Domingo XIV do Tempo Comum – B – 2021

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Domingo XIV do Tempo Comum – B – 2021

1 – «De onde Lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que Lhe foi dada e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E não estão as suas irmãs aqui entre nós?».

Jesus foi à Sua terra, os discípulos foram com Ele, e quando chegou o sábado, dia consagrado ao Senhor, começou a ensinar na Sinagoga. Jesus respeita o ritmo da povoação que O conhece desde a infância. Ali estão os Seus familiares, uns mais próximos e outros mais afastados, os seus amigos e/ou vizinhos. Conhecem-n’O, tratam-n’O informalmente pelo nome. Conhecem bem os pais. Ele é o Filho do carpinteiro. Como está diferente! Dirão alguns. Como não mudou nada, apesar de termos ouvido falar de tantas coisas a Seu respeito. Concluem outros.

Jesus não é um estranho ou desconhecido. Não é um extraterrestre. Tem casa e tem família (humana). Tem uma terra onde está em casa (ainda que todo o mundo, num sentido mais espiritual, seja a Sua Casa). Vive e respeita os ritmos da Sua povoação. O sábado é o dia de ir à Sinagoga, ler e/ou escutar a Sagrada Escritura, intervir com algum comentário, debater achegas sobre a palavra de Deus. Em família, na refeição partilhada com os mais chegados, as conversas sobre a história da salvação, as gestas de Israel e como Deus interveio na sua história, alimentam as conversas e solidificam as relações familiares.

2 – O Evangelho deixa entrever dois momentos distintos, preconizados possivelmente por pessoas diferentes. No primeiro momento, transparece a admiração por Jesus, pela Sua sabedoria e pelos prodígios que realiza. Os ouvintes veem-se surpreendidos por O conhecerem bastante bem e não terem percebido as Suas capacidades, ou como cresceu em tão pouco tempo.

Logo depois, num segundo momento, vem a resposta de Jesus, direta e dura, o que leva a supor que a admiração e perplexidade acerca d’Ele tem as duas correntes, uma positiva, de admiração e acolhimento, e outra negativa, de escárnio e inveja. «Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa». Esta é uma interpelação dura e que revela desilusão e desencanto pela receção das Suas palavras e dos Seus prodígios. Nem Cristo que era Deus agradou a todos. Nem sequer tentou. Tinha como preocupação, somente, cumprir com a vontade do Pai.

É também uma lição para nós. Na vã procura de agradar a todos, acabaremos por não agradar a ninguém, travestimo-nos e no final ficaremos mais sós e mais cínicos. Jesus é diplomata, mas também é notória a Sua coerência, não disfarça simpatias, não cala diante dos poderosos, dos que têm estatuto social, político ou religioso. Quando é necessário, enfrenta. Não exclui ninguém, mas reafirma, sempre, a vontade de Deus, o amor de Deus, a justiça e a misericórdia, a benevolência e o perdão de Deus, que devem marcar a vida dos crentes. Não vale a pena pregar o que se não vive ou, pelo menos, não se tenta colocar em prática.

3 – A conclusão do Evangelho diferencia as curas dos milagres. A cura aponta mais à saúde que é devolvida; o milagre vai muito além, implica a vida como um todo, na bonança e na adversidade; trata-se de conversão a Jesus Cristo e ao Seu Evangelho.

Sem o fito de separar o corpo do espírito, já que somos uma totalidade que abarca o corpo, a alma e o espírito, a dimensão biológica e psíquica, diríamos que a cura incide nesta totalidade corpórea, sejam doenças mais físicas, sejam “doenças da alma”, mas ainda assim o corpo (pessoa) como um todo. O milagre incide sobre a alma, sobre a vontade, sobre a liberdade, sobre as nossas escolhas (sobretudo) éticas e morais.

Num outro momento, Jesus cura 10 leprosos. Os dez ficam curados, mas só um deles volta para agradecer e glorificar a Deus. Só nesse se operou o milagre (da gratidão, da humildade e da fé). A cura tira-nos as dores; o milagre preenche-nos de vida, de alegria e de bênção; a cura tem a ver connosco, mesmo que nos traga boa disposição e otimismo, mas realiza-se na nossa dimensão corpórea; o milagre agita a nossa alma, une-nos aos outros, coloca-nos em comunhão, na procura do bem de todos; a cura faz-nos regressar ao passado, ao que fazíamos antes, aos nossos afazeres; o milagre, mesmo quando nos faz regressar ao que já fazíamos, faz-nos avançar para o presente e para o futuro, pois nos compromete com todos na procura de um mundo justo, solidário e fraterno.

Ali Jesus pôde curar, mas não pôde fazer qualquer milagre. Ali Jesus agiu sobre o corpo, mas verdadeiramente não tocou a alma de ninguém, por falta de fé.

4 – «Deus de bondade infinita, que, pela humilhação do vosso Filho, levantastes o mundo decaído, dai aos vossos fiéis uma santa alegria, para que, livres da escravidão do pecado, possam chegar à felicidade eterna».

A oração de coleta (que recolhe as nossas intenções, súplicas e propósitos) acentua o milagre que Jesus realiza em nós e no mundo. Dificuldades e problemas, enquanto houver mundo, sempre existirão, mas a a atitude que assumirmos diante das adversidades e contratempos é que nos definem como pessoas, cidadãos e cristãos. E aqui não estamos a separar as realidades, é que um cristão é sempre cidadão, habita a cidade e contribui para o seu desenvolvimento, e, por maioria de razão, é sempre pessoa.

Deus opera milagres e a nós cabe acolhê-los e fazer com que cheguem a todo o mundo. Criou-nos por amor, à Sua imagem e semelhança! Criou-nos livres, interlocutores, com a capacidade de Lhe respondermos ou de O recusarmos. A criação seria o plano A? Talvez! A redenção em Jesus Cristo será o plano B? Talvez! Ou talvez não importe tanto a nomenclatura mas este mistério da nossa salvação. Deus encarna, faz-Se um de nós e, em Jesus Cristo, perde-Se entre nós, confunde-Se como um de nós, ao ponto de não ser reconhecido como Deus.

Em Nazaré começaram as confusões, em Jerusalém terão um desfecho fatal. Mas antes disso, Jesus garante-nos: podem matá-l’O, mas não Lhe tiram a vida porque essa, antecipadamente, Ele a oferece por mim e por ti, por nós, pela humanidade inteira. Milagre maior não há. E podemos experimentá-l’O em cada Eucaristia, na qual, por ação do Espírito Santo, Ele Se faz vida, Se faz presente no Seu corpo e no Seu sangue! Como é possível que um cristão prefira ficar a assistir à Missa sem se incorporar no Corpo de Cristo? Bem bastou no tempo dos confinamentos e para aqueles que ainda não podem!

5 – Ezequiel responde ao chamamento de Deus. Tal como Jesus, também este Profeta sabe que não tem pela frente uma tarefa fácil, mas o Espírito fá-lo levantar-se: «Filho do homem, Eu te envio aos filhos de Israel, a um povo rebelde que se revoltou contra Mim. Eles e seus pais ofenderam-Me até ao dia de hoje. É a esses filhos de cabeça dura e coração obstinado que te envio, para lhes dizeres: ‘Eis o que diz o Senhor’. Podem escutar-te ou não – porque são uma casa de rebeldes –, mas saberão que há um profeta no meio deles».

Um dia, Santo António, perante a recusa dos seus ouvintes em acolherem a Palavra de Deus e mudarem de vida, resolveu pregar aos peixes. Também hoje precisamos de profetas, precisamos de ser profetas, a começar em nossa casa e na nossa terra. A Ezequiel é pedido que pregue, que anuncie a Palavra de Deus. Podem não o escutar, mas ficam a saber que Deus lhes enviou um profeta e continua a esperar que se convertam. A cura é possível, pode até acontecer sem que tenhamos intervenção direta. O milagre (da conversão) depende também de nós, não basta a graça de Deus, que não Se impõe, é preciso o nosso assentimento, um coração despojado de soberba para se encher com o Seu Santo Espírito.

6 – Na bonança ou na adversidade, os que verdadeiramente se deixaram transformar por Jesus não temem nem as perseguições, nem as injúrias, nem a própria morte. Se tememos é porque a nossa fé está em crescimento e ainda não chegou àquela maturidade que nos faz confiar totalmente nos desígnios de Deus, sobretudo quando atravessamos tempos conturbados na nossa vida pessoal, familiar ou na época em que vivemos. Claro que a fé, dom de Deus, também é caminho que acolhemos e vamos preenchendo.

São Paulo, na segunda leitura, testemunha as maravilhas que Deus lhe revelou e que se realizaram nele e através dele nas comunidades, mas igualmente a consciência de que ainda não se encontra na eternidade e, portanto, está sujeito às fragilidades espácio-temporais, às limitações biológicas, que entende como provação constante à fé professada e vivida. “Ele disse-me: «Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que se manifesta todo o meu poder»… Alegro-me nas minhas fraquezas, nas afrontas, nas adversidades, nas perseguições e nas angústias sofridas por amor de Cristo, porque, quando sou fraco, então é que sou forte”.

7 – A fé amadurecida e persistente alimenta-se da oração, pois, sendo dom, não depende primeiramente de nós, mas de Deus. Por conseguinte, não cessemos de pedir este dom precioso a Deus, abrindo o nosso coração para O acolhermos.

O salmista dá-nos uma ajuda: “Levanto os meus olhos para Vós, para Vós que habitais no Céu, como os olhos do servo se fixam nas mãos do seu senhor. Como os olhos da serva se fixam nas mãos da sua senhora, assim os nossos olhos se voltam para o Senhor nosso Deus, até que tenha piedade de nós. Piedade, Senhor, tende piedade de nós, porque estamos saturados de desprezo”.

Porque se o Senhor está connosco e O sentirmos em nós, tornar-se-á mais leve suportar as afrontas e as contrariedades da vida, como vemos em Ezequiel, em Jesus ou em São Paulo. Neles, o Espírito Santo dá-lhes o ânimo para prosseguirem, apesar dos contextos desfavoráveis que, por vezes, encontram. Como Maria, deixemo-nos, também nós, preencher do Espírito Santo, para que, cheios da Sua graça, Lhe possamos responder com a mesma firmeza: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua palavra”.

Pe. Manuel Gonçalves


Leituras para a Eucaristia: Ez 2, 2-5; Sl 122 (123); 2 Cor 12, 7-10; Mc 6, 1-6.