Domingo I da Quaresma – ano A – 1 de março de 2020

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Domingo I da Quaresma – ano A – 1 de março de 2020

1 – O deserto e o pó que nos liga à terra e aos outros!

Jesus é impelido pelo Espírito Santo. Permanentemente. O deserto é, no imaginário e na realidade, um lugar inóspito, um lugar de encontro, de passagem, é um lugar provisório. É espaço e tempo de encontro consigo mesmo e com Deus. Aqui já dois sentidos, o físico e o espiritual. Na verdade, o deserto é inabitável, ainda que os beduínos resistam a tamanha adversidade! É um lugar de excessos! Excesso de calor e/ou excesso de frio. Dia e noite! O calor quase visível, que cria miragens, ilusões, ou as tempestades de areia que podem fazer desaparecer uma pessoa.

Numa dimensão mais espiritual, o deserto significa o silêncio que se faz para se encontrar consigo mesmo, o retiro, o tempo de pausa, ou também os momentos em que a vida parece uma batalha cheia de contrariedades. Vale a pena, uma vez mais, retomar as palavras do Papa Bento XVI, aquando do início do seu pontificado (24/04/2005): «Tantas formas de deserto. Há o deserto da pobreza, o deserto da fome e da sede, o deserto do abandono, da solidão, do amor destruído. Há o deserto da obscuridão de Deus, do esvaziamento das almas que perderam a consciência da dignidade e do caminho do homem. Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores tornaram-se tão amplos. Por isso, os tesouros da terra já não estão ao serviço da edificação do jardim de Deus, no qual todos podem viver, mas tornaram-se escravos dos poderes da exploração e da destruição».

2 – Jesus foi ao deserto conduzido pelo Espírito. Antes de iniciar a vida pública, depois do Batismo, quarenta dias de jejum. Sentiu fome e foi tentado pelo demónio. A tentação, a fragilidade e o medo, o cansaço, a incompreensão e a revolta, as adversidades, a solidão e a dúvida perante as escolhas a fazer, o desencanto, o desencontro e a desilusão em relação algum aspeto da vida familiar, profissional ou social, fazem parte da vida, da minha e da tua vida, e da vida de Jesus.

Quais a tentações mais fortes que experimentamos na nossa vida?

A tentação de contarmos apenas connosco, de usarmos os outros ou as instituições em nosso proveito, de valorizamos o que temos e agirmos em função (exclusiva) dos lucros que possamos ter, o recurso a engodos, meias-verdades, ludibriando os outros em função dos nossos interesses, o colocar-nos como centro do mundo. E a desistência! De projetos e (sobretudo) de pessoas!

O tentador aproximou-se de Jesus, sorrateiramente: «Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães… Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo, pois está escrito: ‘Deus mandará aos seus Anjos que te recebam nas suas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’… Tudo isto Te darei, se, prostrado, me adorares». A tentação do facilitismo e do deslumbramento, do poder, das seguranças materiais, dos efeitos mágicos!

3 – Como é que Jesus lida com as tentações? Como é que superamos as tentações?

É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. É em comunidade, em caminho e em comunhão, que teremos a capacidade para enfrentar as tentações, superar os medos e egoísmos, para lidarmos com a solidão e com a incerteza e, em caminho e comunhão, nos abrirmos à graça e às surpresas de Deus, deixando-nos reconciliar por Ele, deixando-nos ajudar pelos outros e ajudando-os.

Jesus não está só. O deserto não é a procura de solidão, não significa fuga do mundo; para Jesus é tempo de graça, de encontro, de descoberta, de proximidade e de confiança no Pai. É o Espírito que O conduz. O deserto é um tempo de pausa interior, sem distrações, sem luzes artificiais nem ruídos que nãos sejam o da aragem e do vento. No deserto, Jesus quer ficar mais próximo do Pai, sentir o Seu Espírito, num diálogo íntimo, umbilical. Quanto maior a árvore, maior as raízes e a procura de alimento. Quanto maior a missão, maior a oração, a comunhão com Deus.

Jesus faz caminho connosco, exemplifica com as palavras e com a vida, a fidelidade ao amor, a fidelidade a Deus: «Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus… Não tentarás o Senhor teu Deus… Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto».

 

4 – “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, insuflou em suas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivo”.

Vale a pena retomar, reter e refletir as palavras do Papa Francisco, na última quarta-feira. Partindo da expressão própria do início da Quaresma – Lembra-te que és pó da terra e à terra hás de voltar (cf. Gn 3, 19) – o Papa sublinha que a imposição das cinzas nos faz ter os pés assentes na terra, reconhecendo a nossa fragilidade. Somos pó da terra, mas pó amado por Deus. O Senhor recolheu o nosso pó e insuflou nele o Seu sopro de vida. “O pouco que somos, aos olhos d’Ele tem um valor infinito. Nascemos para ser amados. Somos a terra sobre a qual Deus estendeu o Seu céu, o pó que contém os seus sonhos… A Cinza pousa sobre a nossa cabeça, para que, nos corações, se acenda o fogo do amor”. Assim sendo, é preciso que o pó e o pecado sejam sacudidos, para que o Senhor nos ressuscite das nossas cinzas!

O Senhor Deus cuidou para que não nos faltasse nada. “Plantou um jardim no Éden, a oriente, e nele colocou o homem que tinha formado. Fez nascer na terra toda a espécie de árvores, de frutos agradáveis à vista e bons para comer, entre as quais a árvore da vida, no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal”.

Deus não nos abandona no jardim, mas respeita a nossa liberdade, as nossas opções, leva-nos a sério. Confia em nós. Cabe-nos ponderar, refletir, avaliar, escolher qual o caminho que nos salva, nos faz sentir pessoas e com quem contamos para prosseguir!

A partir do momento em que nos centramos apenas em nós, dispensando os outros, afastando Deus, começamos a descarrilar. O pecado não é, tanto, comer o fruto da árvore, sublinha o nosso Bispo, ma é, antes de mais, não o partilhar, é procurar açambarcar tudo para mim, para nós, como se o mundo fosse acabar ou só nós coubéssemos dentro dele. Precisamos de derrotar a serpente que se intromete nos nossos propósitos e na nossa identidade batismal, precisamos de sacudir o pó da soberba, da hipocrisia e do egoísmo, precisamos de deixar que o fogo de Deus vença as cinzas que nos matam.

5 – No plano original de Deus, e não poderia ser de outro modo, um jardim, com tudo o necessário para uma vida feliz e harmoniosa, em que o ser humano assume a responsabilidade de cuidar, sendo responsável por toda a obra da criação, a começar pelos que lhe são semelhantes.

Por melhor que um plano seja desenhado, há sempre a possibilidade da execução não corresponder (inteiramente) ao original.

São Paulo, na Epístola aos Romanos, sublinha como o plano amoroso de Deus embateu com a liberdade humana, em Adão e Eva, e como, na Sua infinita bondade, Deus não desistiu do ser humano, continuando a acreditar em nós, a apostar em nós, até nos dar o Seu próprio Filho, Jesus Cristo, para n’Ele nos deixarmos reconciliar.

“Se a morte reinou pelo pecado de um só homem, com muito mais razão, aqueles que recebem com abundância a graça e o dom da justiça, reinarão na vida por meio de um só, Jesus Cristo. Porque, assim como pelo pecado de um só, veio para todos os homens a condenação, assim também, pela obra de justiça de um só, virá para todos a justificação que dá a vida”.

Em Jesus, Deus mostra que o amor é mais forte e que não prevê a desistência. Deus acredita em mim. Acredita em ti. Aposta em nós. Como lhe respondemos?

6 – O tempo da Quaresma reforça em nós a consciência da nossa fragilidade e do pó que vamos acumulando na nossa vida. Mas é muito mais do que isso, aviva a memória do amor de Deus, impelindo-nos a sacudir o pó que esconde a beleza e a alegria, o amor e a bondade, e a deixarmo-nos reconciliar por Ele!

O salmo, com que respondemos à Palavra de Deus, sintoniza-nos com o desejo e propósito de acolhermos a reconciliação que Ele nos dá. “Compadecei-Vos de mim, ó Deus, pela vossa bondade, pela vossa grande misericórdia, apagai os meus pecados. Lavai-me de toda a iniquidade e purificai-me de todas as faltas. Criai em mim, ó Deus, um coração puro e fazei nascer dentro de mim um espírito firme. Não queirais repelir-me da vossa presença e não retireis de mim o vosso espírito de santidade. Dai-me de novo a alegria da vossa salvação e sustentai-me com espírito generoso. Abri, Senhor, os meus lábios e a minha boca cantará o vosso louvor”.

A súplica leva-nos a refletir sobre o caminho feito e sobre as escolhas que moldam a nossa vida: “Eu reconheço os meus pecados e tenho sempre diante de mim as minhas culpas. Pequei contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos”. Mas é apenas um momento, pois reconhecermos humildemente os nossos pecados e limitações, permite-nos dar um passo em frente, acolhendo a misericórdia de Deus que ilumina o nosso caminho.

 

Pe. Manuel Gonçalves

Textos para a Eucaristia (ano A): Gen 2, 7-9 – 3, 1-7; Sl 50 (51); Rom 5, 12-19; Mt 4, 1-11.