Evangelho deste Domingo obriga-nos a valorizar o essencial, a discernir entre as tradições que são alfobre de bondade e as tradições que são como eucaliptos, que secam tudo o que tenta nascer e crescer.
Jesus é confrontado com a inveja e a hipocrisia de alguns fariseus e escribas. Quase conseguimos ouvir neles algumas vozes atuais: sempre foi assim, sempre se fez deste modo, para quê mudar? Para quê inventar se sempre fizemos desta forma? Quem não está bem que se mude!
Ao colocarem em causa o comportamento dos Seus discípulos, os fariseus e escribas visam Jesus por permitir e, eventualmente, sancionar o não cumprimento de tais tradições. «Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos, e comem sem lavar as mãos?».
A questão levantada é, à primeira vista, uma questão de higiene e, secundariamente, de saúde. Porém, para os judeus trata-se de um ritual religioso, uma tradição antiga. Uma norma revestida de caráter sagrado, religioso, tem uma força maior na aceitação popular e generalizada da mesma. Neste caso, serviu de arma de arremesso contra Jesus e os Seus discípulos, pois quem falha nas tradições também não terá autoridade para ensinar os outros! Lavar as mãos, antes de comer, os copos, os jarros e as vasilhas de cobre, na atualidade não é questão, quanto muito mostra como os judeus tinham hábitos de higiene que facilitavam a saúde das pessoas!
Jesus aproveita a deixa e confronta-os com a incoerência de vida, com a duplicidade entre a doutrina e a vivência do mandamento de Deus, fazendo com que o culto seja vazio. Prosseguindo, Jesus compromete-nos a todos: «Escutai-Me e procurai compreender. Não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro. O que sai do homem é que o torna impuro; porque do interior do homem é que saem as más intenções: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem do interior do homem e são eles que o tornam impuro».
Muitas vezes desculpámo-nos com as circunstâncias. Estas têm o seu peso, mas não substituem a nossa responsabilidade e as escolhas que livre e conscientemente fazemos.
4 – Na primeira leitura, Moisés convoca o povo e dá-lhe os mandamentos do Senhor. Desde logo, Moisés sublinha que os preceitos não serão alterados conforme dê jeito a cada um, a cada família ou a cada tribo. São iguais para todos e todos os devem cumprir com esmero. Uma lei que não fosse para pôr em prática seria inútil, desnecessária, seria uma falácia.
Segundo Moisés, os mandamentos e decretos do Senhor são caracterizados pela sabedoria e pela prudência, inspirados pela proximidade de Deus. Diga-se, em abono da verdade, que os mandamentos continuam a ser uma referência para os direitos humanos fundamentais e base das constituições democráticas.
Quando cumprimos as regras como uma imposição exterior, como uma obrigação escravizante, então aquelas tornam-se amarraras que nos sacrificam. Claro que nem todas as leis são igualmente justas e caracterizadas pela bondade. No campo religioso, há também leis que nos parecem desadequadas e talvez não estejam em sintonia com a moda. Ainda assim, não nos cabe adaptar os preceitos ao nosso gosto e de forma arbitrária, mas procurar saber as razões, o conteúdo essencial, o que levou a comunidade a formular esta ou aquela orientação e se estão de acordo com o Evangelho e com a Igreja, Corpo de Cristo, do Qual Ele é a cabeça e nós os membros.
A oração ajuda-nos a compreender e a acolher os mandamentos do Senhor: “Deus do universo, de quem procede todo o dom perfeito, infundi em nossos corações o amor do vosso nome e, estreitando a nossa união convosco, dai vida ao que em nós é bom e protegei com solicitude esta vida nova”.
Primeiro o interior, a conversão, a adesão ao Coração de Jesus, para que os Seus mandamentos nos façam amar a Deus nos irmãos, dando-lhes prioridade. A maior das leis é a da caridade que, imitando a Jesus, nos leva a submeter-nos ao outro, isto é, a colocar o outro em primeiro lugar, a servi-lo e amá-lo, como Cristo faz connosco. Ele não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida por nós.
5 – Gastar a vida ao jeito do Mestre é o que nos garante já a felicidade e o reino de Deus, que se inicia, não amanhã, não quando morrermos, mas aqui e agora, neste mundo, na nossa história. Como nos lembra São Paulo, numa das suas missivas, vivemos como exilados, aspirando às coisas do alto, com o olhar e o coração orientados para Deus, mas com os pés, as mãos e a vida envolvendo os outros. É como a Cruz, fixa na terra e levantada em direção ao Céu, mas com os seus braços a estenderem-se para o mundo.
O salmista sintoniza com as demais leituras que hoje nos são servidas: “Quem habitará, Senhor, no vosso santuário? / O que vive sem mancha e pratica a justiça e diz a verdade que tem no seu coração e guarda a sua língua da calúnia. / O que não faz mal ao seu próximo, nem ultraja o seu semelhante; o que tem por desprezível o ímpio, mas estima os que temem o Senhor. / O que não falta ao juramento, mesmo em seu prejuízo, e não empresta dinheiro com usura, nem aceita presentes para condenar o inocente”.
6 – «A religião pura e sem mancha, aos olhos de Deus, nosso Pai, consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo».
Houve épocas, há pessoas, grupos e movimentos que acentuam tanto a dimensão espiritual que se esquecem que esta não existe sem o compromisso concreto com os irmãos. Erguer as mãos e o olhar para Deus implica que O escutemos e cumpramos a Sua vontade. Em Jesus Cristo, Deus desceu do Céu para nos humanizar e irmanar. A vontade de Deus, visualizável e visualizada em Jesus, passa por amar e servir a todos, especialmente os mais frágeis. São Tiago é clarividente neste incisivo. A fé autêntica tem a ver com a vida das pessoas, suas necessidades e sofrimentos.
Com efeito, diz-nos o Apóstolo, «todo o dom perfeito vem do alto, desce do Pai das luzes… Foi Ele que nos gerou pela palavra da verdade… Acolhei docilmente a palavra em vós plantada, que pode salvar as vossas almas. Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes, pois seria enganar-vos a vós mesmos».
Quanto mais perto de Deus, mais próximos e disponíveis para amar e servir os outros.
Pe. Manuel Gonçalves
Leituras para a Eucaristia (ano B): Deut 4, 1-2. 6-8; Sl 14 (15); Tg 1, 17-18. 21b-22. 27; Mc 7, 1-8. 14-15. 21-23.