Solenidade de Pentecostes – 2021

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Solenidade de Pentecostes – 2021

1 – A tecnologia e a ciência proporcionam-nos as maiores comodidades, com milhentas possibilidades de transformarmos a natureza, nos movermos rapidamente de um para o outro lado, comunicarmos em tempo real e visualizarmos o outro como se estivéssemos frente a frente. Na mobilidade, na medicina, na tecnologia, na construção civil e viária, no conforto das habitações e do vestuário, na diversidade alimentar, evoluímos ao ponto de muitas vezes nos julgarmos invencíveis e querermos o lugar de Deus, recusando-O como chão, referência, salvação.

Porém, vivemos de portas e janelas fechadas com medo que nos tirem o que adquirimos ou vejam as nossas fragilidades; de portas e janelas fechadas com receio que a vida construída, conquistada, sacrificada possa de repente ser-nos invejada, roubada, carcomida pela traça. Vem ao de cima a sensação de que os outros podem cobiçar o que nós queremos e até agir de forma a ultrapassar-nos na luta por outros bens. E amealhamos, amealhamos e quando nos apercebemos falta-nos ar, espaço, falta-nos vida, falta-nos leveza para respirar e para sorrir; falta-nos a alegria dos sorrisos espontâneos!

Ambição com conta, peso e medida, que torne mais cómoda a nossa vida, a vida da família, dos amigos e dos vizinhos, é algo de bom e defensável, mas nesta certeza que a vida não acalma no que temos, mas no que somos, a vida do que temos pesa-nos, a vida do que somos faz-nos voar, sonhar e envolver, abraçar, beijar, escancarar as portas da casa e sobretudo do coração.

A pandemia do novo coronavírus veio pôr em causa muitas das seguranças que julgávamos ter alcançado. Fazem-nos crer que estamos no paraíso e que não há nada que impeça de fazermos o que queremos da vida. Tudo está ao alcance da mão ou de um comando, apesar dos sinais de violência, de paz amordaçada, de perseguições arbitrárias, de tráfico de pessoas, de aniquilação de culturas/etnias, de descriminação religiosa e política, da miséria entranhada em muitas regiões do planeta.

Com medo e precaução, por cuidado e respeito aos outros, voltamos a casa e encerramos portas e janelas, e encerramo-nos, isolamo-nos, distanciamo-nos uns dos outros. Talvez se tenha criado, com a pandemia, uma oportunidade para avaliar prioridades. Talvez!

2 – São João, no Evangelho, faz-nos regressar ao primeiro dia da semana, dia de Páscoa, pela tarde. As portas fechadas. Lá dentro os discípulos com medo do que lhes possam fazer os judeus. Então vem jesus e apresenta-Se no meio deles: «A paz esteja convosco». Uma paz que vem de dentro e se alicerça no amor.

Ficam atónitos. Jesus mostra-lhes as mãos e o lado e a alegria regressa àquela casa. Diz-lhes novamente Jesus: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». E logo soprou eles: «Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».

3 – São Lucas, na segunda leitura, diz-nos que no Dia de Pentecostes, cinquenta dias depois da Páscoa, os Apóstolos estavam no mesmo lugar. Deduzimos que se mantivessem discretamente recolhidos, com receio do que lhes pudesse suceder, à espera, como víamos na Ascensão, que do Céu viessem respostas clarividentes e que Deus transformasse o mundo por inteiro, colocando-os num pedestal!

Eis que se faz ouvir, “vindo do Céu, um rumor semelhante a forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde se encontravam. Viram então aparecer uma espécie de línguas de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem”.

Aquela casa estava a precisar de arejar, de abrir portas e janelas; os discípulos, ainda a amadurecer a fé, acolhem com júbilo o Espírito Santo. Doravante viverão com o Espírito de Deus e segundo a vontade do Senhor. Como Maria, na Anunciação, cheia da graça de Deus para dar Deus ao mundo. Agora, os discípulos, imbuídos do Espírito de Deus para viverem segundo a Sua vontade.

Enquanto vivem segundo os seus espíritos, a suas vontades e caprichos, emerge o medo, a insegurança e a dúvida; quando se deixam guiar pelo Espírito, prevalece a coragem e a alegria, o testemunho e a confiança. Já não faz sentido estarem encolhidos, dobrados sobre si mesmos. Há que sair e anunciar o Evangelho. O Espírito Santo encontra os meios e o caminho para chegar a todos e por todos se fazer entender. É uma linguagem nova, a do amor e da fraternidade. Há línguas e gestos que todos percebemos.

4 – Desde a primeira hora que o Papa Francisco nos tem desafiado a sair. Uma Igreja em saída que corre o risco de tropeçar e cair, mas será sempre preferível a uma Igreja anquilosada, como água estagnada, raquítica e bafienta.

Aos jovens, o Papa desafia a levantar-se do sofá e ir ao encontro de outros jovens e das pessoas a necessitar de ajuda, de um abraço ou de um sorriso. A fé não nos isola, não nos instala, é manufaturável, exige o manuseio das mãos, de gestos concretos de ajuda.

O lema escolhido pelo Papa para a Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, em 2023: «Maria levantou-se e partiu apressadamente» (Lc 1, 39). Logo após a Anunciação, e depois de saber que Isabel estava grávida, Maria levantou-se e partiu apressadamente para a montanha, ao encontro da sua prima, para lhe levar a alegria e a ajuda de que necessitasse. Maria não pensa nos perigos. Não se preocupa consigo e o que terá pela frente, as justificações a dar e os trabalhos em que se poderá meter. Pensa em Isabel e vai. Não fica estupefacta a meditar em tudo quanto acabou de acontecer e no que significará a sua vida dali em diante. Levanta-se, vai, parte, como mensageiro veloz pelas montanhas a anunciar a paz.

É esta a atitude de quem encontra Jesus Cristo, de quem tem a vida preenchida do Espírito de Deus. Não há portas nem janelas, não há sofás nem cadeirões. Há que levantar-se para anunciar o Evangelho, usando uma linguagem que brote do coração e traduza amor.

Precisamos de abrir os olhos, sobretudo o olhar do coração; precisamos de escutar mais e melhor, perscrutando a vida daqueles e daquelas que Deus faz cruzar connosco, e de caminhar juntos, para não nos perdermos, não nos transviarmos; precisamos de ser mais humildes, para reconhecer a bondade de Deus que se manifesta nos outros, acolhendo diferenças e dons; precisamos de rezar, mais, melhor, em comunhão, de coração disponível para acolher a vida e fazer frutificar o amor.

5 – São Paulo faz-nos ver que só o Espírito Santo nos faz cristãos, nos converte, nos transforma em discípulos missionários. Enquanto persistirmos no nosso egoísmo, em fazer as coisas à nossa maneira, como nos dá na real gana, impondo a nossa vontade, o nosso apetite e as nossas aspirações, corremos o sério risco de ficarmos encerrados, dentro de portas, fechando-nos aos outros, adoecendo de tédio e de solidão!

É o Espírito do Senhor que nos faz novas criaturas, que nos inspira a sair de nós ao encontro dos outros, a professar a fé em Jesus, Deus connosco, a saber-nos e sentir-nos filhos amados de Deus, irmãos uns dos outros.

“Ninguém pode dizer «Jesus é o Senhor» a não ser pela ação do Espírito Santo”.

A fraternidade, com efeito, não é tanto conquista nossa, mas é, antes de mais, dom de Deus, que é Pai e nos assume como filhos, em Jesus Cristo. Daí que os dons recebidos sejam para benefício de todos. “Há diversidade de dons espirituais, mas o Espírito é o mesmo. Há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. Há diversas operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. Em cada um se manifestam os dons do Espírito para o bem comum. Assim como o corpo é um só e tem muitos membros e todos os membros, apesar de numerosos, constituem um só corpo, assim também sucede com Cristo. Na verdade, todos nós – judeus e gregos, escravos e homens livres – fomos batizados num só Espírito, para constituirmos um só Corpo. E a todos nos foi dado a beber um único Espírito”.

Vivendo segundo o nosso espírito, ou o espírito de outros, lutaremos pela nossa a auto-preservação, protegendo os nossos interesses, defendendo-nos em relação aos outros; prevalecendo o Espírito Santo, vivendo segundo o espírito cristão, ao jeito de Jesus, emergirá a partilha solidária, o empenho social pelo bem de todos, na certeza que há mais alegria em dar do que em receber, certos de que quando os outros estão bem, também nos sentiremos felizes e realizados.

6 – Se Deus nos precede e sustenta as nossas opções, então a oração terá que ser uma prioridade na nossa vida, para sintonizarmos a nossa vontade com a vontade de Deus. “Deus do universo, que no mistério do Pentecostes santificais a Igreja dispersa entre todos os povos e nações, derramai sobre a terra os dons do Espírito Santo, de modo que também hoje se renovem nos corações dos fiéis os prodígios realizados nos primórdios da pregação do Evangelho”.

A oração dilata o nosso coração para acolhermos Deus e para n’Ele nos entendermos como irmãos, e contribuirmos, assim, para um mundo mais justo, mais humano e saudável. “Enviai, Senhor, o vosso Espírito e renovai a face da terra. A terra está cheia das vossas criaturas. Se lhes tirais o alento, morrem e voltam ao pó donde vieram. Se mandais o vosso espírito, retomam a vida e renovais a face da terra”.

Quem ama a Deus, quem está preenchido, como Maria, da graça de Deus, tem de ter o coração do tamanho de Deus para amar todos. Sublinhe-se, contudo, que o universal tem concretização no particular. Também Deus Se fez homem, encarnou num tempo determinado, num espaço, num povo, numa família específica. Não vale amar o mundo inteiro se não amares a pessoa que vive contigo, trabalha ao teu lado, se senta junto de ti. Seria absurdo amar todo o mundo, sem amar ninguém. O primeiro passo para Deus: amar quem está ao teu lado!

Pe. Manuel Gonçalves


Leituras para a Eucaristia: Atos 2, 1-11; Sl 103 (104); 1 Cor 12, 3b-7. 12-13; Jo 20, 19-23.