Domingo XIII do Tempo Comum – ano A – 28 de junho de 2020
1 – A vida, como facilmente se compreende, é feita de prioridades, algumas que nos fazem crescer e reforçam uma dinâmica feliz, outras que, pelo menos aparentemente, nos fixam no passado e nos fazem regredir e marcar passo.
Há prioridades e opções de fundo. Estas levam-nos a ponderar e a ajustar as prioridades. Se eu quero ser médico no prazo de cinco anos terei de dar prioridade aos estudos, sabendo que terei de renunciar a outras atividades/distrações, ainda que possa integrá-las mas sempre com a preocupação de as subordinar à minha opção fundamental. Se tenho um exame daqui a dois dias, entre deitar cedo e ir para a noite até às cinco da manhã, para depois dormir durante todo o dia, a recuperar da ressaca e a descansar, a opção parece óbvia!
Se temos escolhas pela frente que nos ocupam o tempo e a mente, teremos de sopesá-las em virtude do caminho que queremos prosseguir e da meta que queremos alcançar.
2 – No Evangelho de hoje, Jesus coloca-nos diante de escolhas a fazer para sermos verdadeiramente Seus discípulos: «Quem ama o pai ou a mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a Mim, não é digno de Mim. Quem não toma a sua cruz para Me seguir, não é digno de Mim».
À primeira vista estamos diante de um dilema demasiado complexo para aceitar de mão-beijada. Os filhos amarem mais a Cristo que ao pai ou à mãe já é difícil de engolir; amar Jesus mais que o filho ou a filha é algo de absolutamente inaceitável e incompreensível! Como é que Jesus se atreve a pedir-nos uma coisa destas? Será que teve alguma experiência destrutiva na relação com os pais ou presenciou alguma cena dramática numa família vizinha?
O amor da mãe e do pai para com os filhos é do mais puro e genuíno que pode haver.
Aceita-se, que o amor dos filhos pelos pais seja também do mais genuíno que pode haver, reconhecendo que as relações podem tornar-se complexas, pelo feitio, pelo cansaço, pela persistência de situações contraditórias. No entanto, em relacionamentos saudáveis, o amor que une pais e filhos é do mais forte e consistente que existe.
Para Jesus, o amor a Deus supera e terá que superar qualquer amor, por mais entranhado que seja. O Amor de Deus para connosco tem o tamanho da eternidade e do universo, não se pode medir nem nas palavras nem na profundidade. Parafraseando Bento XVI, mesmo se e quando todos nos abandonarem, Deus continuará a escutar-nos, continuará a amar-nos. Por mais que nos afastemos, que renunciemos à Sua presença, que O neguemos, Deus mantém-se fiel, fiel no amor infindo.
3 – Colocar Deus em primeiro lugar não secundariza os filhos, mas coloca-os na dimensão a que pertencem, filhos; e, coloca os pais na dimensão que lhes compete, pais. O risco será sempre endeusar ou instrumentalizar. A linguagem pode ajudar-nos, se referirmos a Deus a adoração e às pessoas o amor, ainda que também este possa precisar de amadurecer! Adorar e Deus e amá-l’O sobre todas as coisas; amar ao jeito de Jesus que, ao colocar Deus em primeiro lugar, acima, mas não distante, “cria” espaço para que o ser humano seja, precisamente, ser humano, pessoa.
Os pais que têm mais que um filho sabem que o amor não se distribui por dois, três ou quatro filhos. O amor é total e único por cada filho, que é sempre insubstituível. De contrário, um filho único teria um amor muito maior em relação a filhos com irmãos. Sendo dois filhos, cada um teria metade do amor dos pais! Quatro filhos teriam, cada um, um quarto de amor! Como se o amor fosse divisível. O amor é total. O coração não se parte, não se divide.
Uma mulher, quando se torna mãe, experimenta habitualmente uma explosão de amor pelo filho, mas que a leva a estar mais atenta aos filhos que não são seus, o seu coração dilata, o amor amadurece, torna-se mais universal, consistente, concreto.
O mal não é ter um amor único, mas não ter nenhum ou ter demasiados, sem nenhum em concreto. Jesus não exige menos: amor total e tolalizante. Quem quiser segui-l’O tome a própria cruz, a vida inteira, e siga-O. Quem ama torna-se pobre, despoja-se diante daquele/a que ama, preenche o coração de alegria e de amor, fica disponível para dilatar o coração, para multiplicar o amor, por expansão!
4 – «Quem encontrar a sua vida há de perdê-la; e quem perder a sua vida por minha causa, há de encontrá-la».
Depois de nos colocar diante do dilema – escolhê-l’O ou escolher a nossa família – Jesus leva ainda mais longe o Seu desafio. Em relação à família, claramente se vê que a opção por Deus cria ainda mais disponibilidade para amar e para cuidar, pois fá-lo-emos porque é do nosso sangue, porque é da nossa família e cujo amor está entranhado em nós, mas, igualmente, a identidade e o compromisso de sermos filhos amados de Deus. A resposta ao amor de Deus implica-nos com o amor ao nosso semelhante, pois é a única forma de amar: ama a Deus, coerentemente, quem ama os Seus filhos muito amados. Quem meus filhos beija minha boca adoça.
A vida é dom, é bênção. Não é valor absoluto, mas supremo, na medida em que está antes de todos os outros valores, fundamentando-os, como direito inalienável que permite e sustenta os demais direitos. Mas, como vemos em Jesus, a vida é para ser gasta, o amor tem prevalência. Por amor Deus dá-nos o Seu Filho Jesus. Por amor, Jesus entrega a Sua vida por nós. Por amor, Jesus sujeita-Se a padecer, indo até ao fim.
Jesus ensina-nos que a vida não é para guardar, mas para gastar, para perder a favor dos outros. E é no perder a vida, no gastar a vida, que se ganha a vida no mundo e na eternidade. A referência, para não se gastar inutilmente a vida, é Jesus, por causa de Jesus, pois não corremos o risco nem de endeusar nem de instrumentalizar os outros, mesmo que seja com o propósito e a justificação de amar.
5 – O cristão não é melhor que os outros, mas é e terá de ser diferente! Para melhor! Não em relação aos outros, mas cada vez melhor em relação a si mesmo. Quanto mais de perto seguir Jesus Cristo, mais preparado vai estar para O testemunhar, para O transparecer, para O comunicar aos outros.
Ser cristão não é profissão de algumas horas ou uma escolha para alguns momentos. Ser cristão envolve a vida toda e toda a vida, todos os momentos. O cristão não é compartimentável, como não o é a pessoa, é um todo, é-o em todo o tempo. Batizado na água e no Espírito Santo, é nova criatura, está conectado, agrafado à vida nova de Jesus Cristo.
«Todos nós que fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte. Fomos sepultados com Ele pelo Batismo na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos, pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova… Assim, vós também, considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Cristo Jesus».
A nossa condição de batizados, novas criaturas, ressuscitados em Cristo, leva-nos a procurar sempre a fidelidade à nossa identificação com Cristo, para que as raízes se fortifiquem deixando-nos crescer até à eternidade. Para isso precisamos de ser ramos, que frutificam, pelas boas obras, alimentados pela seiva que nos chega da cepa, a Jesus.
6 – Voltemos à questão anterior! Quem não amar mais a Jesus Cristo que à mãe ou ao pai, à filha ou ao filho, não serve para O seguir, para ser discípulo missionário. Colocando-O como prioridade essencial, como primazia, como prevalência, então o amor, o serviço e o cuidado pelos outros é reforçado até ao infinito, ultrapassando até a morte, como Ele, ressuscitando para que o amor permaneça e se divinize na perfeição junto do Pai.
Seguindo-O, amando-O, vivendo-O, também Ele não nos faltará: «Quem vos recebe, a Mim recebe; e quem Me recebe, recebe Aquele que Me enviou. Quem recebe um profeta por ele ser profeta, receberá a recompensa de profeta; e quem recebe um justo por ele ser justo, receberá a recompensa de justo. E se alguém der de beber, nem que seja um copo de água fresca, a um destes pequeninos, por ele ser meu discípulo, em verdade vos digo: Não perderá a sua recompensa».
Ainda há dúvidas? N’Ele até um copo de água tem importância. Um copo de água, dado em Seu nome, por amor, conta, conta muito, conta tanto que desperta a eternidade!
7 – Deus não deixa ninguém sem recompensa, ainda que nem sempre nos seja visível.
Eliseu passou numa povoação onde vivia uma distinta senhora que o convidou, insistindo, para comer em sua casa. A partir de então, Eliseu, com o seu servo, sempre que passava por ali ia tomar uma refeição a casa desta senhora e do seu marido. No Evangelho, surgirá Betânia, a casa de Lázaro, Maria e Marta, onde Jesus retempera forças para prosseguir o caminho!
O testemunho da senhora ao seu marido: «Estou convencida de que este homem, que passa frequentemente pela nossa casa, é um santo homem de Deus. Mandemos-lhe fazer no terraço um pequeno quarto com paredes de tijolo, com uma cama, uma mesa, uma cadeira e uma lâmpada. Quando ele vier a nossa casa, poderá lá ficar».
Como não lembrar as palavras do autor da Carta aos Hebreus: “Não vos esqueçais da hospitalidade, pois graças a ela, alguns, sem o saberem, acolheram anjos” (13, 2).
Eliseu, em nome de Deus, garante a esta senhora: «No próximo ano, por esta época, terás um filho nos braços».
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano A): 2 Reis 4, 8-11. 14-16a; Sl 88 (89); Rom 6, 3-4. 8-11; Mt 10, 37-42.