Solenidade do Corpo de Deus – 11 de junho de 2020

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Solenidade do Corpo de Deus – 11 de junho de 2020

Celebração do Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

1Sessenta dias depois da Páscoa, em quinta-feira, em ligação à quinta-feira santa, Última Ceia, na qual decorreu a instituição da Eucaristia, a celebração do Corpo e Sangue de Jesus Cristo, numa tradição que recua até ao século XIII, com o propósito de reafirmar a presença real de Cristo nas espécies consagradas do vinho e pão.

Esta festa começou por ser celebrada, em 1246, na cidade de Liège, na atual Bélgica. Foi depois alargada à Igreja latina pelo Papa Urbano IV, através da bula “Transiturus”, em 1264, com leituras e orações próprias. Era uma resposta aos que colocavam em causa a presença real de Cristo na Eucaristia, coroando um movimento de devoção ao Santíssimo Sacramento.

Na Idade Média acentua-se o culto eucarístico, dando maior relevo à adoração. A partir do século XII é introduzido um novo rito na celebração da Missa: a elevação da hóstia consagrada, no momento da consagração. A partir do século XIII, a adoração da hóstia estende-se para fora da Missa e aumenta a afluência popular à procissão do Santíssimo Sacramento. A Procissão do Corpo de Deus é das mais antigas e das mais relevantes, ainda que este ano, em virtude da pandemia do novo coronavírus, não se realizar.

A Portugal terá chegado em finais do século XIII e tomou a denominação de festa de Corpo de Deus.

2A celebração e a adoração da Eucaristia são fundamentais na vida dos cristãos e das comunidades, ainda que a precedência seja para a celebração, a Eucaristia enquanto tal, atualização do mistério pascal da morte e da ressurreição de Jesus, que Ele antecipa no decorrer da Ceia, em quinta-feira santa. É na celebração que acolhemos Cristo, no Seu corpo e no Seu sangue, a Sua vida por inteiro. Como há dois mil anos, no alto da Cruz, Jesus continua a dar-Se por inteiro. A Eucaristia faz memória e traz até nós, pela ação do Espírito Santo, reunidos em comunidade, o mesmo sacrifício de Cristo, a entrega da Sua vida até à última gota de sangue. Do Seu lado saem sangue e água, interpretado pelos Padres da Igreja, como símbolos do Batismo e da Eucaristia. É este mistério da oferenda que atinge a plenitude na ressurreição que presenciamos na celebração da Eucaristia, não na repetição da imolação, mas na atualização da redenção. Jesus torna-Se nosso contemporâneo na celebração da Páscoa na Eucaristia.

A adoração prolonga a celebração, na certeza de que Aquele Se torna presente no pão e no vinho eucarísticos não é provisório, pontual, a prazo, mas permanece. “Fazei isto em memória de Mim”. Sempre que dois ou três se reunirem em Meu Nome, Eu estarei no meio deles, até ao fim dos tempos. Desde o início da Igreja que o Corpo de Cristo, consagrado pelo Bispo, era levado para comunidades mais pequenas e, por outro lado, a comunhão era levada àqueles que não se podiam deslocar ao lugar das celebrações. Esta é a certeza da nossa fé: a encarnação, a vida, a morte e a ressurreição não é um “faz de conta”, mas uma realidade que nos faz permanecer para sempre, até à eternidade. Deus, em Jesus, não desce à terra (só aparentemente) durante um curto período de tempo, cerca de 37 anos, mas, com efeito, permanece na dinâmica do Espírito Santo, agora ressuscitado e glorioso, mas não menos real, peculiarmente nos sacramentos que Ele nos deixou.

3«Eu sou o pão vivo descido do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei de dar é a minha Carne, que Eu darei pela vida do mundo… Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a Carne do Filho do homem e não beberdes o seu Sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia».

Mais clarividente não poderia ser. O milagre maior da nossa vida cristã é a Ressurreição de Jesus. Três dias depois de ter sido morto, Jesus ressuscita, volta ao MEIO dos Seus. Está vivo, não é um espírito ou um fantasma, traz com Ele as marcas da oferenda, da Paixão redentora e a mensagem de sempre: a paz esteja convosco. Uma paz que brota do amor, da ternura, do coração de quem se presta a gastar a vida a favor dos irmãos.

Obviamente, sendo mistério, no âmbito do sobrenatural, a ressurreição ultrapassa todos os nossos esquemas mentais, ainda que a nossa inteligência, tal a complexidade, nos faça querer perdurar no tempo e na história. Almejamos por uma vida que permaneça. As nossas opções de vida levam-nos a fazer tudo para que os outros não se esqueçam de nós. Uns optando pelo bem e outros pelo mal, mas com o mesmo intuito de deixar marcas, de que os outros nos reconheçam pelo que somos e/ou pelo que fazemos.

A ressurreição dá-nos essa certeza, essa garantia: a última palavra é de Deus, é da vida, é do Amor. É o mistério maior da nossa fé. À luz da Páscoa, todos os outros mistérios, ou dimensões do único mistério que é Deus-connosco, se podem visualizar, como a Encarnação, ou a Assunção de Nossa Senhora, ou a Imaculada Conceição de Maria. Se Deus pode ressuscitar Jesus, então da mesma forma pode fazer com que o pão e o vinho se transformem no Seu corpo e sangue.

É o mistério da pobreza e da simplicidade. É o mistério do amor. Deus, na Sua Omnipotência infinita, em Cristo, despoja-Se de qualquer controlo, e assume-nos na nossa carne, assume-Se como pessoa humana. A grandeza molda-Se à pequenez, ajustando-Se. Expressivo o gesto de Jesus na Última Ceia quando se posta em frente aos discípulos e lhes lava os pés. Coloca-se como serviçal. Aquele que ama torna-se pobre, pois quer ser tudo para o outro. Faz-Se Deus connosco, não para um momento específico, mas para sempre. Deus-connosco. De Omnipotente faz-Se frágil; verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem deixa-Se transformar a partir de dois elementos da natureza, o pão e o vinho. Não há pobreza maior. Melhor, não há amor maior. Dar vida e permanecer.

4O pão é “comunhão” de muitos grãos, amadurecidos e esmagados, que se convertam em farinha, depois amassada e levedada, levada ao forno e, finalmente o saboroso pão que, por sua vez, sabe melhor se e quando partilhado. O vinho é “comunhão” de muitos cachos e de muitas uvas, amadurecidas e recolhidas, amassadas, prensadas, para produzirem um belo vinho que sabe melhor se e quando partilhado. Trabalho, vida e alegria, partilha, gratidão e comunhão.

«A minha Carne é verdadeira comida e o meu Sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue permanece em mim e Eu nele. Assim como o Pai, que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo Pai, também aquele que Me come viverá por Mim. Este é o pão que desceu do Céu; não é como aquele que os vossos pais comeram, e morreram; quem comer deste pão viverá eternamente».

A Eucaristia faz-nos Igreja, faz-nos irmãos. Se comungamos do mesmo Pão, Cristo Jesus, é para nos tornarmos um todo, o Seu Corpo. Como nos recorda São Paulo: “Não é o cálice de bênção que abençoamos a comunhão com o Sangue de Cristo? Não é o pão que partimos a comunhão com o Corpo de Cristo? Visto que há um só pão, nós, embora sejamos muitos, formamos um só corpo, porque participamos do mesmo pão”.

Não podemos sentar-nos à mesma mesa, a comer do mesmo pão e, depois, não nos preocuparmos uns com os outros e sobretudo com os mais vulneráveis.

5Vale a pena reler Bento XVI, na solenidade do Corpo de Deus, em 2011:

“A Eucaristia, enquanto nos une a Cristo, abre-nos também aos outros, tornando-nos membros uns dos outros: já não estamos divididos, mas somos um só n’Ele. A comunhão eucarística une-me à pessoa que está ao meu lado e com a qual, talvez, eu nem sequer tenho um bom relacionamento, mas também aos irmãos distantes, em todas as regiões do mundo… Quem reconhece Jesus na Hóstia sagrada, reconhece-O no irmão que sofre, que tem fome e sede, que é estrangeiro, está nu, doente, prisioneiro; e está atento a cada pessoa, empenha-se de modo concreto por todos aqueles que se encontram em necessidade. Portanto, do dom de amor de Cristo provém a nossa especial responsabilidade de cristãos na construção de uma sociedade solidária, justa e fraterna”.

E o que era verdade em 2011, tornou-se ainda mais acutilante nestes dias: “Especialmente no nosso tempo, em que a globalização nos torna cada vez mais dependentes uns dos outros, o Cristianismo pode e deve fazer com que esta unidade não se edifique sem Deus, ou seja, sem o verdadeiro Amor… O Evangelho visa desde sempre a unidade da família humana, uma unidade não imposta do alto, nem por interesses ideológicos ou económicos, mas sim a partir do sentido de responsabilidade recíproca, porque nos reconhecemos membros de um único corpo, do corpo de Cristo, porque aprendemos e continuamos a aprender constantemente do Sacramento do Altar, que a partilha, o amor é o caminho da verdadeira justiça”.

6Na primeira leitura, Moisés relembra as maravilhas que Deus fez e continua a fazer a favor do povo. Não se trata de ficar preso ao passado ou regressar a tempo idos, trata-se de se saber com Quem se conta e das escolhas do presente. «Recorda-te de todo o caminho que o Senhor teu Deus te fez percorrer durante quarenta anos no deserto… Não te esqueças do Senhor teu Deus, que te fez sair da terra do Egipto, da casa de escravidão, e te conduziu através do imenso e temível deserto… Foi Ele quem, da rocha dura, fez nascer água para ti e, no deserto, te deu a comer o maná, que teus pais não tinham conhecido».

No deserto mais árduo, Deus dá-nos a sede de O procurarmos e sacia a nossa vida para prosseguirmos o caminho da verdade e da justiça solidária.

7E porque não diríamos melhor, escutemos as palavras sábias e simples do Papa Francisco, sobre este mistério essencial da nossa fé e da nossa vida cristã: “A Eucaristia constitui o apogeu da obra de salvação de Deus: com efeito, fazendo-se pão partido para nós, o Senhor Jesus derrama sobre nós toda a sua misericórdia e todo o seu amor, a ponto de renovar o nosso coração, a nossa existência e o nosso próprio modo de nos relacionarmos com Ele e com os irmãos”.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Deut 8, 2-3. 14b-16a; Sl 147; 1 Cor 10, 16-17; Jo 6, 51-58.