Solenidade de Jesus Cristo Rei do Universo – 22 de novembro de 2020
1 – “O Senhor disse a Caim: ‘onde está o teu irmão Abel?’ Caim respondeu: ‘Não sei! Sou porventura eu o guarda do meu irmão?’ O Senhor disse-lhe: ‘Que fizeste? Eis que a voz do sangue do teu irmão clama por Mim na terra'” (Gn 4, 9-10).
Nas primeiras páginas da Bíblia, Deus pergunta-nos, a ti e a mim, pelo irmão, responsabilizando-nos. Um pouco antes e Deus confia a Adão e Eva, a ti a e mim, a nós, o cuidado pela criação inteira. Crescei e multiplicai-vos, dominai e submetei (cuidai, recriai, agi, transformai) a terra. Sobre as transgressões, Deus interroga Adão e Eva, e a serpente. Como verifica um passar de culpas, Deus, agindo com misericórdia, responsabiliza cada um dos intervenientes pelos seus atos, apontando um caminho de conversão e de esperança. Nada voltará a ser como dantes. Quando se perde a inocência, não há retorno, pois uma etapa foi ultrapassada. Cabe, parafraseando Augusto Cury, criar novas memórias, pois o que foi não se pode apagar com uma borracha, ainda que Deus o faça para nos redimir e nos tornar, em Cristo, por ação do Espírito Santo, novas criaturas, santificadas pelo Batismo. Quem não se tornar como criança… não entrará no reino de Deus. Mas já não é possível a ingenuidade “original”, tão somente a conversão permanente ao amor de Deus no amor aos irmãos.
Caim parece ter esquecido rapidamente que Abel era seu irmão. O ciúme e a inveja, a lei do mais forte, a sobranceria e prepotência, a ganância e a avareza, numa palavra, o egoísmo, fazem com que Caim elimine o seu irmão, a quem vê como adversário, como obstáculo para dominar, aqui sim, num sentido de poder absoluto. Quem se meter no caminho será destruído. Porém, o sucesso e o domínio não são nem totais nem definitivos, pois há um momento de prestar contas ao Senhor da vida. O sangue do irmão, hoje como ontem, clama na terra. É hora de lhe respondermos enquanto é dia, para não respondermos pelo seu sofrimento esquecido!
2 – No final, Deus espera-nos e pergunta-nos pelos irmãos, sobretudo os mais pequeninos. Na parábola do Juízo final, Jesus utiliza novamente a imagem do Bom Pastor, que cuida até ao fim, dando a vida, mas não altera as nossas opções, não controla as nossas escolhas, não decide e não vive por nós.
Aos que O tiverem escolhido em vida, nos irmãos, Ele dirá: «Vinde, benditos de meu Pai; recebei como herança o reino que vos está preparado desde a criação do mundo». Aos que O recusaram em vida, distraídos, indiferentes e demasiado ensimesmados, Ele dirá: «Afastai-vos de Mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e os seus anjos».
Uns e outros interrogar-se-ão pelos motivos de serem incluídos no Seu reino ou excluídos da Sua presença. A resposta é concludente e explícita. Quando é que O servimos e cuidamos d’Ele: «Quantas vezes o fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes». E quando é que O esquecemos e nos tornámos indiferentes: «Quantas vezes o deixastes de fazer a um dos meus irmãos mais pequeninos, também a Mim o deixastes de fazer».
A nossa fé, o amor a Deus, não é meramente espiritual e espiritualizante, é carnal, como Jesus, que, sendo Deus, Se fez homem e Se tornou pobre para nos enriquecer com o Seu amor, com a Sua vida oferecida e gasta por nós. Jesus não é, no tempo, um espírito fantasmagórico, mas pessoa, de carne e osso, carne da nossa carne e sangue do nosso sangue. Um de nós. Um connosco. Deus encarnado, Deus humano.
O juízo de Deus é pautado pela misericórdia, pela carícia da Sua bondade. Contudo, não resulta da Sua reflexão, mas das nossas vivências e do amor com que lidámos uns com os outros, o amor transformado em vida, em boas obras. “Tive fome e destes-Me de comer; tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e Me recolhestes; não tinha roupa e Me vestistes; estive doente e viestes visitar-Me; estava na prisão e fostes ver-Me”. Deus aproveita tudo, ainda que seja um copo de água, mas temos de fazer a nossa parte, servindo-O nos irmãos. Como tantas vezes sublinha o Santo Padre, quem não serve para servir não serve para viver.
No inverso, também são as nossas escolhas, palavras e ações, no tempo da nossa vida terrena, que decidem o juízo final. “Tive fome e não Me destes de comer; tive sede e não Me destes de beber; era peregrino e não Me recolhestes; estava sem roupa e não Me vestistes; estive doente e na prisão e não Me fostes visitar”.
3 – Ao longo de toda a vida, Deus não cessa de nos chamar, mantendo-Se próximo, desafiando-nos, derramando as Suas graças e bênçãos, dando-nos sinais e oportunidades. Não estamos sós! Ele age em nós, Ele ampara-nos e protege-nos. Criou-nos sem nós, diz-nos Santo Agostinho, mas não nos salva sem nós. A Sua misericórdia cura a nossa miséria, o Seu amor preenche os nossos vazios e distrações, a Sua bondade ilumina as nossas fragilidades e mostra-nos caminhos curativos. Porém, Deus não age contra nós ou apesar de nós. Ele está à porta, à nossa espera! Precede-nos. Primeira-nos no amor e na vida. Todavia, temos de Lhe abrir a porta. Ele não entra em corações fechados pelo egoísmo e pela soberba. Se Lhe abrirmos a porta, Ele entra, senta-Se à nossa mesa e transforma a nossa refeição numa festa.
Na profecia de Ezequiel a belíssima imagem de Deus como o Pastor que cuida, que dá a vida pelas ovelhas, que as conduz a pastagens verdejantes. «Eu próprio irei em busca das minhas ovelhas e hei de encontrá-las. Como o pastor vigia o seu rebanho, assim Eu guardarei as minhas ovelhas, para as tirar de todos os sítios em que se desgarraram num dia de nevoeiro e de trevas. Eu apascentarei as minhas ovelhas, Eu as levarei a repousar. Hei de procurar a que anda perdida e reconduzir a que anda tresmalhada. Tratarei a que estiver ferida, darei vigor à que andar enfraquecida e velarei pela gorda e vigorosa. Hei de apascentá-las com justiça. Quanto a vós, meu rebanho, assim fala o Senhor Deus: Hei de fazer justiça entre ovelhas e ovelhas, entre carneiros e cabritos».
A justiça é precedida pelo cuidado. Deus não julga de forma imparcial, fria e distante. Ama-nos, cuida de nós, faz tudo o que Lhe é possível para que a nossa vida seja abundante. Cabe-nos a nós, a mim e a ti, fazer pela vida, colocar os talentos a render, fazer com que o tempo seja gasto e preenchido com o bem, dedicando-nos a viver as obras de misericórdia. No final, lá estaremos a ser recebidos por Deus, pelos Anjos e pelos Santos e por todos aqueles a quem fizemos o bem, a quem deixamos ver a bênção que Deus nos concedeu.
4 – O salmo, como não poderia deixar de ser, sintoniza-nos na reposta à Palavra de Deus deste último Domingo do Tempo Comum, fazendo-nos ver que a soberania de Deus, a Sua realeza, não se baseia no poder, no alheamento, na distância sobranceira, mas na proximidade, no pastoreio, no dedicação constante. Como sói dizer-se, só não vê quem não quer. Ele está por perto, deixa-Se ver, em Jesus Cristo, deixa-Se abraçar, mistura-Se entre nós, confunde-Se com os pobres, os pecadores, os publicanos e os indigentes.
A oração do salmo faz-nos professar a certeza de que Deus nos ama como o melhor dos pastores. “O Senhor é meu Pastor: nada me falta. Leva-me a descansar em verdes prados, conduz-me às águas refrescantes e reconforta a minha alma. Ele me guia por sendas direitas, por amor do seu nome. Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo. Para mim preparais a mesa à vista dos meus adversários; com óleo me perfumais a cabeça e o meu cálice transborda. A bondade e a graça hão de acompanhar-me, todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor para todo o sempre”.
Tudo é preparado e feito por Deus para termos vida e vida abundante (cf. Jo 10, 10).
5 – A realeza divina tem como fundamento a vida, morte e sobretudo a ressurreição de Jesus. Tal como para nós, também para Jesus, sendo Filho e apesar de ser Filho de Deus, valem as Suas escolhas, uma vida oferecida em nosso favor, gasta até ao último fôlego, por amor! E assim em vida, assim na morte. Jesus consome-me por nós! E Deus Pai faz com que a Sua vida e o Seu amor não Se esgotem no tempo, na história, mas sejam perpetuados na eternidade. E com Cristo, também aqueles que com Ele derem a vida a favor dos irmãos.
“Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram. Uma vez que a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos; porque, do mesmo modo que em Adão todos morreram, assim também em Cristo serão todos restituídos à vida. Cada qual, porém, na sua ordem: primeiro, Cristo, como primícias; a seguir, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda”.
A realeza de Jesus a todos integrará, os que vieram antes, os que vivem hoje, os que Deus chamará à vida histórica amanhã. Conta com todos. Estamos no mesmo barco. Somos todos filhos. Todos irmãos em Jesus. Somos súbditos e, mais do que isso, herdeiros com Ele, porque filhos do mesmo Pai, porque Ele nos assume e nos trata como irmãos, herdeiros se com Ele vivermos e com Ele gastarmos a vida.
O final confirmará as nossas escolhas. Estaremos do lado do Vencedor, se o desejarmos com palavras e obras. “Depois será o fim, quando Cristo entregar o reino a Deus seu Pai, depois de ter aniquilado toda a soberania, autoridade e poder. É necessário que Ele reine, até que tenha posto todos os inimigos debaixo dos seus pés. E o último inimigo a ser aniquilado é a morte. Quando todas as coisas Lhe forem submetidas, então também o próprio Filho Se há de submeter Àquele que Lhe submeteu todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos”.
A submissão (súbditos) não se faz no final, mas em vida e não é uma submissão escravizante, mas amorosa. Aquele que ama submete-se, como Cristo, que Se aniquila para Se tornar, em tudo, semelhante ao homem. O amor sujeita-se a padecer pelo outro, por tanto querer que o outro seja feliz. É esta a genuína submissão, voluntária e libertadora.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano A: Ez 34, 11-12. 15-17; Sl 22 (23); 1 Cor 15, 20-26. 28; Mt 25, 31-46.