Domingo VI do Tempo Comum – ano A – 2023
1 – «A vossa linguagem deve ser: ‘Sim, sim; não, não’. O que passa disto vem do Maligno».
Bem-aventurados os transparentes porque deles será o reino dos Céus. Há a ideia que devemos reservar informações para nós, não dizermos tudo, calarmos, pois, os outros não têm que saber da nossa vida, não precisam de saber o que nós sabemos e porque quem controla a informação controla o poder, controla os outros. Ideia romântica de mantermos o mistério acerca de nós, para captar a curiosidade e a atenção dos outros. Porém, ser transparente não anula o mistério que nos caracteriza como pessoas e, por outro lado, o mistério e o misticismo com que queremos prender o outro, cedo se desvanecerão. Não será tanto o mistério, mas os segredos, as reservas, o escondimento! Como todo o bom segredo, desfaz-se quando é revelado, e chegará a altura em que a outra pessoa se cansa de esperar ou simplesmente falta o essencial: a amizade, o amor, a cumplicidade.
A linguagem também diz a pessoa. Quem é transparente, não precisa de jurar. E não adianta jurar perante quem não está disposto a escutar ou a confiar.
O Mestre dos Mestres, no Sermão da Montanha, aponta para um ideal, não impossível ou distante, mas como caminho, procura, compromisso, resiliência. Com facilidade, olhamos mais para o que nos é proibido, para o que não podemos fazer, para o que nos está interdito; mas o que nos humaniza é o que nos irmana, as possibilidades imensas que temos de dizer e fazer o bem, deixando que a nossa vida seja preenchida do amor de Deus, embelezando-a, vivendo a e concretizando-a no amor aos outros.
O amor nunca é uma prisão! O amor tem asas, torna-nos mais leves, mais alegres e felizes. O amor aproxima-nos, torna-nos iguais, torna-nos irmãos. O amor faz abrir todos os nossos poros para nos darmos e respirarmos a vida. O que nos prende é o medo de perder, a confiança traída, é a possibilidade de não sermos correspondidos; o que nos aprisiona é a falta de confiança no outro, o egoísmo, a posse! Quem se sente preso, fica por obrigação, por pena ou por compaixão, ou à espera de oportunidades mais desafiadoras/compensadoras! Quem fica porque ama, não tem motivos para fugir, para se esconder. Quem ama permanece, compromete-se, enraíza-se na vida dos outros e na transformação do mundo, para o tornar habitável, saudável e favorável para aqueles que ama. É o que faz Deus, em Jesus Cristo, vem habitar, vem para permanecer, amando.
2 – As leis servem de orientação e de aviso. Na elaboração das normas e dos preceitos está a preocupação de ajudar as pessoas a viverem melhor, a criarem harmonia na comunidade, a sentirem-se mais seguras no seu agir. As leis são produzidas a partir das dificuldades encontradas, de situações de conflito, do que correu mal, a partir da experiência vivida, procurando evitar situações que fizeram, ou fazem, sofrer as pessoas e que destruturam a convivência saudável dentro da comunidade.
Em absoluto, as leis seriam desnecessárias se fôssemos perfeitos e omniscientes, sabendo em cada momento o que era melhor para todos e “adivinhando” as reações dos outros. Neste caso, só sendo deuses ou marionetas!
A delicadeza de Jesus, a abertura com que lida com todos, a proximidade aos mais pobres, doentes, publicanos, pecadores, mulheres e crianças, estrangeiros, poderia fazer-nos entrever uma anarquia, uma sociedade sem leis. Este ideário é, aliás, referenciado a Confúcio, que defendia uma sociedade sem leis, baseada em princípios éticos sólidos. Em todo o caso, os princípios éticos têm também uma formulação “legislativa”, não tanto pela imposição ou pelas penalizações, mas por valores que orientam as pessoas para o bem, dispensando castigos ou coimas. Ama e faz o que quiseres, diz-nos Santo Agostinho, pois quem ama não se centra em si mas no bem do outro, da pessoa amada.
No Sermão da Montanha, Jesus coloca o acento tónico no amor, na misericórdia, na procura sincera e persistente em beneficiar o próximo, mesmo que isso implique sacrifício e sofrimento para aqueles que se envolvem a dar o melhor de si mesmos.
Jesus não vem revogar a Lei ou os Profetas, mas levar à plenitude, asseverando o seu cumprimento, não como peso, mas como superação e compromisso. Imediatamente, Jesus contrapõe aos mínimos legalistas o esforço constante por viver em lógica de serviço e doação.
3 – O que ouvistes aos antigos, renova-se, reformula-se, preenche-se de vida e de amor. Eu, porém, digo-vos: «Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos Céus… Todo aquele que se irar contra o seu irmão será submetido a julgamento. Quem chamar imbecil a seu irmão será submetido ao Sinédrio, e quem lhe chamar louco será submetido à geena de fogo».
Do mínimo respeitador, legal, cumpridor, ao máximo inclusivo, caritativo e misericordioso. «Se fores apresentar a tua oferta ao altar e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão e vem depois apresentar a tua oferta».
O incisivo: não esperes que quem te fez mal venha pedir perdão, vai tu ao seu encontro e procura saber as razões e sobretudo fazer com que regresse a paz e a harmonia. Não podemos apresentar-nos diante de Deus com razões de queixa! Tudo é transparente ao olhar de Deus, também os nossos desvios, amuos e pecados. Aproximar-nos d’Ele implica estarmos dispostos a deixar que o Seu olhar nos toque, nos ilumine e transforme.
Com efeito, Jesus quer que até o nosso olhar seja límpido, acolhedor, promotor de saúde. «Ouvistes que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que olhar para uma mulher com maus desejos já cometeu adultério com ela no seu coração».
As mãos como os olhos hã de permitir-nos amar e acolher a beleza que vem de Deus através dos irmãos.
4 – O sábio de Israel, na primeira leitura, apresenta os mandamentos como uma escolha entre a cultura da vida e a cultura da morte. Tal como Jesus, também o sábio apresenta a Lei como um desafio que caberá a cada um acolher. Com o desafio, clarificam-se as consequências das escolhas.
Diz Ben Sirá: «Se quiseres, guardarás os mandamentos: ser fiel depende da tua vontade. Deus pôs diante de ti o fogo e a água: estenderás a mão para o que desejares. Diante do homem estão a vida e a morte: o que ele escolher, isso lhe será dado. Porque é grande a sabedoria do Senhor, Ele é forte e poderoso e vê todas as coisas. Seus olhos estão sobre aqueles que O temem, Ele conhece todas as coisas do homem. Não mandou a ninguém fazer o mal, nem deu licença a ninguém de cometer o pecado».
Olhando para o mundo, podemos não compreender tudo o que sucede. O sismo que atingiu a Turquia e a Síria, coloca-nos dúvidas, inquietações e perguntas para as quais não temos resposta fácil. Porém, muito do que acontece no mundo resulta das escolhas de pessoas, grupos, países, líderes, como, por exemplo na guerra da Rússia contra a Ucrânia, cujas opções têm conduzido à destruição, à insegurança, e à morte de muitas pessoas.
5 – Por sua vez, o Apóstolo da Palavra fala da sabedoria que vem do alto. O tom é o de Cristo, a linguagem não visa iludir, criar suspense, ameaçar. É uma linguagem enformada pelo Espírito de Deus.
A eloquência e a retórica podem levar a um convencimento artificial, coagindo e prometendo o que não se pode dar. A sabedoria com que o apóstolo prega faz-nos olhar para a cruz, para a alegria e para a paz, não à custa da demissão, da indiferença, mas consequência da entrega, da doação e do sacrifício.
«Nós falamos da sabedoria de Deus, misteriosa e oculta… Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu; porque se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito, ‘nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem jamais passou pelo pensamento do homem o que Deus preparou para aqueles que O amam’. Mas a nós Deus o revelou por meio do Espírito Santo, porque o Espírito Santo penetra todas as coisas, até o que há de mais profundo em Deus».
A sabedoria não é conquista ou usurpação, é recebimento e acolhimento da graça de Deus que nos inspira, ilumina, preenche e nos compromete na missão. Foi assim com Paulo e será assim connosco se cooperarmos com o Espírito de Deus.
6 – Não somos ilhas isoladas, não carregamos, sozinhos, o mundo às costas; sozinhos vamos perto, perdemos a orientação e o sentido, desanimaremos e deixaremos de saber se estamos no caminho certo. Seguimos juntos com os outros, seguimos sob o olhar, a proteção e a bênção de Deus. Só assim os nossos esforços e compromisso serão viáveis e garantidos para lá do tempo, da história, das promessas e da finitude.
Rezamos confiantes: “Senhor nosso Deus, que prometestes estar presente nos corações retos e sinceros, ajudai-nos, com a vossa graça, a viver de tal modo que mereçamos ser vossa morada”.
Fazemos da oração um propósito, dirigindo o nosso olhar, o nosso coração e a nossa vida para Deus, e dispomo-nos a acolher a sua vontade, para, dessa forma, em nós e através de nós, se transforme o mundo que habitamos. Sintonizemos com o salmista: “Felizes os que seguem o caminho perfeito e andam na lei do Senhor. Felizes os que observam as suas ordens e O procuram de todo o coração. / Oxalá meus caminhos sejam firmes na observância dos vossos decretos. / Abri, Senhor, os meus olhos para ver as maravilhas da vossa lei. / Ensinai-me, Senhor, o caminho dos vossos decretos, para ser fiel até ao fim. Dai-me entendimento para guardar a vossa lei e para a cumprir de todo o coração”.
É este o sim que damos na oração, sabendo que para Deus somos sempre um sim, de graça, de bênção e salvação.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (A): Sir 15, 16-21 (15-20); Sl 118 (119); 1Cor 2, 6-10; Mt 5, 17-37.