Domingo I da Quaresma – ano B – 21 de fevereiro de 2021

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Domingo I da Quaresma – ano B – 21 de fevereiro de 2021

1 – Na vida simples de Nazaré, em família e entre amigos e vizinhos, na confusão e azáfama de Jerusalém, no deserto e nas aldeias, no campo ou à beira mar, no lago ou no meio da multidão, entre discípulos ou retirado sozinho em oração, a pregar ou a curar, no caminho ou recolhido em casa de alguma família (de Pedro ou de Marta), na Sinagoga ou junto à banca de Mateus, na outra margem ou na nossa margem, de madrugada ou pela noite dentro, no Jordão, em Jericó ou em Cafarnaum, nas Bodas de Caná e na festa ou na via-sacra e na Cruz, na sexta-feira santa ou no primeiro dia da semana, com a Samaritana ou em casa de Zaqueu, em todo o tempo, situações ou circunstâncias, Jesus é impelido/conduzido pelo Espírito Santo e o único propósito é fazer a vontade no Pai. O Pai é o Seu alimento, o Seu chão e a Sua meta, o sentido da Sua vida e da Sua mensagem.

A Quaresma inicia com o gesto significativo da imposição das cinzas, que reaviva a nossa condição finita e pecadora, dependente da graça de Deus, e a humildade de quem reconhece que está a caminho, revendo a sua vida e opções para que a conversão a Jesus Cristo e ao Seu Evangelho seja cada vez mais efetiva e concretizada no serviço aos irmãos. É um tempo de conversão. O que é permanente, torna-se ainda mais evidente e urgente: necessidade de confrontarmos a nossa vida com a de Jesus, para que não estejamos a afastar-nos do Seu amor e da Sua bondade, para que a ilusão diabólica não nos torne cínicos, frios e distantes, prepotentes e egoístas, e indiferentes ao sofrimento e ao apelo dos irmãos.

No primeiro Domingo deste tempo de graça e de caminhada, as tentações de Jesus no deserto e no início da vida pública, mas também em outros momentos, mostrando-nos a cumplicidade com o Pai na oração e na entrega a todos os que encontra necessitados de pão, de atenção e de bênção.

2 – Depois do Batismo, no rio Jordão, “o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto. Jesus esteve no deserto quarenta dias e era tentado por Satanás. Vivia com os animais selvagens e os Anjos serviam-n’O”.

O evangelista Marcos dá-nos notas rápidas sobre alguns dos acontecimentos da vida de Jesus. Não se detém a descrever as tentações. Olhando para nós, ou para os outros evangelhos sinóticos, logo verificamos quantas tentações nos podem afastar dos outros e daquilo que é a nossa identidade como filhos bem-amados de Deus e irmãos uns dos outros. A tentação da sobranceira, do poder, da espetacularidade, dos caminhos fáceis, sem olhar a meios, sem respeitar os ritmos da vida, da natureza e das pessoas, descomprometendo-se com tudo o que exija esforço, dedicação e sacrifício, e sofrimento.

Jesus poderia impor-se pela espetacularidade, pelos milagres, pela prepotência, pelo uso do poder, e usar esses poderes em benefício próprio. Escolhe o caminho da Cruz, da entrega, do diálogo e do despojamento, sujeitando-Se ao mesmo que nós, à fragilidade, à perseguição e às injustiças, sujeitando-Se a ser recusado e escorraçado, a ser preso e maltratado, mas prevalece o sonho de Deus: a fraternidade. A todos traz a paz de Deus, a ternura de Deus, a compaixão misericordiosa, o amor que a todos reconhece e a todos eleva.

O deserto não é um lugar do nada, ainda que nos sugira o vazio, o inóspito, a solidão. Também no deserto é possível encontrar Deus. Jesus vem aos nossos desertos e vazios para os preencher de vida, de amor, de Deus. No deserto existe o essencial: a vida que nos rodeia, os animais selvagens e os perigos, mas também os Anjos de Deus que velam por nós e nos protegem dos perigos que espreitam, desde que deixemos que Ele nos envolva.

3 – O tempo que dedicamos a Deus, à oração, não nos impede de ir, de partir ao encontro dos irmãos. Aliás, só bem alimentados, cúmplices, próximos de Deus poderemos anunciá-lO de verdade. Jesus é impelido, é conduzido, também no deserto, pelo Espírito Santo. Reserva tempo e retira-Se para rezar, para escutar a voz do Pai, e logo parte com todo o dinamismo do Espírito.

Há alturas em que reserva mais tempo, para discernir com clareza as tentações, verdadeiro homem, e a missão. Logo depois de saber da prisão de João, Jesus parte e começa a pregar o Evangelho na Galileia, palmilhando as aldeias ou acercando-se do mar. Diz-nos Jesus, também hoje, também a mim e a ti: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».

Não há tempo a perder, é hoje, o reino está próximo, está no meio de nós, o Reino de Deus é Jesus. Podemos não querer saber, achar que não é para nós, deixarmos a outros a missão, mas as palavras são diretas e inequívocas, o tempo chegou, há que arrepiar caminho. Para entrarmos no Reino, para O acolhermos, para o fazermos germinar, só pelo arrependimento, isto é, na disponibilidade e disposição de, tal como Cristo, nos deixarmos guiar pelo Espírito de Amor, e acreditando no Evangelho. Este acreditar não é passivo. Este acreditar gera ação, compromete-nos também nós a viver e anunciar o Evangelho e tudo o que o Evangelho significa de ternura e de compaixão, perdão e de amor, no serviço que gasta a vida a favor dos outros. É esse o Evangelho, Jesus Cristo. É a Boa Nova da Salvação, quem acreditar será salvo, porque já não será um indivíduo isolado e perdido, mas irmão em Jesus Cristo, filho amado de Deus, procurando em tudo mostrar Jesus.

4 – Iniciamos a Eucaristia suplicando a Deus “que, pela observância quaresmal, alcancemos maior compreensão do mistério de Cristo e a nossa vida seja dele um digno testemunho”. A oração predispõe-nos a acolher o próprio Deus e a Sua vontade, sabendo que esta não visa fazer-nos sofrer ou privar da alegria, mas, antes, que todos nos descubramos e nos encontremos como irmãos, ajudando-nos mutuamente a caminhar, a sair dos vazios e a fazer com que os desertos sejam preenchidos pela presença de Deus. Uma vez preenchidos pela graça de Deus, partiremos para a outros levarmos a paz e a salvação, a esperança e o amor.

Deus não desiste de nós. Nunca. Parafraseando o Papa Francisco, podemos cansar-nos de Deus, de Lhe pedir, de O invocar, de Lhe levarmos os nossos tropeços e pecados, mas Deus não Se cansa e não desiste de nós.

O dilúvio, mais do que castigo de Deus em relação à humanidade, obra saída das Suas mãos, é a consequência do egoísmo e da prepotência do homem, da sobranceria de uns em relação a outros, com o endeusamento de pessoas e/ou de povos. Um exemplo paradigmático é do nazismo, é um dilúvio feito de guerra, de violência, de destruição maciça de pessoas, de aldeias e cidades. Seis milhões de judeus foram mortos para sublinhar um ideal de ração pura, ariana, superior, endeusando a raça alemã. O Dilúvio, como a Torre de Babel expressa o egoísmo que leva à destruição, à divisão e ao conflito mortífero.

Mas, mesmo no mal, Deus descobre o bem e aponta caminhos de salvação. A cada contratempo, Deus renova a Sua Aliança e mostra-Se próximo e benevolente. «Este é o sinal da aliança que estabeleço convosco e com todos os animais que vivem entre vós, por todas as gerações futuras: farei aparecer o meu arco sobre as nuvens, que será um sinal da aliança entre Mim e a terra. Sempre que Eu cobrir a terra de nuvens e aparecer nas nuvens o arco, recordarei a minha aliança convosco e com todos os seres vivos e nunca mais as águas formarão um dilúvio para destruir todas as criaturas».

5 – Se dúvidas houvesse, a vinda de Jesus e a Sua entrega completa, gastando-Se até dar a vida por nós, mostra como Deus Se empenha, sem pausas, nem reservas, nem condições, em nos mostrar o Seu amor e nos envolver na Sua ternura.

Na segunda leitura, São Pedro sublinha que “Cristo morreu uma só vez pelos pecados – o Justo pelos injustos – para vos conduzir a Deus. Morreu segundo a carne, mas voltou à vida pelo Espírito”.

Fazendo eco da primeira leitura, o Apóstolo diz-nos que “foi por este Espírito que Ele foi pregar aos espíritos que estavam na prisão da morte e tinham sido outrora rebeldes, quando, nos dias de Noé, Deus esperava com paciência, enquanto se construía a arca, na qual poucas pessoas, oito apenas, se salvaram através da água”. E logo acrescenta que a água do dilúvio é a figura do Batismo que todos recebemos em Igreja, não se tratando de lavar do corpo da imundice, mas do “compromisso para com Deus de uma boa consciência; Ele vos salva pela ressurreição de Jesus Cristo, que subiu ao Céu e está à direita de Deus, tendo sob o seu domínio os Anjos, as Dominações e as Potestades”.

Ressalva a paciência de Deus, paciência de amor que sabe esperar por nós e para nós prepara uma Arca, com Noé, e a Igreja, com Jesus Cristo, que nos protege e nos abençoa.

6 – Quando os desertos nos fizerem vacilar, saibamos que podemos recorrer a Deus, uma e outra vez e outra ainda. Deus não desiste de nós. Deus está perto quando O invocam, desde que nos predisponhamos a escutá-l’O e percebê-l’O na nossa vida. Jesus, no deserto, mostra-nos que, nas maiores contrariedades da vida, é possível deixar-nos impelir pelo Espírito do Senhor.

Por isso a Ele nos dirigimos: “Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos, ensinai-me as vossas veredas. Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me, porque Vós sois Deus, meu Salvador. Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias e das vossas graças que são eternas. Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência, por causa da vossa bondade, Senhor. O Senhor é bom e reto, ensina o caminho aos pecadores. Orienta os humildes na justiça e dá-lhes a conhecer a sua aliança”.

A oração faz-nos tomar consciência da nossa fragilidade, não como insuficiência maléfica, mas como oportunidade de nos abrirmos a Deus e nos enriquecermos com os Seus dons, partilháveis com o nosso semelhante de quem nos fazemos próximos, segundo o mandamento de Jesus, imitando-O.

Pe. Manuel Gonçalves


Leituras para a Eucaristia (ano B): Gen 9, 8-15; Sl 24 (25); 1 Pedro 3, 18-22; Mc 1, 12-15.