Domingo III da Quaresma – ano C – 2022

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Domingo III da Quaresma – ano C – 2022

1 – A misericórdia e a paciência de Deus contrastam com a nossa pressa e com o nosso egoísmo. Temos pressa em apontar o dedo, a culpa e a responsabilidade. Temos pressa em cortar o mal pela raiz e até invocar Deus para que faça ver e faça pagar aqueles que praticam a iniquidade. Não que não tenhamos razões para tal! Uma pessoa honesta, vendo a barbárie de Vladimir Putin, vai ter ganas de o condenar e desejar que seja morto antes de fazer mais estragos!

Não nos cabe, contudo, o papel de Deus nem o de O forçarmos a agir da forma que achamos mais justa. Cabe-nos orar, para que Deus preencha o nosso coração; cabe-nos acolher a Sua palavra para adequarmos as nossas convicções à Sua santíssima vontade; cabe-nos hospedar a Sua misericórdia para agirmos de tal forma que em tudo nos reconheçamos e tratemos como irmãos, imitando Jesus Cristo.

2 – Vão contar a Jesus que Pilatos tinha mandado matar certos galileus juntamente com as vítimas dos sacrifícios que imolavam. Pretendem que Jesus dê uma opinião e se coloque como juiz contra a barbaridade de Pilatos. Contudo, Jesus, ao invés de emitir um juízo de valor, desafia-os para olharem sobretudo para si mesmos.

«Julgais que, por terem sofrido tal castigo, esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus? Eu digo-vos que não. E se não vos arrependerdes, morrereis todos do mesmo modo. E aqueles dezoito homens, que a torre de Siloé, ao cair, atingiu e matou? Julgais que eram mais culpados do que todos os outros habitantes de Jerusalém? Eu digo-vos que não. E se não vos arrependerdes, morrereis todos de modo semelhante».

É curiosa e sugestiva a contraposição de Jesus, remetendo para a necessidade de conversão. Obviamente, o mal é perverso e não tem outra avaliação que não seja negativa. Porém, de pouco adianta fazer julgamentos se, eu e tu, não fizermos nada para tornar o mundo mais fraterno, justo e humano. Mais do que nos fixarmos no que os outros fazem ou deixam de fazer, deveremos, antes de mais, olhar para as nossas omissões, distrações, indiferenças, para os nossos egoísmos e prepotências.

Por outro lado, Jesus desmistifica, em definitivo, a moralidade de acidentes ou cataclismos. O assassinato dos judeus ou a morte de 18 homens em consequência da queda de uma torre não decorre de qualquer culpabilidade pessoal; culpabilidade teremos nós, eu e tu, se não nos convertermos e se não adequarmos a nossa vida aos desígnios de Deus, escolhendo o amor, o perdão e o serviço.

3 – Jesus prossegue com uma parábola, pela qual se percebe que a nossa pressa em julgar não se ajusta à misericórdia de Deus. Por um lado, a nossa tarefa passa pela conversão, pela adesão firme à bondade de Deus, pela mudança de vida, para que a existência seja, precisamente, marcada pela vida e não pela morte. Por outro lado, da parte de Deus, podemos contar com o Seu amor infindo.

«Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi procurar os frutos que nela houvesse, mas não os encontrou. Disse então ao vinhateiro: ‘Há três anos que venho procurar frutos nesta figueira e não os encontro. Deves cortá-la. Porque há de estar ela a ocupar inutilmente a terra?’. Mas o vinhateiro respondeu-lhe: ‘Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo. Talvez venha a dar frutos. Se não der, mandá-la-ás cortar no próximo ano».

Aí está a pressa! A pressa em colher os frutos. A pressa em julgar, em querer que as coisas sejam do nosso jeito, e se não são, cortamos o mal pela raiz! Partimos para o abate, para a descredibilização do outro, para a sua destruição! É um risco que corremos quando nos centramos em nós.

Aí está a paciência de Deus! Três anos e ainda não deu nada? Vamos redobrar a atenção e cuidados para que possa dar fruto! Há que ter paciência! A paciência do amor! A paciência de Mãe.

4 –Deus não fica escondido, alheado, distante, pois Ele faz-Se próximo, vem ao nosso encontro, deixa-nos ver os sinais da Sua presença. Moisés é surpreendido por uma chama ardente, uma sarça que não se consome, é surpreendido pelo Anjo do Senhor. A primeira nota vai para o facto de Moisés decidir aproximar-se! Poderia afastar-se ou passar adiante, mas aproxima-se. É um desafio para nós também, aproximar-nos dos sinais, das pessoas, da Palavra de Deus, para percebermos melhor, para deixarmos que o coração também sinta e pressinta a presença amiga do Senhor Deus.

Do meio da sarça, Deus chama-o e logo o alerta: «Não te aproximes. Tira as sandálias dos pés, porque o lugar que pisas é terra sagrada». O nosso pecado está em dessacralizarmos tudo, a terra, a vida, as pessoas. Já nada é sagrado! Quando nos focamos em nós, tudo se torna relativo se não estiver de acordo com os nossos caprichos. Teremos que escutar, uma e outra vez, a voz de Deus, e respeitarmos o chão sagrado que pisamos, a terra e, sobretudo, as pessoas. Tiremos as sandálias, para não pisarmos, para não destruirmos, para não matarmos a vida que germina e floresce neste nosso mundo, neste nosso tempo. Tiramos as sandálias e cuidamos da criação com delicadeza e generosidade.

5 – Deus apresenta-Se referido à humanidade: «Eu sou o Deus de teus pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob». Não se caracteriza por um nome, um conceito abstrato, mas apresenta-Se na relação connosco.

Moisés questiona Deus sobre o Seu nome, para O comunicar aos filhos de Israel. A resposta de Deus não é estática, não é uma definição fechada. Em definitivo, não podemos encerrar Deus nas nossas definições ou conceitos racionais. Deus é Deus e não Se subjuga a nós. Pelo contrário, cabe-nos a nós escutar a Sua voz e perscrutar o Seu olhar e a Sua palavra.

Diz Deus a Moisés: «Eu vi a situação miserável do meu povo no Egipto; escutei o seu clamor provocado pelos opressores. Conheço, pois, as suas angústias. Desci para o libertar das mãos dos egípcios e o levar deste país para uma terra boa e espaçosa, onde corre leite e mel».

De imediato, Moisés compreende que o discurso de Deus não é retórico, mas é missão e, por conseguinte, coloca-se pronto para ir, sabendo que Deus não é (apenas) um nome, mas é Presença, que nos acompanha, que está. “Eu Sou. Sou Aquele que Sou”. Deus é Deus e reconhecê-l’O como tal implica que nos reconheçamos como criaturas, na mesma condição finita e no mesmo barco, dependentes e responsáveis uns pelos outros. Não estamos acima, não somos donos de ninguém. A terra é sagrada, não é minha ou tua, é de todos, e é-nos dada por Deus para dela cuidarmos com delicadeza.

6 – O nome de Deus é bênção, proteção e luz. Ele age em nosso favor, escutando a voz do pobre, os clamores do povo eleito. Por nossa parte, escutemo-l’O, deixemo-nos enviar, comprometamo-nos com esta bênção, com esta paciência amorosa de Deus, que a todos ama como filhos.

O acolhimento da vontade de Deus começa pela oração confiante. A oração dilata o nosso coração para que seja preenchido com o coração de Deus. Louvamos o Senhor, para que a atitude orante nos predisponha a colocar-nos em marcha, para que, através de nós, a bênção e a graça de Deus possam chegar a todos, especialmente aos cativos, aos pobres, aos excluídos. Como Moisés, partamos, rapidamente, para libertar o povo, todos aqueles que encontrarmos, guiando-os para o aconchego da fé, mobilizando-nos todos, sempre, para a partilha e para a comunhão.

De coração aberto e disponível, bendigamos o Senhor: “Bendiz, ó minha alma, o Senhor e todo o meu ser bendiga o seu nome santo. / Ele perdoa todos os teus pecados e cura as tuas enfermidades. Salva da morte a tua vida e coroa-te de graça e misericórdia. / O Senhor faz justiça e defende o direito de todos os oprimidos. Revelou a Moisés os seus caminhos e aos filhos de Israel os seus prodígios. / O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade”.

A exigência de Deus é o amor, a ternura, a misericórdia. Ele liberta-nos de todo o mal. Exige, mas não exclui! A sua compaixão é paciente! Está nas nossas mãos acolher a Sua bondade e sermos portadores da Sua misericórdia uns para os outros.

7 – São Paulo faz a síntese entre a primeira leitura e o Evangelho. Recorda-nos as bênçãos de Deus, mas desafia-nos à vigilância, ao arrependimento e à mudança de vida. Não nos fixemos no que os outros fazem, ainda que possa ser estímulo ou alerta, mas procuremos responder e concretizar a fé que professamos com a caridade que praticamos.

O apóstolo começa por relembrar «que os nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem, passaram todos através do mar e na nuvem e no mar, receberam todos o batismo de Moisés. Todos comeram o mesmo alimento espiritual e todos beberam a mesma bebida espiritual. Bebiam de um rochedo espiritual que os acompanhava: esse rochedo era Cristo».

Porém, acrescenta São Paulo, nem todos chegaram à Terra Prometida, caíram mortos no deserto. Na verdade, segundo a Bíblia, entre a saída do Egito e a entrada em Canaã passou o tempo de uma geração, 40 anos. O Apóstolo vê nisto um aviso, para nos servir de exemplo. Deus guia-nos, mas precisamos de nos deixar guiar! «Portanto, quem julga estar de pé tome cuidado para não cair».

Entreveem-se aqui as palavras de Jesus: «Se não vos arrependerdes, morrereis todos de modo semelhante». Não é uma ameaça, é um desafio. Somos nós que cavamos a nossa sepultura, somos nós que fazemos a cama onde nos havemos de deitar!

O amor e a bondade eternizam-nos.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano C): Ex 3, 1-8a. 13-15; Sl 102 (103); 1 Cor 10, 1-6. 10-12; Lc 13, 1-9.