Domingo X do Tempo Comum – B – 2021
1 – «Eis minha Mãe e meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe». Esta é uma afirmação lapidar de Jesus quando O informam que a Sua mãe e irmãos estão no exterior à procura d’Ele.
Ainda que em tempos (cronologicamente) longínquos, a vida de Jesus tem momentos agitados. Ele tem uma agenda sobrecarregada ao ponto de muitas vezes não haver possibilidade de descanso ou de uma refeição mais sossegada. A multidão que se acerca d’Ele é como todas as multidões: integra pessoas diversas, com motivações muito diferentes. Uns vão por curiosidade, outros vão por verem ir os outros; uns vão em busca de respostas, outros, de milagres; uns procuram o extraordinário e a confusão, outros nem sabem muito bem porque é que vão. O aparente sucesso é relativizado pelas suspeições que se fazem ouvir: «Está fora de Si… Está possesso de Belzebu… É pelo chefe dos demónios que Ele expulsa os demónios».
É neste contexto que Maria e os seus familiares (irmãos e irmãs de Jesus, isto é, parentes próximos) vão à procura d’Ele para O trazerem para casa, para que Ele se resguarde destas acusações, perpetradas pelos líderes e grupos religiosos, vindos de Jerusalém, propositadamente para semearem dúvida e lançarem suspeitas sobre o caráter e intenções de Jesus, desacreditando-O junto das pessoas mais simples.
Chegando ao local, a Sua Mãe e os Seus irmãos ficam fora e mandam chamá-l’O. É crível e defensável que Maria confiasse em Jesus, confiasse em Deus. Mas, como Mãe acorre a ver com os olhos (da carne) o que se passa com o Seu Filho amado. Admiração seria que Ela ficasse em casa impávida e serena!
2 – Os discípulos de Jesus são os que entram, os que estão sentados à volta d’Ele. Esta multidão pode bem ser o povo do Senhor que O escuta, que absorve as Sua palavras, que regressa, depois, à vida do dia a dia, irradiando alegria e ternura.
Jesus dirá que há alguns (fariseus e doutores da Lei) que não entram nem deixam entrar. Neste caso, verifica-se que há uma multidão que está dentro, que está em redor de Jesus, e os Seus familiares próximos estão fora. Terá sido porque a multidão impediu essa entrada? Ou terá sido uma opção dos familiares em se manterem numa zona de conforto, em segurança? Ou, talvez, dessa forma, fosse mais fácil “retirar” Jesus de entre a multidão e discretamente levá-l’O para casa?!
O evangelista São Marcos, tendo sido o primeiro a escrever, é direto, não procura muitas explicações ou enquadramentos, limita-se a narrar os acontecimentos. Uma multidão rodeia Jesus. De Jerusalém, vêm escribas (doutores da Lei) que espalham insinuações. No exterior, a Sua Mãe e os seus irmãos com o intuito de preservarem a Sua vida e o Seu bom nome.
Como em outras ocasiões, Jesus não se alonga em comentários sobre os familiares, os parentes (de sangue), mas aproveita para mostrar que com Ele o conceito de família se alarga exponencialmente. Na verdade, todos podemos ser da Sua família! Se quisermos. Deus chama a todos. Todos são filhos; somos todos irmãos. A condição é realizar a vontade do Deus. Então efetiva-se na prática o desejo de Deus, manifesto em Jesus Cristo. Os que não “estiverem” ao Seu redor e, por conseguinte, não Se deixarem ver pelo Seu olhar e sem possibilidades de O verem e de O escutarem (por opção ou pelas circunstâncias) estão fora! Os laços de sangue não modificam a relação, a filiação e a fraternidade, pois depende da vontade, de acolher e cumprir a vontade de Deus. Vale para todos!
3 – Os que estão fora não estão excluídos da família de Jesus e alguns que estão dentro autoexcluem-se porque não escutam, porque não têm intenção de fazer a vontade de Deus, porque não O olham olhos nos olhos nem se deixam iluminar pelo Seu olhar.
Alguns estão misturados no povo com o propósito de dividir, criar confusões, levantar suspeitas! Há muitas formas de Deus Se manifestar, mas a nossa predisposição também conta. Deus não opera contra nós, nem nos converte sem Deus. Como diria Santo Agostinho, criou-nos sem nós, mas não nos salva sem nós.
A interpelação de Jesus é para aqueles que já O escutam e para aqueles que, estando fora, podem entrar, aproximar-se ou deixar que Ele Se aproxime e entre nas suas vidas. Também Maria e os seus parentes, sendo já da família de sangue, podem e devem entrar na família espiritual, divina. De Maria se diz que é a primeira discípula. Não deixa de ser a Mãe de Deus, a Sua Mãe, mas, simultaneamente, escuta-O, perscruta-O, acolhe-O com o olhar e com o coração, segue-O. Ensina Jesus a andar, a falar, a ter “maneiras”; aprende com o Filho a acolher todos, vizinhos ou estrangeiros, pastores e magos, e a perceber que há uma família na qual também Ela se insere.
Diabólicos são aqueles que dividem, criam muros e servem da ingenuidade e bondade das pessoas, vivem indiferentes ao sofrimento alheio, exploram aqueles e aquelas que deveriam servir e cuidar. Mas também eles, escribas e fariseus, os que Lhe armam ciladas, podem aceder ao reino de Deus, basta que escutem a Palavra de Deus e façam a vontade de Deus. Ou pelo menos tentam. “Deus, fonte de todo o bem, ensinai-nos com a vossa inspiração a pensar o que é reto e ajudai-nos com a vossa providência a pô-lo em prática”.
4 – Na primeira leitura, encontramo-nos com Adão e Eva, figuras da humanidade, os primeiros pais, criados por Deus, como eu e tu! A história deles é também a nossa. Uma história de amor que nos envolve. Deus, na superabundância de amor, chama-nos à vida. Cria-nos livres para Lhe respondermos, como interlocutores em pé de igualdade. Somos criados à Sua imagem e semelhança, capacitados para amar e ser amados, para O percebermos e dialogarmos com Ele, num projeto de vida e de amor.
O sonho de Deus é a harmonia, por isso nos criou à Sua imagem e semelhança, dotados de liberdade, de inteligência, de vontade própria, envolvidos numa dinâmica de amor. Ao Seu amor deveríamos responder com amor. Amor com amor se paga, como nos dirá São João da Cruz. A um amor tão grande, como o de Deus, a nossa resposta há de ser equivalente. Será uma resposta que passará por amarmos quem Deus ama. É assim com as pessoas que amamos, procuramos ter os mesmos sentimentos, gostar das mesmas coisas (ou pelo menos tolerar), sincronizar com os mesmos gostos (ou pelo menos não desgostar).
5 – Deus responsabiliza-nos pelas nossas ações, pelas nossas escolhas. Dotou-nos de vontade, de liberdade e confiou no nosso discernimento. Mas, pelos vistos, as coisas nem sempre correm bem. Há momentos em que já não vemos Deus, ofuscamos a Sua presença com os nossos apetites e manias. Mas o rumor dos Seus passos no jardim, na nossa vida, os sinais da Sua presença, continuam a fazer-se sentir. O pior mal, contudo, não está nos fracassos, mas na vergonha e no facto de escondermos o nosso rosto e o nosso coração do olhar amoroso de Deus, que nos santifica e nos ilumina. Por vergonha, não assumimos as nossas falhas e até envolvemos os outros nos nossos esquemas. Em tantas situações que arranjamos desculpas, justificações, distribuímos culpas pelos outros, sacudimos a água do capote! «A mulher que me destes por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi»… «A serpente enganou-me e eu comi»!
Apesar das nossas dúvidas, incongruências, hesitações, afastamentos, Deus mantém o Seu amor por nós e não fecha nem portas nem janelas ao nosso regresso. Desde sempre a promessa: a descendência de Eva esmagará a cabeça da serpente! A resposta a Deus será dada por Maria: eis a serva do Senhor, faça-se em mim a tua Palavra. Somos família de Deus quando permitimos que a Sua graça nos preencha. “Se tiverdes em conta os nossos pecados, Senhor, quem poderá salvar-se? Mas em Vós está o perdão… no Senhor está a misericórdia e com Ele abundante redenção” (Salmo).
6 – Maria, cheia da graça de Deus, contrapõe-se à Eva que há em nós. Preparada por Deus, escolhida de antemão, mas também Ela livre e com vontade própria, responde a Deus e no Seu sim chega até nós Jesus Cristo, carne da nossa carne, osso dos nossos ossos, sangue do nosso sangue. Vindo de Deus, e Deus verdadeiro, Deus connosco, caminha connosco na realidade da nossa carne, assumindo-nos por inteiro e sujeitando-se às mesmas condicionantes espácio-temporais que nós. Vem viver como verdadeiro Homem para nos libertar das forças do mal, das trevas e do pecado, e de tudo quanto nos afasta de Deus e dos outros.
No meio de nós, verdadeiro Deus, vive humanamente, devolvendo-nos ao sonho original de Deus. Ser humano é responder com amor aos planos de Deus. E estes preconizam (apenas) a nossa felicidade. Seres amados por Deus, para vivermos no amor. Jesus mostra-nos, com a Sua vida e a Sua palavra, que estamos destinados a perdurar, além do tempo e da história, mas que é aqui que iniciamos tal gesta. Ele vive entre nós para que aprendamos a viver ao Seu jeito, para que o Seu destino seja também o nosso.
Relembra-nos o apóstolo: «Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos há de ressuscitar com Jesus e nos levará convosco para junto d’Ele… Ainda que em nós o homem exterior se vá arruinando, o homem interior vai-se renovando de dia para dia. Porque a ligeira aflição dum momento prepara-nos, para além de toda e qualquer medida, um peso eterno de glória. Não olhamos para as coisas visíveis, olhamos para as invisíveis: as coisas visíveis são passageiras, ao passo que as invisíveis são eternas».
Como ser finitos e mortais, nem tudo é como desejamos a cada momento. Por outro lado, a nossa condição biológica e história, faz de nós seres mortais que nascem, crescem e morrem. Pelo caminho, experimentamos situações de bonança e de adversidade. Ele caminha connosco. Enche-nos com as Suas graças e, mesmo nos momentos em que a nossa fragilidade é mais evidente, continua connosco, aqui e agora e depois da nossa morta (biológica) «Bem sabemos que, se esta tenda, que é a nossa morada terrestre, for desfeita, recebemos nos Céus uma habitação eterna, que é obra de Deus e não é feita pela mão dos homens».
Pe. Manuel Gonçalves
Leituras para a Eucaristia: Gen 3, 9-15; Sl 129 (130); 2 Cor 4, 13 – 5, 1; Mc 3, 20-35.