Domingo XXVI do Tempo Comum – ano B – 2024

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Domingo XXVI do Tempo Comum – ano B – 2024

1 – O meu grupo. O meu partido. A minha religião. A minha Igreja. O meu altar. O meu clube. A minha terra. O meu mundo. As minhas ideias.

O sentido de posse e de pertença está muito vincado na cultura do nosso tempo. Por um lado, a questão da propriedade privada é garantia de segurança, privacidade e estabilidade na vida pessoal e familiar. Há espaços que são meus, que não podem nem devem ser invadidos por outras pessoas, a não ser em situações muito específicas e bem delimitadas. Por outro lado, a “posse”, enquanto tal, também me liga e, bem entendida, poderá revelar-se oportunidade de realização e caminho de felicidade, enquanto salvaguarda a identidade e os tempos de cada um, na sua inserção numa família, num grupo social, político ou desportivo, na vinculação à religião, numa rede de ligações que faz com que cada um se sinta útil, se sinta humano, se sinta ligado!

Contudo, o que é meu, o que me pertence, o chão que me identifica, a quem pertenço, usando esta linguagem mais “corporal”, não deve obstaculizar ao bem comum, o bem de todos, a abertura a outras realidades e novas pertenças sociais e culturais. É como a pele do nosso corpo, delimita-nos, identifica-nos, traça uma fronteira, sou eu e não outro, mas permite-me ver o outro, abraçá-lo, dialogar com ele, estar frente a frente, entrar em comunhão, partilhar.

Assim também as realidades afetivas, sociais, espirituais. As pedras com que se constroem muros e divisões, servem para construir estradas, degraus, pontes que nos aproximam e irmanam. Saber quem somos, onde estamos e o que nos define, ajuda-nos a acolher, a perceber e a aceitar o outro com as suas diferenças. E, ao mesmo tempo, o outro ajuda-me a construir a minha identidade, a saber quem sou. Se não houvesse “termo” de comparação, como é que eu saberia quem sou, como me defino?!

2 – O meu mundo permite-me procurar, descobrir e encontrar outros mundos. Se o meu ego, ou o meu grupo, ou a minha capela se fecham, me aprisionam e me limitam, isolando-me, erguendo muros e paredes, tornar-me-ão doente, esclerosado, raquítico. Facilmente imaginamos um espaço fechado, sem entrada de ar, de luz, de som! Ou a água estagnada! Assim acontece quando estamos ensimesmados!

Mas se eu não tenho poiso, casa, família, grupo, não tenho pátria, então não tenho como partir, como sair! E não tenho como e onde regressar. Os discípulos partiram porque faziam parte do grupo de seguidores de Jesus. Partiram porque foram por Ele enviados. Jesus chama-os para os enviar. Mas o envio supõe o regresso a casa, ao grupo, a Jesus, para descansar, retemperar forças, avaliar o trabalho feito, agradecer e rezar, avaliar o trabalho que há para realizar. E sintonizar com Jesus e o Seu Evangelho, para não correr o risco de se anunciarem em vez de O anunciar.

Até os pássaros, livres como são, necessitam do chão, de um poiso, para o impulso que os projeta no voo, e para descansar, e da gravidade que assegura o próprio voo…

João fica incomodado porque vê alguém a fazer coisas extraordinárias. «Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco». O incómodo e o ciúme porque ele não faz parte do grupo! Já alguma vez depreciámos o trabalho, as iniciativas, o que outros fazem bem só por não serem da nossa família, do nosso partido, do nosso grupo de amigos? Talvez! Talvez digamos a Jesus que esta ou aquela pessoa só vêm para estorvar e não para acrescentar e que já somos mais que suficientes e até nos atrapalhamos!

A resposta de Jesus é lapidar: «Não o proibais; porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e depois dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós». Para fazer o bem ninguém está a mais, ninguém é dispensável. Em Igreja, é preferível que muitos façam pouco, que poucos façam muito ou façam tudo. É preferível a imperfeição que promove a participação, o envolvimento e o empenho de todos, que a espetacularidade e perfeição que isola, que afasta a participação de todos.

3 – O reino de Deus, instaurado, preconizado e plenizado por Jesus Cristo, é um reino inclusivo. Não tem fronteiras culturais, sociais, religiosas ou sexistas. É abrangente. É universal: dirigido e acessível a todos. Esta inclusão começa pelos últimos, pelos mais frágeis e desfavorecidos. E porquê? A resposta é dada pelo próprio Jesus: são os doentes que precisam de médico, Eu vim chamar os pecadores!

O Espírito sopra onde quer e Deus tem muitas formas de chegar ao coração das pessoas. Isso não nos retira responsabilidade e compromisso missionário. Conscientes da nossa fé e da salvação que nos é dada em Jesus Cristo, no mistério da Sua morte e ressurreição, e por toda a Sua vida, temos o dever de O anunciar, de O testemunhar, de O transbordar, de contagiar com a nossa alegria todos aqueles que encontramos. Descobrimos um tesouro! De nada serve se ficar esquecido no baú! A alegria da descoberta leva-nos à partilha.

Ciúmes e inveja porque alguém pratica o bem e não faz parte da nossa Igreja?! Também através deles Deus manifesta o Seu amor e a Sua ternura. Rejubilemos. Procuremos também nós fazer o melhor, espalhar o bem, irradiar alegria e paz, semear a reconciliação e a justiça. Não tenhamos medo de quem transborda de bondade. Nunca nos fará sombra. Não se trata de competir a ver quem é melhor, quem brilha mais. A nossa competição é cada um, em cada dia, aperfeiçoar o seu amor e aprofundar o serviço aos outros. O brilho e a luz são de Cristo. Não importa que eu brilhe, por mais razoável que isso seja, mas que seja Cristo a iluminar, a brilhar, a fazer-Se notar.

Em Igreja, todos somos essenciais e imprescindíveis. Ninguém é substituível e ninguém substitui outro. Podemos substituir-nos nas tarefas, mas não na presença e na vivência da nossa fé. Todos serão recompensados, ainda que seja por darmos de beber um copo de água. A competição será no serviço e na alegria de partilharmos o nosso tempo e a nossa vida.

4 – A primeira leitura ilustra bem o nosso preconceito e o nosso ciúme pelas qualidades e talentos dos outros. Deus divide o Espírito que estava em Moisés e fá-lo descer sobre 70 anciãos. Dois homens, Eldad e Medad, embora inscritos, ficaram no acampamento e não entraram na tenda. Mas o Espírito poisou também sobre eles. E começaram a profetizar. Um jovem correu a denunciá-los a Moisés, como João junto de Jesus: «Eldad e Medad estão a profetizar no acampamento». Josué, que estava ao serviço de Moisés desde a juventude, e que virá a suceder-lhe na liderança do povo, intervém: «Moisés, meu senhor, proíbe-os».

A resposta de Moisés é ilustrativa: «Estás com ciúmes por causa de mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!»

A humildade, a sabedoria e a santidade levam à partilha, à gratidão, ao reconhecimento das qualidades e dos feitos dos outros. Um homem sábio nunca se agita porque há outros a esbanjar sabedoria, pelo contrário, rejubila porque sabe que a luz de duas velas ilumina muito mais mundo. E mesmo que por momentos a luz que há em mim esteja tremuluzente, a luz que há em ti incentiva-me a avivá-la. Ainda que por momentos a minha luz se apague, ou melhor, ainda que Luz de Cristo que me habita esteja sufocada, a luz que te habita garante que posso novamente encontrar o caminho.

5 – O caminho do cristão é o caminho das Bem-aventuranças, proposto e vivido por Jesus. É o caminho da resiliência perante o mal e de insistência no bem, na luta permanente pela verdade e pela justiça, na teimosia pela inclusão, pela partilha solidária, pela comunhão com todos, no cuidado e no serviço aos mais pequeninos, pois o que fizermos ao mais pequeno dos irmãos é a Cristo que o fazemos!

O Apóstolo são Tiago continua a servir-nos um prato de palavras muito incisivas: «Agora, vós, ó ricos, chorai e lamentai-vos… as vossas riquezas estão apodrecidas e as vossas vestes estão comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se, e a sua ferrugem vai dar testemunho contra vós e devorar a vossa carne como fogo… Privastes do salário os trabalhadores que ceifaram as vossas terras. O seu salário clama; e os brados dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do Universo».

O que somos e o que temos hão de facilitar a nossa ligação aos outros, a fim de construirmos um mundo fraterno, tornando visível o reino de Deus, antecipando-o na promoção da dignidade humana e da vida, da paz e da igualdade, em que não sejamos apenas vizinhos, mas irmãos. A economia que atualmente mata, exclui e destrói, deve dar lugar a uma economia integradora, humanizante e mais universal, para não servir uns poucos à custa de muitos, mas para servir sobretudo os mais vulneráveis.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (B): Num 11, 25-29; Sl 18 (19); Tg 5, 1-6; Mc 9, 38-43. 45. 47-48.