Domingo XXXII do Tempo Comum – C – 2022
1 – O horizonte da vida humana, ainda que 80 ou 100 anos, é demasiado limitado para as nossas aspirações, sonhos, para as nossas ligações. Estar sujeito a um limite temporal, certo para todos, não se coaduna com o desejo de fazer prolongar os momentos bons, os acontecimentos felizes. Quando a fragilidade faz chamada na nossa vida, ainda assim queremos superar, ultrapassar uma doença, uma luta, uma perda. Temos dificuldade em aceitar que possa acabar, para sempre, o que dá sentido à nossa vida, o que nos faz bem ao coração, o que nos faz saborear a existência, os encontros e as pessoas, o mundo que nos rodeia.
Vivemos o dia de Todos os Santos e dia dos Fiéis Defuntos na lógica da esperança na ressurreição dos mortos e na vida eterna, a comunhão plena com os santos na eternidade de Deus. Ao aproximar-nos do fim do ano litúrgico, acentua-se esta dimensão, o final da nossa vida, como fim (finalidade) e abertura ao Deus da vida. Se a morte for termo e conclusão, só poderemos olhar para trás, para recordar e, ainda que possa agradecer a vida que se perdeu e os tempos partilhados. Na lógica crente, agradecemos a vida como dádiva que permanece, plenizada, na eternidade. Desta forma não perdemos (para sempre) aqueles que amamos.
Com efeito, é de amor que se trata. Pode o amor acabar? Será que também o amor é passageiro, finito, limitado? Se o amor acaba, então é relativo e não para sempre como sempre afirmamos e como o projetamos. Assim o amor, assim a vida.
Há estudiosos que aderiram à fé precisamente pelas descobertas maravilhosas da ciência e pela conclusão que tal simplicidade, tal complexidade, tal perfeição da vida, das suas circunstâncias e possibilidades, da sua vulnerabilidade e “perfeição” exigem uma razão ou inteligência anterior e uma durabilidade que não se esgote no tempo. A questão da existência de Deus abre a discussão sobre o início e o fim (finalidade e termo). Somos fruto da casualidade, do acaso, de um acidente, de uma reação química? Ou somos, ao invés, criados e sustentados por um Princípio que está antes do nada, do vazio, da inexistência? E esta nossa identidade, única e irrepetível, desaparecerá com a morte? Não haverá nada além deste horizonte?
Se existe um termo, uma conclusão definitiva, não precisaríamos de Deus, pois também Deus não seria inevitável, seria facilmente descartável. Não sendo assegurada vida para lá do tempo, o início pode aceitar-se como mera casualidade. Todavia, Deus existe para a vida, antes da vida, e para além da vida e do tempo. Acreditar em Deus, e na Sua existência, implica crer na ressurreição, na “imortalidade”. É este o mistério único e sublime da morte e ressurreição de Jesus Cristo.
2 – A ressurreição é uma categoria que se inscreve na possibilidade, na fé e na esperança, em Deus. Não é algo que seja imediatamente intuitivo, a não ser para os místicos, vai além da nossa racionalidade ainda que a razão exija durabilidade e permanência. Foi esse o questionamento, por exemplo, de Augusto Cury, o célebre psiquiatra brasileiro, que chegou à fé, concluindo, que a inteligência humana, a identidade pessoal, teria que perdurar após a morte biológica.
A Bíblia descreve-nos a maturação da fé num Deus salvador e criador, que cria porque ama e, porque ama, quer-nos vivos. Jesus, dirá Ele próprio, vem para que tenhamos vida e vida em abundância. Só assim é razoável a sua vinda. Se nada há para além da morte, se não precisamos de Deus e Deus é criação do pensamento humano, na volta, não devemos nada a ninguém, não somos credores de ninguém, poderemos agir além do bem e do mal, como diria o filósofo Nietzsche, não estamos sujeitos a uma moralidade que nos precede, podendo, então, criar a nossa moralidade, os critérios pelos quais orientamos as nossas escolhas. Quanto muito, para que nos tratem bem, agiremos pelo que nos é mais conveniente. Parafraseando Pascal, adequamos os princípios à forma como vivemos ou queremos viver, pois não há princípios que sejam absolutos.
Os saduceus, que não acreditam na ressurreição questionam Jesus, como argumentos concretos (casuísticos): «Mestre, Moisés deixou-nos escrito: ‘Se morrer a alguém um irmão, que deixe mulher, mas sem filhos, esse homem deve casar com a viúva, para dar descendência a seu irmão’. Ora havia sete irmãos. O primeiro casou-se e morreu sem filhos. O segundo e depois o terceiro desposaram a viúva; e o mesmo sucedeu aos sete, que morreram e não deixaram filhos. Por fim, morreu também a mulher. De qual destes será ela esposa na ressurreição, uma vez que os sete a tiveram por mulher?».
Um pouco como Tomé, ver para crer. Pensamos a ressurreição e a eternidade com as categorias que conhecemos no tempo. A resposta de Jesus é concludente: «Os filhos deste mundo casam-se e dão-se em casamento. Mas aqueles que forem dignos de tomar parte na vida futura e na ressurreição dos mortos, nem se casam nem se dão em casamento. Na verdade, já não podem morrer, pois são como os Anjos, e, porque nasceram da ressurreição, são filhos de Deus». A ressurreição insere-nos na dimensão sobrenatural, na vida divina, acima e além de tudo o que possamos sonhar.
3 – Na resposta aos saduceus, Jesus aponta também para a Sagrada Escritura. Se os saduceus questionam a partir dos textos sagrados, Jesus reencaminha-os para outras passagens. «E que os mortos ressuscitam, até Moisés o deu a entender no episódio da sarça ardente, quando chama ao Senhor ‘o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob’. Não é um Deus de mortos, mas de vivos, porque para Ele todos estão vivos».
Acreditar em Deus implica que acreditemos na Sua omnipotência. Não precisaríamos de um Deus que não conseguisse garantir a vida para lá da fragilidade biológica, além da finitude humana. Deus é um Deus de vivos, n’Ele todos vivem.
A primeira leitura apresenta um episódio bem luminoso da esperança na ressurreição. No tempo dos Macabeus, os israelitas são mortos se não prestarem culto aos deuses sírios, abjurando a religião judaica. Para mostrarem e testarem a renúncia à sua religião, são obrigados a comer carne de porco, proibida na lei judaica. São presos sete irmãos, juntamente com a mãe. São levados à presença do rei que os quer obrigar a comer carne de porco. Os irmãos, à medida que se aproximam para apostatarem a fé ou morreram, respondem, convictamente: «Estamos prontos para morrer, antes que violar a lei de nossos pais… Tu, malvado, pretendes arrancar-nos a vida presente, mas o Rei do universo ressuscitar-nos-á para a vida eterna, se morrermos fiéis às suas leis… Do Céu recebi estes membros e é por causa das suas leis que os desprezo, pois do Céu espero recebê-los de novo… Vale a pena morrermos às mãos dos homens, quando temos a esperança em Deus de que Ele nos ressuscitará; mas tu, ó rei, não ressuscitarás para a vida».
É um belíssimo texto sobre a fé na ressurreição. Sublinhe-se, porém, que a ressurreição é intuída como uma espécie de “devolução” do que se era antes de morrer. É inegável a fé em Deus que proverá à vida além da morte.
4 – É a mesma confiança que transparece no salmo, pelo qual respondemos à palavra de Deus com a Sua palavra feita oração: «Ouvi, Senhor, uma causa justa, atendei a minha súplica. / Escutai a minha oração, feita com sinceridade. / Firmai os meus passos nas vossas veredas, / para que não vacilem os meus pés. / Eu Vos invoco, ó Deus, respondei-me, / ouvi e escutai as minhas palavras. / Protegei-me à sombra das vossas asas, / longe dos ímpios que me fazem violência. / Senhor, mereça eu contemplar a vossa face / e ao despertar saciar-me com a vossa imagem».
No meio das tempestades da vida e da história, sabemos que Alguém não soçobrará, mantendo-Se por perto e assegurando-nos a vida além do tempo, da história, da morte física. Rezamos-Lhe para que nos fortaleça nas adversidades, para andarmos na Sua presença e, por conseguinte, podermos vê-l’O face a face, quando chegar a nossa hora de partir.
5 – Deus é um Deus de vivos, não de mortos. A existência de Deus e a vida eterna interligam-se e como que se “justificam” mutuamente. Sabermos que a vida, a minha e a tua vida, não terão um termo definitivo, mas um encontro pleno com Deus, na eternidade, compromete-nos com o tempo presente, a fazermos com que a nossa vida seja acolhimento da vontade Deus, para que, depois, sejamos acolhidos por Deus. Ao mesmo tempo, o amor a Deus levar-nos-á, inevitavelmente, a querer o que Deus quer. Não amamos a Deus, não seguimos Jesus, se nos distanciamos da vida divina e dos desígnios de salvação que nos são anunciados. Cabe-nos, por outro lado, ser portadores da Boa Nova para todos. Se fizemos / fazemos a experiência de encontro com Jesus morto e ressuscitado, vivo entre nós, não podemos senão espalhar, com entusiasmo e alegria, este encontro e esta certeza. Não nos envergonhemos de dar testemunho de Cristo (cf. 2Tim 1,8), como nos sugere a temática para a Semana dos Seminários que hoje concluímos.
Na segunda leitura, o apóstolo é perentório: «Jesus Cristo, nosso Senhor, e Deus, nosso Pai, que nos amou e nos deu, pela sua graça, eterna consolação e feliz esperança, confortem os vossos corações e os tornem firmes em toda a espécie de boas obras e palavras. Entretanto, irmãos, orai por nós, para que a palavra do Senhor se propague rapidamente e seja glorificada, como acontece no meio de vós… Quanto a vós, confiamos inteiramente no Senhor que cumpris e cumprireis o que vos mandamos. O Senhor dirija os vossos corações, para que amem a Deus e aguardem a Cristo com perseverança».
A missiva de Paulo interpela a comunidade para que todos permaneçam firmes na fé, expressando-a em palavras e obras. Convida-os a unirem-se em oração para que a Palavra de Deus se propague rapidamente, aguardando a vinda do Senhor. Não há espaço para uma espera passiva, mas para um compromisso missionário.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (C): 2 Mac 7, 1-2. 9-14; Sl 16 (17); 2 Tes 2, 16 – 3, 5; Lc 20, 27-38.