Domingo XXIII do Tempo Comum – ano A – 2023

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Domingo XXIII do Tempo Comum – ano A – 2023

1 – A reconciliação é um compromisso pessoal e comunitário. Os meus problemas afetam a minha postura na comunidade, condicionam a forma como eu estou e me relaciono com os demais. Se estou magoado, preocupado, ausente nos pensamentos, ajo de uma maneira distinta daquela em que esteja tranquilo e bem-disposto. Por mais que queiramos, não deixamos a dimensão pessoal à porta da Igreja. Obviamente, que a maneira como a comunidade vive também me afeta, pois me desafia à alegria e ao compromisso ou me envolve na tristeza, no desânimo e na indiferença.

O conselho de Jesus é pedagógico: «Se o teu irmão te ofender, vai ter com ele e repreende-o a sós. Se te escutar, terás ganho o teu irmão». Hoje sabemos isso bem, ainda que nem sempre o façamos. Para fazer um reparo a uma pessoa, devemos fazê-lo em privado, discretamente, tanto quanto possível, em tom amistoso. Isto vale para pais e/educadores, para patrões ou líderes de grupos e comunidades. Se é em público, a reação será (quase sempre) catastrófica. A pessoa “apontada” tenderá a exaltar-se, a fechar-se, a sair do espaço comum ou a reagir em tons semelhantes, contestando ou devolvendo acusações. Se é entre duas pessoas, pode resultar ou não, mas o caminho fica facilitado. A pessoa chamada a atenção não está exposta e, portanto, só precisa de encarar o seu interlocutor. À partida está assegurada uma maior proximidade. Depois pode funcionar ou não.

Prossegue Jesus: «Se não te escutar, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão fique resolvida pela palavra de duas ou três testemunhas».

Não baixar os braços na primeira contrariedade, no primeiro “não”. Costuma dizer-se, com frequência: não desistir, insistir, persistir. A ajuda de uma ou outra pessoa, pode ajudar a ver melhor a situação ofensiva e ajudar a fazer ponte entre as partes.

Se não resultar, há ainda outro recurso, a própria comunidade, a Igreja. Se não for possível conciliar, também não se pode impor. Há discordâncias que não afetam a relação, a vida em grupo ou a vivência comunitária, há discordâncias que são insanáveis e inconciliáveis. Não se abdica da identidade só para haver paz. Definitivamente a paz só é possível num contexto de verdade, de honestidade, de serviço.

2 – O evangelho de são Mateus é considerado tradicionalmente como o evangelho da Igreja. E nesta nomenclatura, a clarividência do contributo da comunidade para a “redação” do evangelho. Quando este é fixado por escrito, já não há um “evangelho puro”, mas vivido, experimentado, contextualizado às necessidades e urgências, aos perigos e desafios da comunidade onde tem origem e à qual se destina. O próprio autor não é uma vasilha no qual são depositados as palavras e os acontecimentos da vida de Jesus, ou um narrador neutro, uma espécie de jornalista ou historiador, mas é uma pessoa com os seus contextos, educação-formação, ambiente familiar e cultural, com uma sensibilidade. A inspiração divina é isso mesmo, inspiração, não é um ditado.

As palavras de Jesus são testadas na vida das comunidades, antes de serem colocados por escrito. Jesus dirá a Pedro para perdoar 70X7, isto é, sempre. A comunidade pode escutar a mesmas palavras. Não se desiste de ninguém, mas não se força a sua permanência. Se uma crente não quiser ter nada a ver com a Igreja, se em nada se identificar, então seguirá o seu próprio caminho. As portas, no entanto, ficam abertas, caso e quando decida regressar.

O mandato dado a Pedro é, antes de mais, eclesial, comunitário: «Tudo o que ligardes na terra será ligado no Céu; e tudo o que desligardes na terra será desligado no Céu». Sublinhe-se que o mandato tem a preocupação de incluir, garantir a identidade, a proximidade e a pertença a Jesus Cristo.

A oração continua a ser um forte combustível para acolher, compreender e aceitar a vontade de Deus. A oração pessoal é importante, faz-nos encontrar Deus no nosso íntimo; a oração em comunidade é essencial, permite-nos saborear com os outros a presença de Deus, sabendo que não é uma ilusão nossa ou um capricho da nossa mente. «Se dois de vós se unirem na terra para pedirem qualquer coisa, ser-lhes-á concedida por meu Pai que está nos Céus. Na verdade, onde estão dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles».

3 – Somos responsáveis uns pelos outros. Mais uma vez, pessoal e comunitariamente. Mais responsáveis ainda, aqueles que o Senhor coloca como servidores de uma comunidade. É um poder que se transforma em serviço e um serviço que nos faz devedores dos outros, pois nunca saldamos as nossas dívidas. Amar não nos dá crédito, amar é o nosso compromisso, a nossa identidade, o que nos salva, nos humaniza, nos resgata do mal, das trevas, do sofrimento, o que nos dá acesso ao coração de Deus.

Na primeira leitura, as palavras do Senhor são clarificadoras: «Filho do homem, coloquei-te como sentinela na casa de Israel. Quando ouvires a palavra da minha boca, deves avisá-los da minha parte. Sempre que Eu disser ao ímpio: ‘Ímpio, hás de morrer’, e tu não falares ao ímpio para o afastar do seu caminho, o ímpio morrerá por causa da sua iniquidade, mas Eu pedir-te-ei contas da sua morte. Se tu, porém, avisares o ímpio, para que se converta do seu caminho, e ele não se converter, morrerá nos seus pecados, mas tu salvarás a tua vida».

A linguagem é extraordinariamente clara e resoluta. Somos responsáveis uns pelos outros. Quando alguém se estiver a perder, cabe-nos apontar caminho, chamar à atenção, fazer tudo o que está ao nosso alcance para o resgatar. Deus pedir-nos-á contas, como pediu a Caim. Na verdade, somos guardas uns dos outros, não como quem espia, mas como vigia, prontos para deitar a mão, ajudar a levantar, socorrer. Não nos cabe ser preguiçosos ou indiferentes. Os outros esperam sempre de nós. Esperam amor, vida, entrega. É o propósito da nossa vida cristã.

4 – Na segunda Leitura, são Paulo é incisivo: «Não devais a ninguém coisa alguma, a não ser o amor de uns para com os outros, pois, quem ama o próximo, cumpre a lei».

Os mandamentos são uma orientação que nos ajuda a saber se estamos a proceder bem ou mal, mas só por si não valem, pois posso cumprir com os mandamentos sem estar verdadeiramente comprometido com os irmãos. Se a preocupação é cumprir como se se tratasse de uma check-list, então estamos a viver em função das leis, evitando alguma punição. Isso não tem, de todo, a ver com fé, mas com superstição. Só precisamos de amar. Amar, amar, amar! Amando, cumprimos com toda a lei. Como sublinha o apóstolo, todos os mandamentos se condensam nas palavras: «Amarás ao próximo como a ti mesmo».

Amar implica colocar os outros em primeiro lugar. O contrário de amar, não é odiar, é egoísmo, é colocar-se no centro do mundo, fazer com que todos girem em seu redor. Como se verá, o egoísmo redundará em despotismo, presunção, endeusamento, prepotência.

Colocar o outro em primeiro lugar nada tem a ver com estima. São registos diferentes. Para te dares, para amares, precisas de estar inteiro, recomposto, se for caso disso. Ainda que o processo possa ser invertido, ao amares de todo o coração, cuidando e servindo os outros, então a tua vida torna-se inteira, luminosa, com uma finalidade que lhe dá sabor.

A concluir, salienta são Paulo: «A caridade não faz mal ao próximo. A caridade é o pleno cumprimento da lei». Como dirá santo Agostinho, ama e faz o que quiseres. Quem ama dá-se, entrega-se, vive com os outros e a favor deles, ao jeito de Jesus que não Se (res)guardou.

5 – Alimentamos a caridade, o amor fraterno, o compromisso com os outros, o perdão, na oração. Há situações em que só a grandeza do amor de Deus é capaz de entender e converter em misericórdia e perdão. Oramos para que o nosso coração seja dilatado pelo Seu amor.

Desafia-nos o Senhor: «Não endureçais os vossos corações, como em Meriba, no dia de Massa no deserto, onde vossos pais Me tentaram e provocaram, apesar de terem visto as minhas obras».

Deus vem, Deus quer-nos amar, quer-nos como filhos. Não fechemos o nosso coração, não façamos ouvidos de mercador. «Exultemos de alegria no Senhor, aclamemos a Deus, nosso Salvador. Vamos à sua presença e dêmos graças, ao som de cânticos aclamemos o Senhor. / Vinde, prostremo-nos em terra, adoremos o Senhor que nos criou. Pois Ele é o nosso Deus e nós o seu povo, as ovelhas do seu rebanho».

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Ez 33, 7-9; Sl 94 (95); Rm 13, 8-10; Mt 18, 15-20.