Solenidade de Pentecostes – ano A – 24 de maio de 2020

Watch Now

Download

Solenidade de Pentecostes – ano A – 24 de maio de 2020

1De todo, não somos o que comemos, o que vestimos, o que temos, não somos como os outros nos veem, somos mais, muito mais, um mundo inteiro que nos habita, temos vários rostos ou momentos, somos os mesmos ontem, hoje e amanhã, mas com diferentes camadas, que ora nos revelam ora nos guardam. Um inteiro mundo interior, um mistério, não apenas para os outros, mas para nós próprios. Por vezes, encontramos forças onde pensávamos que não existiam, outras vezes fraquejamos onde julgávamos que apenas acontecesse aos outros.

Sexto sentido, intuição, coincidências, milagres! Como foi possível? No momento exato… nem sei como tirei da cabeça, foi assim, não sei… parece que alguém sussurrou… uma voz que me disse… às vezes tenho duas vontades, uma a puxar-me para o bem e outra preguiçosa e/ou a puxar-me para o mal… não nos ardia o coração? (Lc 24, 32)… e sem mais, percebi tudo… como é que foi possível não me ter lembrado logo disso? O travesseiro… quando acordei, parece que tudo ficou claro… 

Ouvi uma voz cá dentro enquanto rezava… um sonho que apontou o caminho… uma luz que me fez abrir os olhos… Todos, numa ou em outras ocasiões, nos deparamos com momentos fugazes mas clarificadores. São Paulo viu uma luz, caiu do cavalo e ouviu uma voz: Saulo, Saulo, porque me persegues? Os discípulos de Emaús são surpreendidos por uma presença, Jesus Ressuscitado… seguiram em paz, a falar com Ele, a escutá-l’O, mas só O reconhecem na oração, na fração fraterna. Às vezes precisamos que nos digam, se não o que fazer, que nos compreendem e que seguem connosco. Às vezes precisamos do silêncio, e do isolamento, para que as vozes e os ruídos não nos confundam, ouçamos a “voz” para tomarmos uma decisão firme.

2Somos corpo, mas mais do que o corpo, mais do que as extremidades nervosas, mais que a fronteira que nos separa dos outros e do mundo, a pele. Somos espírito, temos vontade, consciência, capacidade para sentir, refletir e amar, para nos irarmos e para comunicarmos vida, para apreciarmos a beleza e nos deixarmos tocar pela harmonia da natureza e pelos gestos de ternura que Deus envia à nossa vida.

Somos mais. Mais do que aparentamos! Muito mais do que os outros veem e do que somos capazes de mostrar com a palavras ou com os silêncios, com a expressão do corpo e do rosto, somos mais do que aquilo que fazemos e do que as atitudes que assumimos. Ainda que sejamos isso tudo, somos um mistério insondável, que ora se dá a conhecer e se desvela, ora se resguarda e se esconde.

Somos espírito, mas muito mais do que isso, somos também o corpo que alberga o espírito, não são duas entidades separáveis, pelo menos total e definitivamente; se isso acontecer, deixamos de ser humanos. Somos um corpo espiritual, um corpo que pensa, que sente, que reflete. Somos um espírito corpóreo, um espírito que sente a dor e reflete sobre a mesma, que sofre, que mistura as dores do corpo com as da alma, um espírito que se mostra e se expressa com sorrisos e com olhares, com trejeitos, que se expressa num corpo concreto, o nosso, não outro, o nosso corpo, porque é no nosso corpo que somos o espírito que somos, sem divisão nem confusão. É neste corpo-espírito que Deus Se aproxima de nós, Se faz um de nós, um connosco, em Jesus Cristo.

Também Jesus é Corpo. Não tem corpo. Como nós não temos corpo. O que temos, tudo o que temos, é-nos exterior, é-nos dispensável e talvez haja momentos em que nos pesa, nos estorva, nos afasta dos outros, é entrave. O corpo não o temos, somos o corpo. Não há dualismos, de um lado o corpo e do outro a alma ou o espírito, a combater entre si, como se fossem inimigos em nós, com a necessidade de um dispensar o outro. Mesmo que lhe mudemos algumas “peças”, continuamos a ser os mesmos, uma identidade corpórea-espiritual.

3É o Espírito de Deus que visita Nossa Senhora e n’Ela gera Jesus. Encontro de espíritos, encontro de identidades e de vontades. “A minha alma… faça-Se em mim a Tua palavra”. Mas se ficássemos no espírito, nada mudava de substancial, de palpável, ainda que Deus tenha muitas formas de Se manifestar, de nos falar, de nos apontar um caminho.

Na Sua sabedoria infinito, Deus assume-nos inteiramente, assume-Se como verdadeiro Homem. Encarnou e veio habitar entre nós, não como espírito, como um anjo, mas como pessoa, como homem, em tudo igual a nós, exceto no pecado.

Curioso que mesmo ressuscitado, Jesus Se faz ver pelo corpo, um corpo glorioso, que atravessa o espaço e o tempo. É já o Espírito Santo a agir em nós, a agir nos Apóstolos, faz-nos ver Jesus, dá-nos Jesus, ora mais “visível” ora mais velado.

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana, Domingo, estando as portas da casa fechadas, Jesus vem com a Sua história, verdadeiro Deus, mas com as marcas distintas da Sua humanidade, mostrando-lhes as mãos e o lado. A mensagem é a de sempre: a paz! A paz esteja convosco! E com o encontro, vem o envio. Como o Pai me enviou, também Eu vos envio. E então, para que vamos e O anunciemos, Ele dá-nos o Seu Espírito: «Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».

Com a dádiva do Espírito, a missão de O testemunhar, levando a alegria, o amor e o perdão.

4Cinquenta dias depois da Páscoa, Pentecostes, e como prometido, o Espírito Santo desce sobre os Apóstolos, a Igreja primitiva, a primeira comunidade de discípulos. Lucas acentua o tempo que precisamos para nos convertermos, para percebermos que Jesus ascendeu para Deus, mas continua presente pelo Seu Espírito, pelo bem que fizermos, sempre que em Seu nome nos reunirmos e fizermos do mesmo jeito, servindo, amando, celebrando, colocando-O ao meio, para que os outros sejam uma prioridade. A garantia vem dos últimos momentos da vida terrena de Jesus: estarei convosco, até ao fim dos tempos. Vou enviar-vos o Paráclito, o Espírito Santo, que falará em vós.

O medo é um entrave à liberdade e ao amor, ao futuro e à convivência saudável em comunidade. O medo impede-nos de vermos bem, pois só se vê bem com o coração e o medo encerra o coração, não nos deixa olhar para o passado em jeito de reconciliação, quando necessário, não nos permite viver com alegria no presente com o medo do futuro que há de chegar, mas que só a Deus pertence.

O medo faz-nos fechar as portas, o coração e ressequir a vida. O Espírito vem como vendaval, em forma de línguas de fogo e repousa sobre ti, sobre mim, e se as portas se abrirem, se o coração não se endurecer, então o Espírito de Deus fará maravilhas em nós, através de nós. Falaremos novas línguas que todos percebem: o amor, a delicadeza, o sorriso, a bênção. E também assim haverá outras pessoas a aderir, a querer conhecer Quem é Jesus, o que faz em nós, como nos move e nos modifica, pois, como diz Bento XVI, o cristianismo expande-se por atração, não por convencimento, proselitismo, difunde-se, como prossegue Francisco, pela atração materna, pela ternura e pela compaixão.

5O caminho nem sempre é fácil. As tais vozes que falam em nós e os demónios que, por vezes, nos habitam, fazem-nos temer, duvidar, recuar. Nessas horas em que a fé parece vacilante, redobremos a oração, já que a fé é dom, só a podemos pedir e acolher.

A oração não é perda de tempo, a oração é o combustível, é o coração da fé, é o espaço de encontro dos discípulos de Jesus entre eles e com Deus. É a fé que clarifica as dúvidas e dissipa as trevas. Mas tal como a fé, também a oração se concretiza e se torna, no dizer do Papa Francisco, manual, manufatura-se na concretude.

“Deus do universo, que no mistério do Pentecostes santificais a Igreja dispersa entre todos os povos e nações, derramai sobre a terra os dons do Espírito Santo, de modo que também hoje se renovem nos corações dos fiéis os prodígios realizados nos primórdios da pregação do Evangelho”.

6Quantas vezes nos deixamos levar por impressões, as nossas impressões, os “repentes”, quantas vezes confundimos as nossas vozes com os nossos egoísmos. Daí também a urgência permanente de nos deixarmos inspirar pelo Espírito de Deus, Ele filtra o que em nós é diabólico e nos faz disparatar contra os outros. Precisamos de sintonizar a nossa voz com a voz de Deus, aferindo a nossa postura com a de Jesus.

Santo Agostinho, antes da pregação, invocava o Espírito Santo para o inspirar no que dizia e para inspirar os ouvintes, para que o que ele dissesse e o que era escutado se tornasse verdadeiramente inspirador, prevalecendo a Palavra de Deus.

O Apóstolo São Paulo relembra-nos que para professarmos a nossa fé, só no Espírito Santo. “Ninguém pode dizer «Jesus é o Senhor» a não ser pela ação do Espírito Santo”.

E se é o mesmo Espírito que nos inspira, que nos possibilita a mesma profissão de fé, também é o mesmo Espírito Santo que nos convoca a sermos comunidades, dando os dons para que sejam bênção e serviço. “De facto, há diversidade de dons espirituais, mas o Espírito é o mesmo. Há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. Há diversas operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. Em cada um se manifestam os dons do Espírito para o bem comum”.

São Paulo prossegue comparando a comunidade, a Igreja, a um corpo. “Assim como o corpo é um só e tem muitos membros e todos os membros, apesar de numerosos, constituem um só corpo, assim também sucede com Cristo. Na verdade, todos nós – judeus e gregos, escravos e homens livres – fomos batizados num só Espírito, para constituirmos um só Corpo. E a todos nos foi dado a beber um único Espírito”.

O Espírito congrega… o que divide é diabólico! Como não queremos em nós nada que diabolize, deixemo-nos enformar pelo Espírito do Senhor.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Atos 2, 1-11; Sl 103 (104); 1 Cor 12, 3b-7. 12-13; Jo 20, 19-23.