Domingo VII do Tempo Comum – ano A – 23 de fevereiro de 2020

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Domingo VII do Tempo Comum – ano A – 23 de fevereiro de 2020

1 – Se vivêssemos segundo a lei de Talião, por mais justa que pudesse ser, seríamos (quase) todos cegos e desdentados. Jesus aponta um ideal que concretiza na Sua vida: o amor como perfeição e plenitude de toda a lei. Tal como há oito dias, Jesus faz-nos ver em contraponto entre o antes e o seguimento: «Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Olho por olho e dente por dente’».

Conhecida como lei de talião, olho por olho, dente por dente, significava uma grande evolução na justiça, pois defendia uma violência controlada e medida. Se alguém te faz mal, só podes devolver com a mesma moeda. Se te matam uma vaca, tens direito a ser ressarcido com outra; se matam um familiar teu, tens direito a matar um familiar do agressor ou a receber da sua parte alguém que fique como escravo para compensar a perda.

Porém, medir o grau de violência ou o que esta gera em cada pessoa não se afigura fácil. Sabemos que a violência, mesmo que seja resposta a uma ofensa, ou a uma atitude anterior de violência, por palavras e acusações, por gestos e agressões, desencadeia todo o tipo de reações. Não é viável uma lei de talião justa e equilibrada, há de haver sempre alguém a exceder-se, a acrescentar a intensidade da violência, a multiplicá-la. Como sublinha a história, a violência gera e amplia a violência, o mal praticado desencadeia, pela injustiça sentida, pela revolta, ou como reação espontânea, desencadeia vingança, rancor, ódio e destruição. Os países que passaram por guerras civis levam gerações a curar as feridas, porque há sempre alguém a vingar-se, a achar que a justiça ainda não está completa e com isso provoca novos focos de violência, numa espiral sem fim.

2 – «Eu, porém, digo-vos: Não resistais ao homem mau. Mas se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda. Se alguém quiser levar-te ao tribunal, para ficar com a tua túnica, deixa-lhe também o manto. Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas. Dá a quem te pedir e não voltes as costas a quem te pede emprestado».

No alto da Cruz ressoa o grito de Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. A resposta de Jesus à violência é de oração e de súplica, é de perdão e compreensão. Isso mesmo se vê ao longo da Sua vida pública. Aproxima-Se de todos, especialmente dos pobres, dos doentes e dos pecadores, dos excluídos, cuidando, perdoando, reabilitando. Ofendem-te? Perdoa! Uma e outra vez e outra ainda. Perdoa 70 vezes 7, perdoa sempre. É o caminho de Jesus, um caminho que nos faz passar, com Ele, pela Cruz. É o caminho do amor que nos redime, nos humaniza e que eterniza a nossa vida. É um amor sem fronteiras, sem a limitação do espaço ou do tempo, sobrevive-nos, supera-nos, faz-nos permanecer além da nossa morte e do nosso pecado, faz-nos entrar, melhor, acolher a vida de Deus.

«Ouvistes que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem, para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus; pois Ele faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos. Se amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem a mesma coisa os publicanos? E se saudardes apenas os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos?»

Nada menos que o máximo! O melhor! Não se ficar nos mínimos! Seguimos no alcanço de Jesus. Ele não vacila! Não é um caminho fácil! Pai, se é possível, se é conveniente, afasta de Mim este cálice! Contudo, não Se faça o que é mais fácil, faça-se a Tua vontade, o que salva, o que congrega, o que celebra o amor! Não voltes a costas ao necessitado! O que fizerdes ao mais pequenos dos meus irmãos é a Mim que o fazeis! Deus é Pai de todos, também daqueles de quem não gostamos (tanto), também daqueles que nos irritam!

«Portanto, sede perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito». Nada menos!

3 – O Deus que nos é revelado em Jesus Cristo é Pai. Pai de Jesus e Pai-nosso, Deus de Misericórdia, Deus próximo. Não é um Deus alheado, indiferente, distante! É Deus das surpresas, porque sempre nos surpreende e sempre nos desafia, mas não é um mágico que surge do nada, para assustar ou nos convencer, é Alguém que Se relaciona, Se aproxima, Se “retira” quando O recusámos, Se revela nos acontecimentos e nas pessoas, na história e no tempo. Aproxima-Se de mansinho, na brisa suave, através dos Seus anjos, ou através dos Profetas e outros chamados/enviados.

A proximidade de Deus depende de mim, depende de ti, depende sobretudo de nós! Ele está perto de cada um de nós. Como lia há dias, Ele é a nossa carótida, não damos por ela e, no entanto, é essencial à vida. Assim Deus. Não é invasivo, vem ao nosso encontro, faz-Se notar, mas respeita as nossas escolhas. Ora sussurra, ora Se faz ouvir. Através de Moisés, Deus fala ao Seu povo: «Sede santos, porque Eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo». E a santidade implica-nos com os outros: “Não odiarás do íntimo do coração os teus irmãos, mas corrigirás o teu próximo, para não incorreres em falta por causa dele. Não te vingarás, nem guardarás rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor”.

4 – Por um lado, temos consciência da distância que nos separa de Deus, mas igualmente a certeza que Deus nos santifica, não nos repelindo, mas fazendo-Se próximo.

O salmo ajuda-nos a exprimir louvor e gratidão. “Bendiz, ó minha alma, o Senhor e todo o meu ser bendiga o seu nome santo. Bendiz, ó minha alma, o Senhor e não esqueças nenhum dos seus benefícios”. O louvor apoia-se na confiança em Deus e na certeza da Sua misericórdia: “Ele perdoa todos os teus pecados e cura as tuas enfermidades; salva da morte a tua vida e coroa-te de graça e misericórdia. O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade; não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos castigou segundo as nossas culpas. Como o Oriente dista do Ocidente, assim Ele afasta de nós os nossos pecados; como um pai se compadece dos seus filhos, assim o Senhor Se compadece dos que O temem”.

Jesus é Quem nos revela, nos mostra Deus como Pai, mas como podemos ver, o Antigo Testamento vai-nos, pouco a pouco, faz-nos compreender e faz-nos ver a misericórdia e a compaixão de Deus que age como Pai que escuta o clamor do pobre.

5 – Por outro lado, recorda-nos o Apóstolo, há uma identidade original, Deus criou-nos por amor e por amor vem habitar no meio de nós, faz-Se morada em nós, pelo que as distâncias, em e por Cristo, ficam superadas. “Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destrói o templo de Deus, Deus o destruirá. Porque o templo de Deus é santo, e vós sois esse templo”.

Se cada um é templo do Espírito Santo, então estamos no mesmo barco, não estamos acima ou à parte, somos todos de Cristo, pertencemo-nos uns aos outros. “Ninguém tenha ilusões. Se alguém entre vós se julga sábio aos olhos do mundo, faça-se louco, para se tornar sábio. Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus… ninguém deve gloriar-se nos homens. Tudo é vosso: Paulo, Apolo e Pedro, o mundo, a vida e a morte, as coisas presentes e as futuras. Tudo é vosso; mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus”.

Vendo deste modo, então só a lei do amor faz sentido, só o amor nos eterniza e irmana: se fazemos mal ao outro ou não o tratamos bem, estamos a autodestruir-nos!

 

Pe. Manuel Gonçalves

Textos para a Eucaristia (ano A): Lev 19, 1-2. 17-18; Sl 102 (103); 1 Cor 3, 16-23; Mt 5, 38-48.