Domingo II da Quaresma – ano B – 28 de fevereiro de 2021
1 – «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O». Esta é a voz que importa perscrutar constantemente. Vem das alturas, vem de Deus, mas aproxima-nos. Quando alguém fala, mesmo com os melhores sistemas de som, tendemos aproximar-nos dessa pessoa, até para percebermos melhor os gestos, as nuances, a inflexão de voz. Neste tempo de pandemia, vamos aproximando o rosto e o olhar de ecrãs, mas o desejo é aproximar-nos (também fisicamente) das pessoas, absorver o olhar, o toque, o aperto de mão, o aroma, as expressões do rosto e do corpo.
Com tantas vozes, tanto ruído, tanta gente a falar de tudo como se de tudo todos percebessem muito, tanta vozearia, que se torna difícil escolher o que ouvir, ou melhor, quem ouvir. Todos temos conselhos a dar. Talvez todos tenhamos conselhos a receber. E é bom reconhecer que precisamos de escutar e de confrontarmos as nossas vivências com quem nos quer bem. Quem não tem nada para escutar, quem não precisa de ninguém, quem caminha sozinho… perdeu-se no caminho ou não tardará a perder-se. Neste barco, continuámos a contar reciprocamente com todos.
Será que ouvimos bem? Mas que é isto no meio de tantas profecias, de tantas acusações, ameaças, de tantas propostas e de caminhos fáceis? «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
2 – Nas águas do Rio Jordão, a voz vinda do Céu, vinda do Pai, já se tinha feito ouvir e a mensagem é a mesma: a predileção pelo Filho e o desafio para que olhemos para Ele e O escutemos. No deserto, é Jesus que escuta a voz do Pai, através do Espírito Santo, que O conduz em todo o tempo. Agora, subimos com Jesus à montanha, discípulos e apóstolos deste tempo, e é-nos dado ver, num vislumbre, a beleza da eternidade, a certeza da ressurreição, o Céu aberto, a palavra final.
Há pessoas que, em alguns momentos da vida, fazem a experiência deste vislumbre. E depois existem os místicos que percecionam a realidade divina de uma forma (quase) palpável. Àqueles três Apóstolos, Tiago, Pedro e João, foi-lhes dado ver a realidade inaudita da vida eterna. É um momento que eles guardarão para tempos mais adversos, ainda que fraquejem outras vezes.
Jesus tinha anunciado a Sua morte. Sem medo nem resignação! Nem lamentos. Apenas a certeza que vai ser morto. Sabe-o. Não é tempo para Se esconder, é tempo para Se revelar inteiramente ao mundo. E isso provoca a inveja e a perseguição e, logo, provocará a morte. Jesus vive em paz. Vinde a Mim, vós que andais cansados e oprimidos, Eu vos aliviarei, aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração. Olhando para o coração dos Seus discípulos e para o medo crescente que vêm sentido, Jesus garante-lhe que o Calvário, a Cruz, a morte, não terá a última palavra, essa é de Deus, essa é da vida abundante.
Deixemos, então, que a voz do Pai ecoe no nosso coração: «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O». É o primeiro dos mandamentos, escutar o Senhor Deus, adorá-l’O sobre todas as coisas, amá-l’O antes e acima de tudo. E nisto reside a felicidade que não terá fim. Escutar, implica seguir Jesus e viver segundo os Seus ensinamentos, segundo a Sua vida, dada, gasta, oferecida pelos irmãos.
3 – A experiência de Jesus no deserto, fazem-na os Seus Apóstolos no alto do monte. «Mestre, como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias». É a experiência que fazemos na oração, especialmente na Eucaristia, o encontro com a vida eterna, com o Céu aberto, com a voz do Pai, com a inspiração do Espírito de Amor, inundados com a luz que irradia de Jesus.
“Deus de infinita bondade, que nos mandais ouvir o vosso amado Filho, fortalecei-nos com o alimento interior da vossa palavra, de modo que, purificado o nosso olhar espiritual, possamos alegrar-nos um dia na visão da vossa glória”.
Alimentados e preenchidos de Deus, cabe-nos, não cruzar os braços, ou esperar melhores dias, mas descer, dos nossos egoísmos e prepotências, dos nossos comodismos, e comunicar vida, paz e esperança aos outros, bênção e alegria, e ajudá-las em tudo o que está ao nosso alcance.
4 – A confiança em Deus é chão seguro que nos permite caminhar, mesmo e apesar das dificuldades do caminho. Com Abraão aprendemos a máxima entrega e confiança nas mãos de Deus. Abraão é tocado pela graça de Deus, a Quem entrega e confia o Seu próprio filho.
Nada se entrepõe entre Abraão e Deus. E tamanha confiança, como não poderia deixar de ser, resulta em vida em abundância. E nada se entrepõe entre Deus e nós, a não ser o nosso egoísmo e as nossas reservas.
Diz-nos o Apóstolo: “Se Deus está por nós, quem estará contra nós? Deus, que não poupou o seu próprio Filho, mas O entregou à morte por todos nós, como não havia de nos dar, com Ele, todas as coisas? Quem acusará os eleitos de Deus, se Deus os justifica? E quem os condenará, se Cristo morreu e, mais ainda, ressuscitou, está à direita de Deus e intercede por nós?”
No deserto, Jesus mostra-nos como a intimidade com o Pai O prepararam para Se entregar, por opção, como caminho, por inteiro, para nos salvar. A vida não Lhe é tirada, Ele oferece-a em oblação por mim, por ti, por nós. A Deus não interessam os nossos sacrifícios, mas o nosso amor, a resposta que Lhe damos no cuidado aos outros. Se amarmos, de todo o coração, ao jeito de Jesus, ao jeito de Abraão, nada se entreporá entre nós e Deus e entre Deus e a nossa vida.
5 – Na primeira leitura o autor sagrado diz-nos que Deus colocou Abraão à prova: «Toma o teu filho, o teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à terra de Moriá, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que Eu te indicar».
Seria impensável um Deus que precisasse de provas e de sacrifícios, muito menos que, para Lhe provarmos confiança, “destruíssemos” a vida daqueles que Ele criou por amor. Mas como pode pedir a Abraão que Lhe ofereça, em holocausto, o seu filho único? Se nos fosse feito tal pedido, logo duvidaríamos da grandeza de Deus! Abraão, contudo, confia em Deus, a sua vida e a vida do seu filho. Se Deus tudo lhe deu, então tudo é de Deus, também o seu filho Isaac é de Deus. Prevalece a confiança de Abraão: se Deus me deu Isaac por filho, e se Ele me chamou à vida e me mantém vivo, então não lhe ofereço o que é meu, mas o que Lhe pertence. Visualiza-se e realiza-se o desapossamento (não-posse), de uns em relação aos outros. Só Deus é Deus. Pertencemo-nos, mas não temos posse sobre os outros, ainda que sejam nossos filhos. Diante de Deus, somos todos filhos, somos irmãos (fratelli tutti).
Por outro lado, ficamos certos que Deus não quer a nossa morte ou a nossa infelicidade. «Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças mal algum. Agora sei que na verdade temes a Deus, uma vez que não Me recusaste o teu filho, o teu filho único».
Abraão percebe, então, contrariamente ao costume de povos vizinhos, que Deus não precisa e não quer sacrifícios humanos. Deus é Senhor da Vida, do tempo e da história. E Deus remata, dizendo: «Abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar, e a tua descendência conquistará as portas das cidades inimigas. Porque obedeceste à minha voz, na tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra».
Mesmo a morte nada é diante do amor, da vida, da vontade de Deus. Tememos a morte; Deus chama-nos à vida, a vivê-la com alegria, confiantes, não nos resguardando com reservas e condições, Ele vai adiante, iluminando o caminho; vai ao nosso lado, incentivando-nos a caminhar; vai atrás de nós, se cairmos e precisarmos de ânimo para nos levantarmos. Ele não desiste de nós. Podemos levantar a mão para o filho, para o irmão, para o pai ou a mãe, para a esposa ou o marido, mas estamos certos que isso é contrário à vontade amorosa de Deus.
6 – Subamos com Abraão ao alto do monte e descubramos como Deus nos abençoa e quer que tenhamos vida e vida em abundância. Ele sacrifica o Seu filho, mas não sacrifica os nossos filhos. Ele dá-Se por inteiro em Jesus, para nos remir e salvar. A Abraão revela a bênção para toda a humanidade.
Junto de Jesus, no alto do monte, descobrimos que Deus está no meio de nós e que o caminho para Deus é o Seu Filho Jesus. Escutá-l’O, de todo o coração, viver como Ele nos ensina, como irmãos, para construirmos n’Ele e por Ele, fraternidade, cumprindo, desse modo, o sonho que nos humaniza e nos faz amar-nos uns aos outros, dando a vida, gastando a vida, não porque no-la tiram, mas porque, como Jesus, a gastamos para que os outros tenham vida abundante. Se todos fizermos de igual forma… seremos todos mais felizes e estaremos mais bem preparados para juntos ultrapassarmos as dificuldades e nos iluminarmos mutuamente. É assim a luz da fé. A minha fé ilumina, se a tua fé traz luz à minha vida, acrescenta exponencialmente a luz que nos ilumina a ambos.
Sejamos bênção e luz uns para os outros.
Pe. Manuel Gonçalves
Leituras para a Eucaristia (ano B): Gen 22, 1-2. 9a. 10-13. 15-18; Sl 115 (116); Rom 8, 31b-34; Mc 9, 2-10.