Festa da Sagrada Família – ano B – 27 de dezembro de 2020
1 – «Agora, Senhor, segundo a vossa palavra, deixareis ir em paz o vosso servo, porque os meus olhos viram a vossa salvação, que pusestes ao alcance de todos os povos: luz para se revelar às nações e glória de Israel, vosso povo».
Há de ser uma felicidade imensa uma pessoa chegar ao termo dos seus dias, em idade avançada, e dizer simplesmente: agora posso partir em paz! Compreende-se a afirmação, não tanto em alguém que vive resignado ou frustrado, mas em alguém que viveu a vida empenhado em fazer o bem, em aproveitar o tempo, em deixar marcas positivas no mundo, alguém com os filhos criados e os netos (e bisnetos) bem orientados. E compreende-se melhor num crente (entenda-se, pessoa com uma fé amadurecida e esclarecida), pois sabe que a morte não é o fim de tudo, a queda num vazio, mas um encontro definito com Deus e com aqueles que partiram antes.
Simeão, como se verá também na Profetisa Ana, não é um profissional do Templo, mas um homem de fé, justo, homem de oração, que esperava a salvação, possivelmente um místico, atento aos sinais vindos do Céu, vindos de Deus e às promessas feitas através dos Profetas.
2 – Ao longo dos anos, Simeão acolheu, no Templo, várias famílias, que iam agradecer e invocar a bênção e a proteção de Deus para os seus meninos. Usava palavras carinhosas, cheias de alegria, de ternura e de esperança. Nesse dia, Simeão foi ao Templo movido pelo Espírito Santo. Era um homem justo e piedoso, o Espírito Santo estava nele e revelara-lhe que não morreria sem antes ver o Messias de Deus.
Maria e José, a Sagrada Família, ao chegarem os dias da purificação, levaram Jesus ao Templo de Jerusalém, para cumprirem as prescrições da Lei de Moisés: «Todo o filho primogénito varão será consagrado ao Senhor».
Simeão recebeu o Menino em seus braços e bendisse a Deus. Agora que a promessa do Senhor se cumpriu, sente que a sua vida está completa. Depois de abençoar o Menino, abençoa os pais do Menino Jesus, Maria e José. Depois de tantas coisas positivas acerca do Menino, Simeão diz a Maria: «Este Menino foi estabelecido para que muitos caiam ou se levantem em Israel e para ser sinal de contradição; – e uma espada trespassará a tua alma – assim se revelarão os pensamentos de todos os corações».
A luz coloca a descoberto as mazelas de um compartimento, a Luz coloca a descoberto as nossas fragilidades e os nossos propósitos. Jesus, Deus connosco, vem para salvar. Cabe-nos, a ti e a mim, deixar que a Sua Luz inunde o nosso coração, a nossa vida por inteiro. O Menino, que é bênção de Deus prometida e realizada para todo o mundo, é também sinal de contradição, pois o bem também incomoda, como a luz perturba aqueles que vivem nas trevas, quais morcegos!
3 – A família de Maria, de Jesus e de José está no grupo da maioria das famílias daquele tempo e daquela região. Na pequena povoação de Nazaré, as famílias vivem lado a lado, ajudam-se no campo, numa agricultura autossuficiente; sacrificadas pelos elevados impostos; possuem animais de pequeno porte, como ovelhas e cabras, com os mais novos a assumirem o papel de pastores, juntando ovinos e caprinos, das várias famílias, num único rebanho, em busca das melhores pastagens; o leite e a lã são bens preciosos; desenvolvem pequenos ofícios, entreajudando-se e/ou trabalhando em troca de outros géneros alimentícios em falta. Nas hortas e campos de cada família, também a existência de árvores de furto. Por outro lado, são pessoas simples, de uma grande religiosidade, cumpridoras das leis, participam todos da festa da comunidade e do luto.
Nas festas anuais, como bons judeus, crentes e praticantes, seguem em caravana para ir a Jerusalém. Não eram viagens fáceis, nem muito seguras, daí irem em grupo, e acarretavam bastantes despesas, porque ficavam fora de casa alguns dias, levando o necessário para a viagem, além das ofertas que ajuntavam para o Templo.
O nascimento de um filho, para os judeus, significava uma grande bênção de Deus. Era sinal de que Deus olhava para o casal. A ida ao Templo era uma forma de agradecer, de louvar e firmar o beneplácito de Deus. Regressavam em paz, com a garantia que Deus continuaria presente nas suas vidas, em todos os momentos, nos mais felizes e nos mais sacrificados, na bonança e na adversidade. Maria e José, com o Menino Jesus, regressam a casa, a Nazaré. “Entretanto, o Menino crescia, tornava-Se robusto e enchia-Se de sabedoria. E a graça de Deus estava com Ele”.
4 – Neste Domingo, dentro do Natal, celebramos a Festa da Sagrada Família, a de Nazaré, mas também a nossa, que se torna sagrada e abençoada porque Deus nos ama, porque Deus quer o nosso bem, porque Deus nos assume como filhos, em Jesus Cristo, e nos faz saber que somos irmãos.
O momento que o mundo atravessa, de grande adversidade, faz sobressair a missão e a importância da família, das famílias. A sociedade beneficia da família, mas, mais do que isso, pessoas concretas, de carne e osso, vivem, sobrevivem e dão sentido à vida porque têm quem os ame, os acolha, lhes proporcione um lar, um aconchego. As instituições, tendo a sua relevância, nunca substituem o calor da família e, na maioria das vezes, e antes fosse sempre, procuram constituir-se como família, criando um ambiente de proximidade, de ternura e de aconselho familiar. Também neste Natal lembramos estas famílias que vivem em lares e a todos os que procuram dar-lhes o calor familiar. Rezamos por uns e por outros e para todos invocamos a bênção de Deus.
“Senhor, Pai santo, que na Sagrada Família nos destes um modelo de vida, concedei que, imitando as suas virtudes familiares e o seu espírito de caridade, possamos um dia reunir-nos na vossa casa para gozarmos as alegrias eternas”.
Vivemos peregrinos no tempo e na história, para um dia nos reunirmos como única família de Deus e para Deus. Porquanto, cabe-nos antecipar essa familiaridade eterna. O olhar fixo em Deus, na eternidade, na Luz que vem de Jesus, que vem do Presépio, da Sagrada Família, não nos dispensa, antes pelo contrário, de procurar, nas nossas famílias e na sociedade, imitar as virtudes visíveis da Família de Nazaré, a ternura e o amor, o cuidado e a bênção, a abertura a Deus e aos outros.
5 – A primeira leitura aponta critérios e compromissos concretos para acolher e realizar o sonho de Deus, o Seu projeto de amor e os Seus desígnios de paz. O que conseguirmos fazer da família, célula viva de amor e de aconchego, conseguiremos também alargar à sociedade, no seu conjunto.
“Deus quis honrar os pais nos filhos… Quem honra seu pai obtém o perdão dos pecados e acumula um tesouro quem honra sua mãe. Filho, ampara a velhice do teu pai e não o desgostes durante a sua vida. Se a sua mente enfraquece, sê indulgente para com ele e não o desprezes, tu que estás no vigor da vida, porque a tua caridade para com teu pai nunca será esquecida e converter-se-á em desconto dos teus pecados”.
A família é essencial para a saúde dos seus membros, amparando-os nos momentos de solidão e doença, protegendo-os na velhice. O que um dia, de membros diferentes, os constituiu família, o amor, deverá ser o que faz persistir a família ao longo do tempo. A fé, também aqui, é essencial, para que a abertura à graça de Deus, dê humildade a quem precisa de ser cuidado e a quem cuida. Não custa cuidar de alguém durante quinze dias ou um mês; valentia e amor é cuidar de alguém durante meses e anos. Deus nos ajude a cuidar uns dos outros.
O salmo faz-nos rezar, sabendo que a oração envolve compromisso com o que rezamos e com todos os que Deus coloca na nossa vida. “Feliz de ti, que temes o Senhor e andas nos seus caminhos. Comerás do trabalho das tuas mãos, serás feliz e tudo te correrá bem… Assim será abençoado o homem que teme o Senhor… vejas a prosperidade de Jerusalém, todos os dias da tua vida”. Podemos até não colher o que semeámos, mas não colheremos nada se nada semearmos. Semeemos paz e esperança, semeemos cuidado e amor.
6 – O que é que nos distancia dos outros? O egoísmo, traduzível pelo ciúme, pela inveja, pela prepotência e avareza, pelo ódio e sobranceria. O que é que nos aproxima uns dos outros, nos irmana e nos humaniza? O amor, traduzível na ternura e amabilidade, no carinho e atenção, na humildade e sinceridade.
Vale para todos os tipos de relacionamento. Na família, o essencial será sempre o amor, independentemente das dificuldades e contratempos, das limitações e das fragilidades. “Como eleitos de Deus, santos e prediletos, revesti-vos de sentimentos de misericórdia, de bondade, humildade, mansidão e paciência”.
São Paulo não esconde as dificuldades que podem advir, pelo temperamento de cada um ou pelas circunstâncias, mas também sabe que a nossa condição de cristãos há de fortalecer o nosso propósito. “Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se algum tiver razão de queixa contra outro. Tal como o Senhor vos perdoou, assim deveis fazer vós também. Revesti-vos da caridade, que é o vínculo da perfeição. Reine em vossos corações a paz de Cristo, à qual fostes chamados para formar um só corpo. E vivei em ação de graças”.
Há situações que sozinhos não conseguimos resolver. Daí a importância da fé e da oração que alimenta a fé. “Habite em vós com abundância a palavra de Cristo, para vos instruirdes e aconselhardes uns aos outros com toda a sabedoria… E tudo o que fizerdes, por palavras ou por obras, seja tudo em nome do Senhor Jesus, dando graças, por Ele, a Deus Pai”.
Como em tudo, a fé e o amor têm a sua concretização em pessoas concretas. “Esposas, sede submissas aos vossos maridos, como convém no Senhor. Maridos, amai as vossas esposas e não as trateis com aspereza. Filhos, obedecei em tudo a vossos pais, porque isto agrada ao Senhor. Pais, não exaspereis os vossos filhos, para que não caiam em desânimo”. A linguagem pode não ser a do nosso tempo, mas a mensagem é para todos os tempos: amar o outro, o marido, a mulher, os filhos, os pais, como Cristo nos amou, dando a Sua vida por nós, gastando-Se por inteiro, colocando-nos em primeiro lugar. Se assim for estaremos mais perto de sermos família.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (B): Sir 3, 3-7. 14-17a; Sl 127 (128); Col 3, 12-21; Lc 2, 22-40.