Domingo III da Quaresma – ano A – 2023
1 – Depois do deserto e da montanha, depois da narração das tentações e da transfiguração de Jesus, neste terceiro Domingo da Quaresma, vamos, com Jesus e os discípulos, até ao poço de Jericó, nos arrabaldes de Sicar, uma cidade de Jericó, ao encontro da Samaritana.
No retiro que faz no deserto, Jesus mostra que nem a fome O afasta do propósito de cumprir a vontade de Deus. No encontro com esta mulher, Jesus, não desvalorizando a sede biológica e a necessidade de saciar a fome e a sede, faz-nos sentir outra sede, a precisar de ser saciada, e outra água que nos há de saciar.
Cansado, pela hora de mais calor, o meio-dia, Jesus senta-Se à beira do poço, enquanto os discípulos vão à cidade comprar alimentos. Vendo a Samaritana, Jesus faz-lhe um pedido muito simples e concreto: «Dá-Me de beber». Mal ela sabia que aquele homem pressentia uma sede bem mais profunda e a precisar de ser saciada. A resposta pronta da Samaritana sublinha a animosidade entre judeus e samaritanos: «Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber, sendo eu samaritana?»
Se a Samaritana coloca em evidência o afastamento cultural, social e religioso entre os dois povos, ou as duas regiões, Jesus sublinha o encontro entre duas pessoas, sem fronteiras ideológicas, pátrias ou religiosas. Nós precisamos, claramente, como a Samaritana, de estabelecer fronteiras, princípios, critérios, distâncias, identidades; Jesus precisa de corações despertos para escutar e para ver, para acolher a graça de Deus e para colocar em marcha um caminho de serviço, cuidado, entreajuda, comunhão. Com facilidade, acentuamos o que nos divide e diferencia; Jesus procura fazer sobressair o que une, as necessidades que todos temos, as urgências e fragilidades comuns, procura fazer pontes.
«Se conhecesses o dom de Deus e quem é Aquele que te diz: ‘Dá-Me de beber’, tu é que Lhe pedirias e Ele te daria água viva».
Começa aqui um diálogo vital! Jesus já esqueceu a sede que trazia, a fome que sentia, o cansaço da caminhada, pois o que lhe centra a atenção, lhe enche o coração e dá sentido à Sua vida é saciar a sede e a fome daqueles que encontra.
2 – O atrevimento de Jesus surpreende a samaritana, que ainda contesta: «Senhor, Tu nem sequer tens um balde, e o poço é fundo: donde Te vem a água viva? Serás Tu maior do que o nosso pai Jacob, que nos deu este poço, do qual ele mesmo bebeu, com os seus filhos e os seus rebanhos?»
Mas logo Jesus explica que há outra água, «aquele que beber da água que Eu lhe der nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der tornar-se-á nele uma nascente que jorra para a vida eterna».
A Samaritana não se afasta, não sente medo, argumenta com Jesus, fixadando-se nas necessidades mais básicas e a partir da sua cultura religiosa. Jesus conhece-a para lá da aparência, sabe da sua vida, dos seus anseios, das suas perguntas, sabe como ela tem tentado saciar a sede, investindo em relacionamentos fogazes. Perante a sabedoria de Jesus, ela reconhece-O como profeta e sublinha como a religiosidade pode ser motivo de cisão, criando muros em vez de pontes.
Aproveitando a deixa, Jesus abole fronteiras. Para entrar no reino de Deus, basta abrir o coração e deixar-se tocar pela graça que vem das alturas. «Vai chegar a hora, diz Jesus, – e já chegou – em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são esses os adoradores que o Pai deseja. Deus é espírito e os seus adoradores devem adorá-l’O em espírito e verdade».
É então que Jesus se revela como Messias e logo a Samaritana corre à cidade para anunciar o que ouviu, interpelando os outros samaritanos a fazer a mesma descoberta que ela. Eles vêm e no final convidam-n’O a ficar com eles. Muitos acreditaram, dizendo à mulher: «Já não é por causa das tuas palavras que acreditamos. Nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é realmente o Salvador do mundo».
O anúncio da Palavra de Deus, do Evangelho, é essencial para a despertar a fé. Depois, será decisivo o encontro com Jesus, deixando-se interpelar por Ele.
3 – Ao regressarem, os discípulos surpreendem-se pela naturalidade com que Jesus fala com a Samaritana, pois, além de ser mulher e não estar acompanhada por nenhum familiar, é considerada “inimiga” dos judeus.
Os discípulos, recordemo-lo, tinham ido à cidade comprar alimentos e, ao voltar, contam que Ele esteja “esfomeado”, mas logo Jesus os sossega: «Eu tenho um alimento para comer que vós não conheceis», clarificando: «O meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou e realizar a sua obra. Não dizeis vós que dentro de quatro meses chegará o tempo da colheita? Pois bem, Eu digo-vos: Erguei os olhos e vede os campos, que já estão loiros para a ceifa. Já o ceifeiro recebe o salário e recolhe o fruto para a vida eterna e, deste modo, se alegra o semeador juntamente com o ceifeiro. Nisto se verifica o ditado: ‘Um é o que semeia e outro o que ceifa’. Eu mandei-vos ceifar o que não trabalhastes. Outros trabalharam e vós aproveitais-vos do seu trabalho».
O pão é importante, mas indispensável também o sentido da vida, a companhia, o bem que se realiza, a vida que se celebra e se gasta a favor dos outros, a amizade e o amor, a certeza de que a vida não se limita ao tempo presente, mas se abre à eternidade de Deus. Nem só de pão vive o homem!
4 – O povo hebreu sai a toda a pressa do Egipto, testemunhando as maravilhas que Deus fez por ele. Passado o entusiasmo do momento, logo os israelitas cedem ao cansaço e ao desencanto, e à murmuração. As dificuldades fazem parte do caminho. Na maioria das vezes, não precisamos que nos tirem as pedras da estrada, basta que as contornemos, ou passemos por cima delas ou, contando com os outros, possamos desviá-las. Saber que alguém vai connosco, que não nos deixa para trás, que ouve nos nossos lamentos, que incentiva os nossos esforços, que nos pega pela mão quando as forças se esgotam, que nos anima com as palavras ou com o olhar, é motivação para caminharmos mais um pouco. Sozinhos acabaremos por nos perder, pois começaremos a duvidar do caminho e a duvidar de nós mesmos.
O povo caminha, mas deixa-se abater pela adversidade, deixa de confiar e de se entregar a Deus. Acontece-nos com a família e com os amigos. Há momentos que somos gratos por todo o bem que nos é proveitoso, mas em situações de maior ansiedade, preocupação e tensão, ou quando não conseguimos pôr-nos de acordo, pode acontecer que nos esqueçamos do esforço, da dedicação, do carinho e da amizade que os outros nos devotam.
Depois da libertação, o povo esquece-se dos benefícios que Deus operou, pois centram-se nas necessidades básicas imediatas, a fome e a sede. Neste pedaço de texto é a sede que sobrevém e logo a murmúrio contra Moisés e contra Deus. Moisés impacienta-se, mas Deus volta a ser generoso e compassivo e aponta o caminho, mostrando que até das pedras faz surgir a água.
5 – Na segunda leitura, são Paulo desafia-nos a confiar sempre em Deus, ainda que, por vezes, sejam duras a tormenta e a perseguição. Deus é fiel à Sua promessa e acompanha-nos em toda a nossa vida, na bonança e na adversidade.
Diz-nos o apóstolo que «a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. Quando ainda éramos fracos, Cristo morreu pelos ímpios no tempo determinado. Dificilmente alguém morre por um justo; por um homem bom, talvez alguém tivesse a coragem de morrer. Mas Deus prova assim o seu amor para connosco: Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores».
Não somos conquistadores da bondade de Deus, somos agraciados pela Sua misericórdia. Antes de o merecermos, já Deus dispôs para nós a bênção e a salvação, manifestada em plenitude na vida, paixão redentora e ressurreição de Jesus, garantia que nada limita ou impede a nossa vida em Deus.
6 – A confiança em Deus, faz-nos agradecer e louvar, certos da Sua misericórdia. Sempre que rezamos, comprometemo-nos com os desígnios de Deus a nosso respeito e com aquilo que pedimos.
O salmista ajuda-nos a entoar a oração, com alegria e entrega confiante nas mãos de Deus. «Vinde, exultemos de alegria no Senhor, aclamemos a Deus, nosso salvador. Vamos à sua presença e dêmos graças, ao som de cânticos aclamemos o Senhor. / Vinde, prostremo-nos em terra, adoremos o Senhor que nos criou. Pois Ele é o nosso Deus e nós o seu povo, as ovelhas do seu rebanho».
Não endureçamos os nossos corações, para escutar o Seu amor, para nos deixarmos guiar pela Sua bondade, para nos deixarmos iluminar pela Sua graça e para sermos portadores da Sua misericórdia.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (A): Ex 17, 3-7; Sl 94 (95); 2 Rm 5, 1-2. 5-8; Jo 4, 5-42.