Domingo XXVII do Tempo Comum – B – 2021
1 – O reino encarnado, anunciado, vivido e instaurado por Jesus baseia-se, não no poder da força, das armas, do dinheiro ou do estatuto social, mas na força do amor, do perdão e do serviço. A prioridade essencial é amar e servir, perdoar, partilhar e fazer comunhão, incluir a todos, procurando que todos se reconheçam e tratem como irmãos em Jesus Cristo, que nos assume como tal, mostrando-nos o amor de Seu e nosso Pai. Dentro desta prioridade essencial, a opção preferencial pelos mais pobres, pequeninos, excluídos, aqueles que se encontram nas periferias existenciais.
Não há lugar para fechamentos egoístas nem para o ostracismo de alguns. Em vez do “eu” e o “tu”, entre o “nós” e o “vós” ou os “outros”, há que ativar o modo “nós”. Como nos dizia ainda há pouco o Papa Francisco, sigamos juntos rumo a um nós cada vez maior, ainda que com as nossas diferenças, insuficiências e pecados! Este compromisso vale para todas as dimensões da vida e para todos os estados de vida.
2 – A abrir o Evangelho deste Domingo o questionamento sobre a validade do matrimónio e a relatividade do compromisso. Alguns fariseus, não tanto para esclarecerem uma dúvida, mas para colocarem Jesus à prova, perguntam-Lhe: «Pode um homem repudiar a sua mulher?». Como a referência é Moisés e a Lei mosaica, eles poderão concluir: «Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio, para se repudiar a mulher».
A resposta de Jesus clarifica os preceitos de Moisés, respondendo: «Foi por causa da dureza do vosso coração que ele vos deixou essa lei. Mas, no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne’. Deste modo, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
Naquele tempo como hoje, um compromisso como o matrimónio basear-se-á no amor, e só assim tem alicerce e só assim perdurará no tempo, mas contando com as limitações do marido e da esposa. Por melhor que o casal se conheça, há sempre um mistério que envolve cada pessoa e, ao longo da vida, mediante as circunstâncias (exteriores), mas sobretudo a forma (interior) de lidar com os sentimentos, com os momentos, com as adversidades, com as limitações do outro, com os próprios anseios e expetativas, surgirão dúvidas, hesitações e questionamentos sobre a relação que se assumiu. E se, às falhas de um e de outro, juntarmos o ambiente propício em que vivemos atualmente, que promove a liberdade e libertação, a qualquer preço, melhor, sem preço nenhum, estão criadas as condições favoráveis à rutura. Quando a relação exige esforço, dedicação, compromisso, quando o compromisso esbarra com os feitios de ambos, com as limitações, com os amuos e desatenções, quando falha o diálogo e a compreensão, parece que o único caminho, porque é o mais fácil, é a separação.
Tudo é relativo, a palavra dada, o acordo assumido, a vida matrimonial e familiar. Reconhecemos que um compromisso duradouro não é fácil, e o do matrimónio também não, porque as pessoas evoluem, amadurecem, adquirem novos conhecimentos, ideias e convicções, comparam-se com outras situações e/ou vivências. Hoje é mais fácil desistir e partir para outra! Isto em todas as dimensões da vida, no matrimónio, na vida profissional, na prática religiosa!
Sem, contudo, desvalorizar as pessoas que procuraram salvaguardar os compromissos assumidos e alimentar o amor que permitiu construir uma nova família.
3 – Os fariseus que abordam Jesus remetem para Moisés e para os preceitos que prescreveu para os judeus. Jesus, porém, remete para o início de tudo, antes do pecado e das fragilidades. As limitações fazem parte do ser humano, mas devem ser assumidas. Dependemos uns dos outros, pertencemo-nos. O que se diz do casal, pode dizer-se, com propriedade, de todos. Fomos criados para sermos povo, comunidade, família, para caminharmos conjuntamente e ajudar-nos uns aos outros, auxiliando desde logo os mais necessitados.
A palavra de Deus criadora expressa bem a necessidade que precisamos uns dos outros: «Não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele». O relato prossegue: “Então o Senhor Deus fez descer sobre o homem um sono profundo e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma costela, fazendo crescer a carne em seu lugar. Da costela do homem o Senhor Deus formou a mulher e apresentou-a ao homem. Ao vê-la, o homem exclamou: «Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem». Por isso, o homem deixará pai e mãe, para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne”.
Na interpretação dos rabinos judeus, a criação da mulher a partir da costela do homem significa que um e outro são iguais, nem superiores, nem superiores, mas colocados lado a lado, para se entreajudarem! São as costelas que protegem um dos órgãos vitais, o coração. É esse o propósito do relacionamento humano: cuidar e proteger! Cuidar do coração, em lógica de amor, em lógica de comunhão.
4 – Entretanto, apresentam a Jesus umas crianças para que lhes tocasse. Naquela época as crianças eram pouco valorizadas, tal como as mulheres, os estrangeiros, os pecadores públicos e os publicanos, os pagãos e os doentes.
Em momentos diferentes, Jesus mostra que não é escravo de tradições que excluem pessoas ou as subalternizam. Um só é o Pai de todos e, por conseguinte, somos todos irmãos, mais velhos ou mais novos, homens ou mulheres, pessoas sãs ou pessoas doentes, judeus ou pagãos.
Os discípulos fizeram como nós costumávamos (ou costumamos) fazer: há momentos para os adultos conversarem, discutirem, tomarem decisões… e nessas ocasiões mandam-se calar os meninos ou dão-se-lhe brinquedos (ou o telemóvel) para se entreterem ou mandam-se para outra divisão da casa! Para os discípulos, as crianças são, pelo menos, um incómodo, vêm perturbar a paz e o descanso de Jesus, quando Ele já tem muito com que se preocupar.
Perante a atitude dos discípulos, Jesus indigna-se e diz-lhes: «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis: dos que são como elas é o reino de Deus. Em verdade vos digo: Quem não acolher o reino de Deus como uma criança, não entrará nele». O evangelista prossegue a narração dizendo que Jesus, “abraçando-as, começou a abençoá-las, impondo as mãos sobre elas”.
A bênção é para todos. A postura de Jesus é o paradigma que nos cabe seguir e imitar. Não há menoridade para aceder ao reino de Deus, pelo contrário, o despojamento, humildade e dependência das crianças é um critério que nos predispõe a acolher a vontade divina, para participarmos da Sua vida.
5 – Em Fátima, a 12 de maio de 2010, o Papa Bento XVI, desafiava: “Permiti abrir-vos o coração para vos dizer que a principal preocupação de todo o cristão… há de ser a fidelidade, a lealdade à própria vocação, como discípulo que quer seguir o Senhor. A fidelidade no tempo é o nome do amor; de um amor coerente, verdadeiro e profundo a Cristo Sacerdote”.
O amor alimenta-se, cresce, amadurece, cuida-se. E dói! Tantas vezes! Pela ausência, pelos gestos insuficientes, pelas palavras vazias ou desatualizadas, pelos silêncios que são muros e bloqueios, ou indiferença, ou demissão! Como cristãos, cabe-nos rezar o amor, invocando a bênção de Deus e a Sua graça, para persistirmos fiéis no amor e no serviço.
Não estamos isentos de dificuldades, mas em nosso auxílio vem o Senhor: “Feliz de ti que temes o Senhor e andas nos seus caminhos. Comerás do trabalho das tuas mãos, serás feliz e tudo te correrá bem… De Sião o Senhor te abençoe: vejas a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida; e possas ver os filhos dos teus filhos. Paz a Israel”.
Há dias bons e dias nublosos, mas para lá das nuvens o sol brilha, e nas tempestades e para lá delas, Deus vela por nós. Precisamos de fazer com que as nuvens não impeçam o sol de chegar, precisamos de fazer com que os muros se transformem em degraus ou pontes, precisamos que o nosso coração não seja de pedra, mas se abra à misericórdia e graça de Deus.
6 – A plenitude do amor chega-nos por Jesus Cristo, em toda a Sua vida. No mistério da Encarnação, realizado no silêncio maternal do seio de Maria e anunciado a José, aos Pastores, aos Magos vindo dos confins da terra, Deus faz-Se pequeno, submetendo-Se à lógica do tempo e da biologia, Na vida pública, Jesus, Deus connosco, vive misturado no meio de nós, mostrando que é possível ser mais humano, amando com um coração de carne, ligado a Deus, Seu e nosso Pai. No mistério pascal, paixão e morte na Cruz, Jesus assume o sofrimento humano, a injustiça, o mal e o pecado, a própria morte, para fazer prevalecer o amor até às últimas consequências. Na ressurreição, Jesus é confirmado pelo Pai no Seu amor por nós. Assenta aqui a nossa esperança: o amor que nos liga a Deus é perene, é duradouro, é para sempre.
A Carta aos Hebreus, faz eco deste abaixamento de Jesus, por amor, a favor da humanidade inteira. ” Convinha, na verdade, que Deus, origem e fim de todas as coisas, querendo conduzir muitos filhos para a sua glória, levasse à glória perfeita, pelo sofrimento, o Autor da salvação [Jesus]. Pois Aquele que santifica e os que são santificados procedem todos de um só. Por isso não Se envergonha de lhes chamar irmãos”.
Leia-se, Jesus e nós temos a mesma origem! Ele quis-nos e quer-nos como irmãos. Experimenta o sofrimento e a morte para nos santificar e nos agregar à Sua vida divina.
Pe. Manuel Gonçalves
Leituras para a Eucaristia (ano B): Gen 2, 18-24; Sl 127 (128); Hebr 2, 9-11; Mc 10, 2-16.