Domingo III da Quaresma – ano A – 15 de março de 2020

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Domingo III da Quaresma – ano A – 15 de março de 2020

1 – Fomos com Jesus ao deserto, para com Ele nos colocarmos em modo de oração, deixando que a Palavra de Deus ressoasse na nossa vida; fomos com Jesus à montanha, para O vermos transfigurar-Se e contemplarmos o Seu rosto divino, sendo então desafiados pela voz do Pai: este é o Meu Filho muito amado, escutai-O; hoje somos convidados a ir com Jesus ao poço de Jericó para percebermos a nossa sede e sabermos  o que pode saciar a nossa vida!

Deserto, montanha e poço de Jacob! Lugares retirados do bulício da cidade e da azáfama dos dias que correm! Lugares que nos fazem sair, caminhar, colocando-nos em movimento, predispondo-nos ao encontro. Não sabemos o que ou quem vamos encontrar! No deserto, Jesus está sozinho! Não, não! Está acompanhado pelo Espírito de Deus. Na montanha, está com os discípulos mais chegados, Pedro, Tiago e João; mas também o Céu está próximo, na voz do Pai, e na visibilidade de Moisés e Elias.

No poço de Jacob, em Sicar, está Jesus, em atitude de descanso e de oração, enquanto os discípulos se deslocam à cidade para arranjar alimentos. Poderíamos entrever aqui Maria e Marta, Jesus à escuta, a perscrutar a presença e a voz do Pai, através do Espírito Santo, e os discípulos a tratarem de coisas práticas mas necessárias! Mas aproxima-se outro encontro e outra fome! Ou sede!

2 – Jesus, cansado da caminhada – como tantas vezes nos acontece – sentou-Se à beira do poço de Jacob. Era, diz-nos o evangelista, por volta do meio-dia, portanto a meio do dia, a meio do caminho, a meio da vida, horas para retemperar forças (e verificar o caminho percorrido).

Aproximou-se uma mulher para tirar água do poço e o diálogo começa com o pedido de Jesus:

– Dá-Me de beber.

– Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber, sendo eu samaritana?

– Se conhecesses o dom de Deus e quem é Aquele que te diz: ‘Dá-Me de beber’, tu é que Lhe pedirias e Ele te daria água viva.

– Senhor, Tu nem sequer tens um balde, e o poço é fundo: donde Te vem a água viva? Serás Tu maior do que o nosso pai Jacob, que nos deu este poço, do qual ele mesmo bebeu, com os seus filhos e os seus rebanhos?.

– Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede. Mas aquele que beber da água que Eu lhe der nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der tornar-se-á nele uma nascente que jorra para a vida eterna.

– Senhor, dá-me dessa água, para que eu não sinta mais sede e não tenha de vir aqui buscá-la.

– Vai chamar o teu marido e volta aqui.

– Não tenho marido.

– Disseste bem que não tens marido, pois tiveste cinco e aquele que tens agora não é teu marido. Neste ponto falaste verdade.

– Senhor, vejo que és profeta. Os nossos antepassados adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar.

– Mulher, acredita em Mim: Vai chegar a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas vai chegar a hora – e já chegou – em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são esses os adoradores que o Pai deseja. Deus é espírito e os seus adoradores devem adorá-l’O em espírito e verdade.

– Eu sei que há de vir o Messias, isto é, Aquele que chamam Cristo. Quando vier, há de anunciar-nos todas as coisas.

– Sou Eu, que estou a falar contigo.

3 – Vemos como, pouco a pouco, a comunicação se aprofunda. Jesus não começa a ensinar ou a chamar a atenção para as diferenças entre judeus e samaritanos, ou a discutir sobre quem vive na religião verdadeira. Em nenhum momento o faz. Mete conversa de forma simples e banal, pedindo água para matar a sede. A partir daí, perguntas e respostas, e comentários, aproximam os dois interlocutores. Jesus não dá respostas/receitas prontas, mas interpela, sugere, introduz-Se na história desta samaritana.

A sede de Jesus é saciar a sede e a procura desta mulher. A sede desta mulher vinha a ser disfarçada com uma vida feita de encontros e desencontros, sem um sentido que a conduzisse mais à frente. Descobre que Aquele homem, um judeu/galileu, pode afinal ser mais, muito mais do que aparenta. Se eram inimigos, o diálogo mostra que podem respeitar-se mutuamente! Se eram estranhos, passam a contar um para o outro, como se verá logo a seguir. Jesus não esteve sozinho, não descansou, mas afinal está feliz, alimentado, sem fome. A samaritana esquece-se de tirar a água do poço e vai rapidamente à cidade anunciar Quem viu e o que ouviu!

O anúncio desta mulher, e a convicção com que o faz, atraem outros para Jesus, para O conhecerem, para O ouvirem e, eventualmente, O seguirem. Os que vêm deixam-se tocar pela Sua presença e pelas Suas palavras, pedindo-Lhe que permaneça entre eles. E Jesus fica lá dois dias. E, então, dizem à mulher: «Já não é por causa das tuas palavras que acreditamos. Nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é realmente o Salvador do mundo».

4 – Há outro encontro prestes a acontecer, de Jesus com os Seus discípulos regressados da cidade. Os discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos, pois já eram horas de comer. Chegam e admiram-se por estar a falar com uma mulher e, para mais, uma samaritana. Mas não se atrevem a perguntar, apenas insistem para que Ele coma: «Mestre, come». As respostas de Jesus deixam-nos admirados: «Eu tenho um alimento para comer que vós não conheceis».

Mas de quê alimento está Jesus a falar? Alguém Lhe terá trazido comida?

«O meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou e realizar a sua obra. Não dizeis vós que dentro de quatro meses chegará o tempo da colheita? Pois bem, Eu digo-vos: Erguei os olhos e vede os campos, que já estão loiros para a ceifa. Já o ceifeiro recebe o salário e recolhe o fruto para a vida eterna e, deste modo, se alegra o semeador juntamente com o ceifeiro. Nisto se verifica o ditado: ‘Um é o que semeia e outro o que ceifa’. Eu mandei-vos ceifar o que não trabalhastes. Outros trabalharam e vós aproveitais-vos do seu trabalho».

No poço de Jacob, Jesus pediu de beber! À Samaritana e também a nós, a mim e a ti! Afinal, eu e tu, e a samaritana, é que tínhamos sede, uma sede tão intensa que só poderá ser saciada por Jesus, com palavras de vida eterna que dão sentido a tudo o que somos e ao que fazemos. Jesus sentiu necessidade de comer e de descansar. Os discípulos vão à cidade, comprar alimento! Regressam e descobrem que Jesus já não precisa de descansar e já não tem apetite. A eles e a nós, a mim e a ti, Jesus diz o que verdadeiramente há de alimentar a nossa fome: fazer a vontade de Deus. Só em Deus a nossa vida não se perderá.

5 – Também o povo de Israel sentiu sede! E logo esqueceu Quem poderia saciar a sua sede, não apenas a sede biológica mas também o sentido e a orientação, o caminho para a paz!

A determinada altura, o povo achou que já não precisava de caminhar, de se esforçar, de fazer sacrifícios para encontrar o pão e as fontes! Se Deus os libertou, Deus que os sustente! É uma visão desligada, anquilosada e redutora da nossa relação com Deus, uma concepção distorcida da Providência divina. Job, cansado das “partidas” de Deus, desiste de caminhar. Deus alimenta-o, provisoriamente, não desiste dele. Jeremias, cansado de lutar, de anunciar a mensagem de Deus, desiste e pede mesmo para morrer, mas Deus não desiste e alimenta-o, provisoriamente, dá-lhe o ânimo para prosseguir, pois a jornada será longa.

O pão nosso de cada dia há de ser também fruto do nosso trabalho, sem secundarizar a “obrigatoriedade” da partilha pelos outros, especialmente os mais desfavorecidos.

Os membros do povo, atormentados pela sede, revoltam-se contra Moisés, o líder que, em nome de Deus, os liberou da escravidão e os guia pelo deserto para a terra prometida: «Porque nos tiraste do Egipto? Para nos deixares morrer à sede, a nós, aos nossos filhos e aos nossos rebanhos?».

E também assim, Deus usa de paciência e responde favoravelmente ao povo, dando instruções a Moisés: «Passa para a frente do povo e leva contigo alguns anciãos de Israel. Toma na mão a vara com que fustigaste o Rio e põe-te a caminho. Eu estarei diante de ti, sobre o rochedo, no monte Horeb. Baterás no rochedo e dele sairá água; então o povo poderá beber».

Deus não responde com indiferença, com revolta, mas com a amor e paciência. Ele aguarda que percebamos que o Seu amor é o maior alimento, que nos responsabiliza uns pelos outros, nos compromete a trabalhar pelo pão de cada dia.

6 – Deserto, montanha, poço de Jacob. Oração, transfiguração, conversão.

Em diferentes situações, Jesus faz-nos olhar para o alto, para o nosso interior, para o diálogo com Deus, mas sem nos paralisar no espiritualismo alheado da vida. O deserto é um interregno, melhor, um continuum que sublinha o chão, o ponto de partida, para a missão. A fonte, a raiz, que sustenta a missão: a oração, a Palavra de Deus. Do deserto para a cidade! Da montanha, da luz e da contemplação, para o meio das pessoas, para o caminho até ao Calvário! De junto do poço, para o anúncio da Boa Nova!

O Apóstolo, na segunda leitura, situa-nos na origem da nossa vida cristã. “Tendo sido justificados pela fé, estamos em paz com Deus, por Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual temos acesso, na fé”. E prossegue, dizendo: “Quando ainda éramos fracos, Cristo morreu pelos ímpios no tempo determinado… Deus prova assim o Seu amor para connosco: Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores”.

Com Maria, peçamos ao Senhor que nos dê sede e fome da Sua presença e do Seu amor.

Pe. Manuel Gonçalves

Textos para a Eucaristia (ano A): Ex 17, 3-7; Sl 94 (95); Rom 5, 1-2. 5-8; Jo 4, 5-42.