Solenidade da Santíssima Trindade – 7 de junho de 2020

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Solenidade da Santíssima Trindade – 7 de junho de 2020

1A pessoa é um ser de relação. Biológica, social, cultural e religiosamente. Sem relação não existe como pessoa.

Salvaguardam-se, porém, sem comprometer a reflexão filosófica, os possíveis graus na relação. A relação manifesta e revela a pessoa, é em relação que ela se torna, essencialmente, pessoa. Mas precede-a a sua dignidade, ser único e irrepetível, não redutível ao outro. Um feto, uma criança, uma pessoa portadora de uma deficiência profunda, não é menos pessoa pelo facto do seu contributo para a interação estar reduzido e, em alguns casos, parecer quase inexistente. Seja como for, mesmo nestas situações, a pessoa coloca-me em relação com ela, interroga-me, como diria E. Levinas, interpela-me, questiona-me com a sua chegada, com o seu rosto, irrompe na minha vida numa presença que transporta um mandamento: não matarás.

Biologicamente, ninguém existe sem os outros, sem os pais.

Socialmente, estamos interligados, sempre, no bem e no mal, e na responsabilidade uns pelos outros, com a exigência solidária por todos, especialmente pelos mais frágeis. Se não vejamos, as leis foram elaboradas, com penas apensas, para defender a harmonia, harmonia essa que pressupõe a defesa dos indefesos, dos mais fracos e vulneráveis, daqueles cujas condições de vida são periclitantes. Se não fosse esse o propósito, não eram necessárias leis, predominaria uma lei, a do mais forte.

Culturalmente… o avanço civilizacional, ainda que hoje haja muitas brechas, deve-se à proteção da vida, da dignidade da pessoa; a arte e a literatura são um grito em prol dos mais pobres, dos desvalidos, dos ostracizados; também a televisão (séries, novelas, filmes, debates), o cinema, o teatro são formas de reivindicar justiça e igualdade, denunciando os abusos, a prepotência dos mais fortes, a corrupção, defendendo os que não têm voz ou cuja voz é abafada pelo ruído e pelo poder.

Religiosamente… se há um Deus, para nós cristãos, um Pai, então estamos todos sob o mesmo patrocínio, sobre a mesma bênção, somos sustentados na vida pelo mesmo Deus, ainda que lhe Lhe atribuamos nomes diferentes ou propriedades específicas.

2A característica fundamental da relação é o amor. Somente o amor. Desdobramos em confiança, respeito, responsabilidade, liberdade, bondade, generosidade, humildade, partilha e comunhão. Tudo expressão do amor ou o seu contrário: egoísmo, indiferença, desprezo, inveja, ciúme (patológico), desejo de vingança, malvadez, maledicência, ódio. Expressões do amor ferido ou traído, incompreendido ou, em muitos casos, por má compreensão do verdadeiro amor. Mesmo o poder e a prepotência serão formas de amor, de impor aos outros o amor que desejo: que me amem, venerem, me admirem ou, na falta disso, me temam. De qualquer forma, eu conto, têm de olhar para mim e/ou para o que eu faço. Alguém sem essa “dependência” no amor não se realizará como pessoa.

O amor faz-nos pobres e humildes. A riqueza está nos outros. Quando me coloco diante do outro/a, por amor, faço-me mendigo, confio-me a ele/a, estou entregue às suas escolhas, tudo para ele/ela. Daí a insistência na essencialidade do amor: amar como Jesus amou. Não é preciso mais nada. Ama e faz o que quiseres (Santo Agostinho), pois que o amor (autêntico) faz-me preocupar com o outro, com aquele/a que amo. Quem ama entrega-se aquele/a que ama, presta-lhe atenção, coloca-se ao seu serviço, cuida, protege, guarda de todo o mal.

3Celebramos hoje a solenidade da Santíssima Trindade. Por estes dias, com efeito, temo-nos centrado no mistério mesmo de Deus: Páscoa, Ascensão, Pentecostes, Santíssima Trindade, Corpo de Deus… Quem é este Deus que Se revela em Jesus Cristo? Podemos saber Quem é Deus na Sua essência? A resposta é, desde logo, não, só por aproximação, por analogia. Para alguns, de Deus podemos dizer sobretudo Quem não é. Seria então uma teologia negativa. Seja como for, o decisivo é Quem é Deus para nós. “Quem Me vê, vê o Pai”. Jesus dá-nos Deus, permite-nos vislumbrá-l’O nas Suas palavras e gestos, na Sua postura.

Em absoluto, só amamos uma pessoa quando a conhecemos, interagimos com ela, direta ou indiretamente, porque a encontramos ou porque nos falaram dela. A pessoa é um mistério, que se revela no encontro, na relação que aproxima, mantendo-se mistério. Assim Deus, ainda que num plano diferente, manifesta-Se, revela-Se na relação connosco, em dinâmica de amor.

Diz Jesus a Nicodemos: «Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele. Quem acredita n’Ele não é condenado, mas quem não acredita n’Ele já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho Unigénito de Deus».

Por certo, precisamos de falar de Deus, de dizer Quem é Deus, de refletir sobre o mistério que nos envolve, mas o decisivo é a certeza que Deus nos ama e Se revela, em Jesus Cristo, como Deus próximo, que vem para redimir e salvar. “Deus Pai, que revelastes aos homens o vosso admirável mistério, enviando ao mundo a Palavra da verdade e o Espírito da santidade, concedei-nos que, na profissão da verdadeira fé, reconheçamos a glória da eterna Trindade e adoremos a Unidade na sua omnipotência”.

4A Igreja nasce da Trindade, tem o seu fundamento na Trindade, vive para imitar a Santíssima Trindade e para Deus trinitário se encaminha.

Deus não é senão Amor (François Varillon). Comunhão de vida e de amor. Circularidade de amor. O Pai é fonte e origem do amor; o Filho é acolhimento puro do Amor; o Espírito Santo é o Amor que une o Pai e o Filho. Circularidade de amor que extravasa gratuitamente na criação e no mistério da redenção. O mistério é sempre mistério. O mistério da Santíssima Trindade, desvelado na Sagrada Escritura, particularmente nos Evangelhos, em Jesus Cristo, é um mistério de amor, de paixão, de ternura. Deus revela-Se como Amor. É amor que contagia, que gera vida, que salva.

A mensagem de Deus a Moisés é clara: «O Senhor, o Senhor é um Deus clemente e compassivo, sem pressa para Se indignar e cheio de misericórdia e fidelidade». Moisés percebe o amor de Deus, a Sua compaixão e por isso se prostra em adoração: «Se encontrei, Senhor, aceitação a vossos olhos, digne-Se o Senhor caminhar no meio de nós. É certo que se trata de um povo de dura cerviz, mas Vós perdoareis os nossos pecados e iniquidades e fareis de nós a vossa herança».

“Quando o amor voz fizer sinal, segui-o; ainda que os seus caminhos sejam duros e escarpados” (Khalil Gibran). Quem se sujeita a amar, sujeita-se a padecer. Deus ama-nos ao ponto de nos dar o Seu filho Jesus, por amor! Jesus transparece, com toda a Sua vida, o Amor que O une ao Pai. Somos envolvidos por este amor. Se imitarmos Jesus, cumprindo os Seus mandamentos, Deus permanece em nós e em nós fará a Sua morada. Poderemos não chegar a entender o mistério da Trindade, ou definir o amor, mas o decisivo é amar, cuidar, servir, pois esse é o jeito de Jesus e é o jeito que nos mantém como família de Deus.

5Na segunda leitura, São Paulo exprime o amor e a alegria que o movem: Deus. Dedicou toda a sua vida a “perseguir” Deus, primeiro como judeu zeloso, a perseguir os cristãos, os seguidores de Jesus; depois de ser alcançado por Jesus, pela Sua graça, passou a anunciar o Evangelho em toda a parte, em todos as situações. Fiz-me tudo para todos, para ganhar alguns para Cristo.

O desafio é clarificador: “Sede alegres, trabalhai pela vossa perfeição, animai-vos uns aos outros, tende os mesmos sentimentos, vivei em paz. E o Deus do amor e da paz estará convosco. Saudai-vos uns aos outros com o ósculo santo. Todos os santos vos saúdam. A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco”.

O amor e a alegria interligam-se. Só o amor nos faz gente de verdade. Só no amor se experimenta a verdadeira alegria, que nos irmana e humaniza. Só o amor faz com que saibamos lidar com as diferenças e fazer com que estas nos enriqueçam e nos aproximem.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Ex 34, 4b-6. 8-9; Salmo: Dan 3, 52-56; 2 Cor 13, 11-13; Jo 3, 16-18.